Brasil pós-ditadura

Frei Betto*

Faz 50 anos que o golpe militar, respaldado pela Casa Branca, implantou uma ditadura no Brasil. E 29 que os generais voltaram às casernas. E agora, José, vivemos uma verdadeira democracia?

Devagar com o andor, pois o santo é de barro. Cracia, sim; mas demo… Os generais deixaram o poder. Não de ter poder. Falam grosso nos quartéis e ainda têm a petulância de batizar turmas de formandos de Agulhas Negras com o nome de “Emílio Garrastazu Médici”, o mais sanguinário de todos os ditadores.

Comissões da Verdade trabalham arduamente para apurar os crimes da ditadura. Como não são também da Justiça, atuam manietadas. Não têm poder nem projeto de punir ninguém. “Homem mau dorme bem”, intitula-se um filme de Akira Kurosawa. O que dá às Forças Armadas a prerrogativa de não prestar satisfações à nação e manter sob sigilo os arquivos do regime militar, como fazem com os documentos da Guerra do Paraguai. Mas ninguém escapa de prestar contas à história…

Passadas quase três décadas do fim da ditadura, o Brasil nem sacudiu a poeira nem deu a volta por cima. Quem é hoje a figura majestática do PMDB, o maior partido do Brasil e principal aliado do governo petista? José Sarney. Quem era o presidente da Arena, partido de respaldo à ditadura e aos crimes por ela cometidos? José Sarney.

Nossas estruturas ainda conservam fortes resquícios dos 21 anos (1964-1985) de atrocidades. Em especial na política, que mantém o mesmo número de senadores por estado, malgrado a desproporção populacional, e aprova o financiamento de campanhas eleitorais por empreiteiras, bancos e empresas. Sei que nem tudo é como dantes – temos pluripartidarismo e a Constituição de 1988 – mas ainda trafegamos à sombra do quartel de Abrantes.

Houve mudanças! O impossível aconteceu: Lula eleito presidente e o PT há 11 anos no poder. Lá chegou graças aos movimentos sociais que minaram os alicerces da ditadura. Como já disse, o poder, a cracia, ganhou novos protagonistas. Porém, a demo… o povo ficou de fora!

Nossa democracia ainda é predominantemente delegativa (delega-se, pelo voto, poder ao eleito); tendenciosamente representativa (vide os lobbies do agronegócio e dos grandes meios de comunicação); e nada participativa.

A social-democracia chegou ao Brasil, paradoxalmente, pelas mãos do PT, e não do PSDB. A pobreza extrema sofreu significativa redução; a escolaridade ampliou-se; a saúde socorreu-se na importação de médicos estrangeiros. No Nordeste, trocou-se o jegue pela moto. A inflação ficou sob controle; o salário mínimo teve crescimento expressivo; a linha branca, desonerada e facilitada pelo crédito, encheu os domicílios populares de geladeiras, fogões e máquinas de lavar.

Quem nunca comeu melado… Cadê os benefícios sociais? Transporte coletivo precário e congestionado; saúde pública infeccionada por falta de recursos; educação sem qualidade; segurança despreparada e insuficiente.

Em 11 anos de governo petista, nenhuma reforma de estruturas. Nem a agrária, nem a política, nem a tributária. Como fazia a ditadura, os megaprojetos atropelam as exigências ambientais (transposição do São Francisco; hidrelétricas como Belo Monte; Copa), enquanto a Amazônia perde o fôlego asfixiada por lavouras movidas a agrotóxicos e ampliação dos pastos abertos a serra elétrica.

Eis que, de repente, o Brasil se dá conta de que não está deitado em berço esplendido. E o gigante adormecido acorda… nas manifestações de rua!

Se os 11 anos de governo petista promoveram considerável inclusão econômica, falta propiciar a participação política. Ao contrário, temos um governo despolitizante, que acredita que só de pão vive o homem… Nada estranho que haja arruaças em manifestações.

Ainda somos o país do futuro… O presente requer um novo projeto Brasil.

* Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org      twitter: @freibetto.


 


 





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Fonte: Frei Betto