Carta Capital – O governo fechará o ano com a antecipação do pagamento de US$ 15 bilhões ao FMI. Por que os brasileiros, além dos economistas, devem comemorar esse resultado?
Maria da Conceição Tavares – Ao pagarmos o Fundo Monetário chegaremos a uma relação “dívida externa e PIB” que, finalmente, apagou o que o governo do Fernando Henrique fez. Isso é espantoso: é a melhor relação dívida externa versus Produto Interno Bruto dos últimos 40 ou 50 anos. Conseguimos sair do atoleiro, da fragilidade da crise cambial. Ou seja, crise cambial mata. A crise fiscal, no entanto, esfola.
CC – E os juros? Por que está todo mundo indignado com a taxa?
MCT – Tem muita gente ganhando com a taxa alta. As grandes empresas protegem-se com aplicações financeiras.
CC – Então, por que a reclamação?
MCT – Porque não há investimento público. Isso quer dizer que vários dos grupos tradicionais de poder não levam nada. A classe média não leva nada. Quem tem levado é o pessoal “de baixo”. Mesmo em 2003, o ano de crescimento zero, tivemos um aumento do mínimo acima do PIB per capita. Em 2004, aconteceu o mesmo e esse ano também. Seguramente, em 2006 será assim. É a primeira vez que, de uma maneira contínua, um governo sobe o salário mínimo com regras. Regras a favor do mínimo. É a primeira vez, também, que se faz um esforço de formalização do mercado de trabalho, depois de mais uma década de informalização, terceirização etc. Há três boas notícias trazidas pela PNAD: a reversão do salário dos “de baixo”; a reversão do desemprego e da renda também dos “de baixo”.
CC – À custa dos ricos, acusam…
MCT – Os ricos somos nós, a classe média. À custa da classe média que, aliás, mantinha uma frente grande dos salários menores. Em resumo, é a distribuição melhor dos salários, que no Brasil ainda é pérfida. Então, agora, pagou a turma de cima. E reclamam que o emprego gerado foi para os “de baixo” e não para os filhos da classe média alta. Alguém esperava que o governo Lula fosse gerar prioritariamente emprego para o pessoal da classe média alta dos Jardins em São Paulo? Estão brincando, não? Os “de baixo” nunca levaram colher de chá. Os empregos de agora foram gerados para assalariados que ganham em torno de um salário mínimo ou que têm o salário mínimo como referência. Isso é fundamental para melhorar a pirâmide dos salários.
CC – Qual a diferença do que foi feito no governo FHC?
MCT – Aquele era populismo cambial porque com aquele câmbio ele conseguia dar uma cesta mais barata. Arrebentou, por isso, com a agricultura de exportação, arrebentou com a indústria. Enfim, arrebentou com a estrutura produtiva. E nos pespegou uma dívida interna e externa numa rapidez colossal. Estourou os endividamentos interno e externo. E tudo o que ele trazia de capital para fechar o balanço de pagamentos era para importar bens de consumo. Foi aquele delírio de consumo. Aquilo era populismo.
CC – No capítulo de investimento público a coisa parece muito igual.
MCT – Agora também é quase nada. O arrocho fiscal de agora é mais violento do que antes. Isso ocorre porque a taxa de juros está lá em cima. Não ao ponto que o governo FHC tinha elevado. Dever ao Fundo, como se devia, é uma desgraça. Agora pagamos e há reservas de US$ 52 bilhões e uma dívida externa reduzida em mais de 40%. Há uma política conseqüente. Resolvida essa dívida de curto prazo, a estrutura da divida externa está perfeitamente “o.k.” para os próximos dez anos.
MCT – Abriu-se agora um novo período.
CC – A partir do pagamento ao FMI?
MCT – Sim. Isso significa que a restrição externa que vem lá de trás, desde o começo dos anos 1980, está equacionada. Agora, sim, dá para desmontar uma das patas da armadilha macroeconômica. Dá para baixar, a sério, a taxa de juros. Agora, sim, temos condições de retomar o crescimento. Mas, um pequeno detalhe, como o crescimento até agora era um miniciclo de consumo e, no caso do governo Lula, miniciclo de consumo e de exportações no ano passado que soltaram o crédito para o povão…
CC – Mas dizem que o povão estava endividado.
MCT – O povão já estava endividado. Só que na Casas Bahia e, portanto, pagava um juro indescritível. Hoje ele já pode comprar a televisão, a geladeira, em módicas prestações com o crédito de outra maneira. O Mário Henrique Simonsen me contava que cansou de explicar para a mãe dele duas coisas que ela jamais entendeu: a tal da correção monetária e a porcaria da taxa de juros. Economista não consegue explicar certas coisas nem para a própria mãe. Para o povão, quando abaixa a prestação, aumenta o número delas e ainda pode descontar em folha está ótimo. Nesse sentido, o governo fez outras coisas, como a Previdência generalizada para os velhinhos. Altamente distributivo. Para valer. O maior programa distributivo do País é a Previdência Social dos aposentados que dá uma renda enorme. Principalmente no Nordeste…
CC – No Nordeste?
MCT – Seguramente. Onde é que deu renda maior nesses programas sociais todos? No Nordeste. Onde a Bolsa Família é mais importante? No Nordeste. Onde é que Lula está pensando em retomar os projetos estruturantes? Na região mais atrasada. No Nordeste. É o caso da ferrovia e da interligação das bacias que o pessoal fica dizendo que é a transposição do São Francisco? Não é transposição, é a ligação das bacias para que não haja sobra de água de um lado e seca do outro. Enfim, o de sempre. Espero que ninguém interrompa esses projetos. Não se pode interromper os projetos estruturantes e, também, os projetos sul-americanos de integração que Lula fez graças às boas relações que ele tem tanto com o Kirchner quanto com o venezuelano (Chávez).
CC – Por que chegou a esse ponto? [a diferença entre os salários no Brasil]
MCT – Porque deixaram o salário mínimo cair a níveis inacreditáveis. O doutor Getúlio deve estar se remoendo na tumba.
CC – Agora, no entanto, ele deve estar um pouco mais feliz.
MCT – Pelo menos isto. É a primeira vez que os sindicatos dos trabalhadores conseguem negociações coletivas acima da inflação. Há anos que isso não acontecia. Estão melhorando as condições do trabalho. Isso é inegável. Agora vem a ameaça dos homens das Casas das Garças com as reformas de segunda geração. Que é o Banco Central independente, flexibilização da legislação trabalhista, a última flexibilização possível para comércio e movimento de capitais. E, finalmente, retomar as privatizações.
CC – Qual o alvo das privatizações?
MCT – No primeiro acordo com o Fundo que o Fernando Henrique fez, eu estava na Câmara, eles queriam privatizar o Banco do Brasil, o BNDES e a Caixa Econômica. Acha que eles deixaram de querer? Coisa nenhuma. Eles consideram que esses bancos públicos competem com eles. Quando, na verdade, os bancos públicos são os que permitem alavancar recursos para financiar o crescimento. O primeiro requerimento do crescimento sustentável que era afastar a restrição externa.
CC – A senhora é contra a exposição da divergência entre os ministros?
MCT – Mas como não haver divergência pública se alguns estão se metendo onde não são chamados? E todos eles vêm argumentar a favor dessa interferência, todos eles, começando pelos economistas da PUC que se reúnem na Casa das Garças. Esse Pérsio Arida, essa gente toda, que no Cruzado tinham boas intenções, depois que viraram banqueiros estão, claro, com péssimas intenções.
CC – A senhora já pôs a mão no fogo por alguns deles na época do Cruzado.
MCT – E queimei. Não ponho mais as mãos no fogo por ninguém, como pus para esses meninos. O Pérsio Arida, o André Lara Resende e o Mendonça de Barros. No caso do Malan (Pedro) eu queimei as mãos e o coração. Eu gostava muito dele. Todos viraram banqueiros. Isso faz, evidentemente, que eles digam o contrário da gente. Estão defendendo os interesses deles ao contrário da gente, é óbvio.
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