São Paulo – Em abril deste ano, a Organização Mundial do Comércio (OMC) atendeu a reclamação de um grupo de importantes produtores de açúcar, formado por Austrália, Brasil e Tailândia, e considerou ilegais as exportações dessa valiosa commodity feitas pela União Européia. Nas nações do Velho Continente, ela é fabricada com subsídios oferecidos pelos governos, ajuda indispensável para garantir sua competitividade no mercado internacional. “Nós não estamos perdendo, mas deixando de ganhar algo em torno de US$ 400 milhões por ano em negócios não realizados”, afirma Fernando Ribeiro, secretário-geral da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), entidade que congrega os maiores empresários do ramo.
A sentença da OMC representou uma injeção de ânimo para as usinas nacionais que, a curto prazo, esperam incrementar ainda mais suas vendas externas. Ela também é um indício de que, definitivamente, o país vive um novo ciclo da cana-de-açúcar. As plantações, que já ocupam seis milhões de hectares, só fazem crescer. No interior de São Paulo, responsável por quase 60% de toda a produção brasileira, uma verdadeira corrida para o oeste está em curso. A cada nova safra, áreas antes destinadas a pastagens e ao cultivo de laranja cedem espaço à cana. Na zona da mata nordestina, a monocultura segue inabalável faz cinco séculos, e muitos usineiros começaram a apostar suas fichas nos Estados de Goiás e Mato Grosso, tradicionais redutos da soja.
Atualmente, a menina dos olhos do setor sucroalcooleiro não é o açúcar, cujo mercado o Brasil lidera há quase uma década. Com o preço do barril de petróleo nas alturas, o álcool está novamente ganhando espaço como alternativa à gasolina. E os números não deixam dúvidas. Hoje, de cada dez carros novos vendidos no país, seis são do tipo flex. Essa febre por automóveis bicombustíveis reacendeu o vigor das destilarias, que devem gerar 17 bilhões de litros, em 2005. Há quase duas décadas não se produzia tanto álcool assim.
De acordo com dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o valor das vendas externas de açúcar e álcool atingiu a cifra de US$ 4 bilhões, entre junho de 2004 e junho de 2005. Juntos, eles ocupam a terceira posição na pauta de exportações do agronegócio brasileiro, atrás somente da soja e do complexo de carnes. A tendência é de crescimento, tanto dos negócios como da produção. Em todo o Centro-sul – onde o clima e os solos planos, que permitem a mecanização do corte, são mais propícios para o cultivo da cana do que no Nordeste – há pelo menos 43 projetos de novas unidades industriais que devem entrar em pleno funcionamento na próxima década. Os investimentos previstos são da ordem de US$ 3 bilhões e vão aumentar a capacidade de moagem em 60 milhões de toneladas por safra.
O novo ciclo da cana é reflexo de mudanças que redesenharam a feição dessa área do agronegócio nacional que movimenta R$ 40 bilhões ao ano. O governo deixou de intervir na definição do preço do álcool e no planejamento da economia do setor, como fazia na época do regime militar, período em que foi criado o Proálcool. A iniciativa privada assumiu a responsabilidade de tocar os negócios, seguindo os princípios da liberdade de mercado. As usinas estão contratando profissionais especializados para modernizar sua gestão, diluindo o caráter familiar que se via em um passado recente. No meio rural, a mecanização vem se intensificando.
Porém, essa metamorfose também traz alguns efeitos colaterais preocupantes. “A expansão das plantações está criando um processo de concentração fundiária. A pressão social vai se acentuar através da luta de grupos engajados na reforma agrária”, garante Ariovaldo Umbelino de Oliveira, professor do departamento de geografia da Universidade de São Paulo (USP). Além disso, problemas crônicos – como a miséria e as condições degradantes de trabalho a que são submetidos os cortadores de cana – parecem longe de serem solucionados.
A verdade é que, enquanto empresários e governo comemoram a boa fase do setor sucroalcooleiro, essa expansão está deixando sindicalistas e militantes de movimentos sociais de cabelo em pé. “Infelizmente, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva luta na OMC pelo fim dos subsídios praticados pela União Européia, ele fortalece o modelo tal como ele se encontra, baseado na superexploração dos trabalhadores. É necessário discutir urgentemente esse sistema de produção”, comenta Bruno Ribeiro, advogado da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape), entidade que representa 100 mil cortadores de cana, em todo o Estado.
Negócios em alta, trabalhadores em baixa
Em Guariba, a 60 quilômetros de Ribeirão Preto, o piso salarial da categoria é de R$ 410, mas boa parte dos cortadores obtém rendimentos superiores, pois o pagamento varia de acordo com a produção. Quanto mais cana, mais dinheiro. Um empregado considerado eficiente retira, em média, 12 mil quilos por dia – recebendo R$ 2,50 por tonelada. Segundo um estudo da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), a produtividade era seis vezes menor, na década de 60. Nos anos 80, o trabalhador passou a extrair cerca de oito toneladas por dia. Hoje, o ritmo é de verdadeira disputa com as máquinas. Essa competição desumana motivou especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU), em parceria com a Pastoral do Migrante de Guariba, a investigarem se o excesso de trabalho foi mesmo a causa das paradas cardio-respiratórias que levaram dez bóias-frias à morte, em canaviais da região, desde 2004.
Homens jovens e bem nutridos são os principais alvos dos feitores, funcionários das usinas que têm a missão de montar a turma de cortadores, cuidar do transporte e ainda fiscalizar a atividade. “Eles recebem uma comissão por produtividade e por isso não escolhem os de idade mais avançada. As pessoas com mais de 30 anos já não conseguem emprego com facilidade. São velhas demais para trabalhar, e novas demais para se aposentarem”, afirma Wilson Rodrigues da Silva, presidente do Sindicato dos Empregados Rurais (SER) de Guariba.
“Todos os anos chegam milhares de cortadores a São Paulo, vindos em sua maioria do Nordeste e do Vale do Jequitinhonha (MG). Apesar de a lei mandar que eles já tenham contrato assinado antes de deixarem suas terras, é muito difícil encontrar alguém com a carteira assinada no local de origem”, afirma Roberto Figueiredo, chefe da fiscalização rural da Delegacia Regional do Trabalho de São Paulo (DRT/SP).
As condições de moradia desses migrantes é outro fator que preocupa Figueiredo. Muitos são trazidos por “gatos”, agenciadores que sobrevivem do recrutamento de mão-de-obra barata em lugares distantes das propriedades das usinas. Como os alojamentos nas áreas rurais não dão conta de abrigar todos os trabalhadores, eles são empurrados para moradias em péssimo estado, nas periferias das cidades, assim como os maranhenses de Codó. Em época de safra, a população de alguns municípios pequenos chega a dobrar, e esse excesso de contingente traz transtornos principalmente para o sistema público de saúde.
“As usinas nem sempre aceitam o argumento da DRT de que a responsabilidade também é delas, e se esquivam dizendo que não trouxeram os trabalhadores. Porém, trata-se de um aliciamento indireto, através do gato”, afirma Figueiredo. Na opinião do chefe da fiscalização rural, outro problema grave a ser combatido no interior de São Paulo é o transporte de trabalhadores de maneira não apropriada. Ônibus que antes circulavam pelas cidades, aposentados pelo desgaste do tempo, são ressuscitados nas estradas de terra que levam até os canaviais. “E, por incrível que pareça, o Departamento de Estradas de Rodagem (DER) ainda autoriza que caminhões também façam esse serviço”, acrescenta.
É claro que existem usinas que cumprem as determinações da legislação trabalhista. Entregam e fiscalizam o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) por parte de seus funcionários; fornecem alimentação balanceada e até água gelada durante o expediente. Entretanto, o próprio secretário-geral da Unica, Fernando Ribeiro, reconhece que muito ainda precisa ser feito. “As condições de trabalho são as ideais? É claro que não. Estão longe de ser? É claro que sim. Mas os avanços foram significativos, e o setor está apostando muito em programas de responsabilidade social”, admite.
(Por Carlos Juliano Barros, membro da ONG Repórter Brasil – Especial para a Carta Maior)
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