O coração de Bartolomeu Campos de Queirós (1944-2012), pleno de amor e arte, parou na madrugada de 16 de janeiro. Meu querido amigo Bartô transvivenciou. Entrou em “encantamento”, diria Guimarães Rosa.
Bartô tinha 67 anos e mais de 70 livros publicados. A ele dediquei meu mais recente romance, Minas do ouro: “Para Bartolomeu Campos de Queirós nascido, como eu, na mesma terra mineira, no mesmo ano, no mesmo mês, no mesmo dia, e condenado, como eu, à mesma sina: escrever.”
Em 2003, mereci dele a dedicatória do livro Menino de Belém. Era um mago da palavra. Não fazia poesia, não escrevia prosa – criava proesia. Sua prosa é arrebatadoramente poética, como o comprova seu último romance Vermelho amargo, de forte conotação autobiográfica.
Sua mãe morreu aos 33 anos, de câncer, quando ele tinha 6. Lembrava-se que ela sofria dores atrozes, a ponto de o bispo autorizar que se apressasse a morte dela com uma injeção. Às vezes a dor era tanta que ela se punha a entoar canto lírico. Bartô, por vezes, ligava para sua amiga Maria Lúcia Godoy, cantora lírica, para que ela cantasse para ele ao telefone.
Equivocam-se os que classificam sua obra de literatura infantil, embora tenha angariado os mais importantes prêmios nacionais e internacionais neste gênero. Sua escrita é universal, encanta crianças e adultos. Como artesão da palavra, trabalhava cuidadosamente cada vocábulo, cada frase, até extrair toda a polissemia possível, assim como a abelha suga o néctar de uma flor.
Bartô morava em Belo Horizonte, no apartamento que pertenceu à poeta Henriqueta Lisboa – cuja estátua se ergue à porta do prédio, na Savassi. Gostava da solidão. Precisava dela para escrever. Chegava a pedir à cozinheira que saísse mais cedo. E só admitia que o silêncio fosse quebrado pela música, que ele escutava deitado no chão.
Nos últimos anos, mais lia do que escrevia. E o fazia com um prazer quase luxurioso. Narrou-me como se deleitava em abrir um novo livro, reformular suas ideias e conceitos, adquirir novos conhecimentos…
Tornou-se escritor por acaso. Estudava comunicação e expressão em Paris, quando lhe pediram enviar um texto a um concurso, que o premiou. Mas custou a se assumir como autor. Para ele, isso era secundário. A prioridade era o emprego no MEC, num departamento de investigação de qualidade de ensino, que o obrigava a viajar Amazônia afora. Seu chefe, Abgar Renault, lhe dava toda liberdade.
Nos últimos anos, pouco saía de casa. Desde que se viu obrigado a fazer hemodiálise três vezes por semana, caminhava a passos miúdos, os ombros curvados e, no rosto, a perplexidade diante dos mistérios da vida. A fala era contida, proverbial, mesmo quando fazia palestras. Seus silêncios ecoavam.
Fazia questão de não abandonar o cigarro e tomar um chope antes de submeter-se à hemodiálise. Dizia que, assim, o tratamento seria compensado…
Seu ponto de encontro era a Livraria Quixote, na rua Fernandes Tourinho, onde há um espaço em homenagem a ele. Ali revia amigos, lançava livros, tomava café da manhã. Foi ali que nos vimos pela última vez, na véspera do Ano-Novo, quando me deu de presente o romance epistolar A sociedade literária e a torta de casca de batata, de Ann Shaffer e Annie Barrows.
Há três anos ele me propusera um projeto literário a quatro mãos: uma troca de correspondência sobre literatura, conjuntura política, vivências. Nunca o efetivamos. Em nosso encontro de fim de ano respondeu-me quando indaguei o que andava escrevendo: “Cartas para mim mesmo.”
Bartô contava que, quando criança, ficava intrigado com o mistério de como pouco mais de vinte letras podem registrar na escrita tudo que a cabeça pensa… Orgulhoso, disse que aprendera a escrever com o avô, marceneiro, que morava em Pitangui (MG). Tirara a sorte grande na loteria e, assim, trocou a madeira pela literatura. Ao se sentir inspirado, tomava em mãos o lápis próprio para marcar medidas na madeira e redigia suas histórias nas paredes da casa. Quando o avô morreu, tiraram da parede da sala o relógio em forma de oito. Era o único espaço vazio de textos…
Bartô era um artista profundamente espiritualizado. Desde que morou em Paris tornou-se devoto de São Charbel (1828-1898), libanês, canonizado em 1997. Disse que o escolhera porque é um santo de poucos devotos e, portanto, mais disponível para atender às suas preces… E mostrou-me a estampa do monge de longas barbas brancas.
Meu único consolo é a certeza de que Bartolomeu Campos de Queirós vive, agora, imortalizado em suas obras literárias. Reproduzo aqui o que escrevi a ele, em maio de 1998, após ler Escritura: “Sua escrita é canto, luz, vereda e afago. Cada frase lindamente esculpida! Proíba-se de tudo o mais para só escrever, porque é a sua única e irrecorrível sentença de vida.”
Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.
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Fonte: Frei Betto