RURALISTAS, GRAÇAS A DEUS

Brasília – A definição é do Manual de Redação da Câmara dos Deputados: “Bancada – nome pelo qual é conhecido o conjunto de parlamentares que se unem em nome de objetivos comuns. Ela pode ser partidária (…) ou informal” . No Congresso Brasileiro, as bancadas “informais” são, muitas vezes, a principal fonte de poder – acima até das distinções entre governo e oposição. Entre as principais, segundo o Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc), estão as dos empresários e dos advogados. Mas nenhuma tem tanta visibilidade como a bancada ruralista. Os pesquisadores não sabem dizer seu exato tamanho. As estimativas vão de oitenta até 160 deputados, variando a cada legislatura, desde os tempos da Constituinte de 1988. Como as bruxas, cuja existência independe de crença, o grupo ruralista mostra-se aos olhos da Nação de tempos em tempos. “Por isso dizemos que a bancada ruralista é um agrupamento de interesse. Ela se une no momento em que alguma coisa afeta seu interesse, para o bem ou para o mal”, explica Edélcio Vigna, cientista político do Inesc. Vigna é autor de um estudo sobre a bancada ruralista, realizado na legislatura anterior. Ele lembra que o problema de determinar a dimensão da bancada tem a ver com sua natureza de “grupo de interesse”. O Inesc, por exemplo, considera que é ou pode atuar em favor da causa ruralista o parlamentar que declara que sua renda ou parte dela provém da agropecuária. Fica, porém, difícil avaliar interesses advindos de relações de parentesco, ou mesmo os que são fruto de interesses locais dos parlamentares e que resultam em financiamento de campanha, ou favorecimento na mídia local, por exemplo.
Proprietários de terras, especificamente, são poucos, portanto, entre os ruralistas. Latifundiários, ainda menos comuns. Até mesmo o mais notório dos líderes da bancada, Ronaldo Caiado (PFL-GO) é considerado um “médio produtor”. Ele se tornou nacionalmente famoso como líder da União Democrática Ruralista (UDR), ainda nos anos 80, grupo que fazia feroz oposição aos movimentos sociais pela reforma agrária. A UDR chegou a ser acusada de incentivar a formação de grupos armados para defender as propriedades. Os colegas dizem que Caiado ficou injustamente “estigmatizado”. O tempo passou, e ele hoje preside a Comissão de Agricultura da Câmara, cujo gabinete, na prática, funciona como uma espécie de “aparelho” dos ruralistas dentro do Congresso. Há várias legislaturas, o grupo elege os principais postos da comissão. Mais recentemente, os ruralistas também organizaram a Frente Parlamentar da Agricultura, que reúne mais de cem deputados.
Outro dos principais líderes ruralistas, o deputado Moacir Micheletto (PMDB-PR), estima que chegue a mais de 150 o número de deputados alinhados com a bancada. Ele próprio se define como “agricultor familiar”. Diz ser proprietário de 70 hectares de terra em Assis Chateaubriand, PR, onde mantém uma criação de aves. Micheletto participa de uma cooperativa, com 4.500 outros produtores. Responsáveis pelos frangos da marca Copacol, faturam 1 bilhão de reais por ano, segundo ele. O deputado não considera que a atuação da bancada ruralista favoreça particularmente os grandes proprietários de terra. “Me sinto confortável porque defendemos o pequeno, o médio e o grande produtor. Somos um grupo de profissionais cuja origem é o campo”, define ele.
Na prática, a bancada tem atuado de forma contrária a projetos considerados progressistas em relação à estrutura fundiária. Recentemente, o grupo se mobilizou contra a proposta de emenda constitucional que estabelece a desapropriação compulsória de áreas onde tenha sido constatado o emprego de trabalho em condições análogas à escravidão, sob o argumento de que teria de haver medida semelhante para proprietários de empresas urbanas onde houvesse esse tipo de flagrante (como acontece nas confecções que utilizam mão-de-obra de imigrantes bolivianos em São Paulo, por exemplo). “Ideologicamente falando, sou contra a invasão de terras. Sou a favor da reforma agrária, mas dentro dos parâmetros constitucionais”, define Micheletto.
Vale lembrar que foram os próprios ruralistas que conseguiram inserir na Constituição e na posterior regulamentação da reforma agrária diversos obstáculos aos mecanismos de desapropriação de terra. A conseqüência desse ideário é a manutenção de um modelo econômico já clássico no país. “A visão de desenvolvimento que os ruralistas têm é socialmente excludente, ambientalmente predatória e concentradora de renda. Não tem novidade nenhuma, é o que se aplica no Brasil há quinhentos anos”, diz o deputado João Alfredo (Psol-CE), relator da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra. Para o parlamentar, os ruralistas sustentam um modelo que tem “duas faces”: ao mesmo tempo em que o agronegócio brasileiro está alinhado ao capitalismo global e utiliza as mais modernas tecnologias e métodos de produção, mantém práticas arcaicas e violentas, como a formação de milícias armadas, o desrespeito aos direitos trabalhistas e a prática de crimes ambientais. “No Pará, nas mesmas propriedades que utilizam tecnologia de ponta na pecuária e na exploração de madeira, os fiscais às vezes encontram trabalhadores escravizados”, ilustra.
No âmbito da CPMI da Terra, João Alfredo conta que já pôde presenciar a defesa de um dos mais recentes postulados dos ruralistas, a idéia de que a reforma agrária não seria mais necessária no país, porque o momento certo para fazê-la já teria passado, décadas atrás. Esse ponto de vista é defendido por teóricos como Cândido Prunes, ligado ao Instituto Liberal, e o deputado Xico Graziano (PSDB-SP). “Na CPMI, os ruralistas tentam desqualificar e criminalizar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com a idéia de que é arcaico defender a reforma agrária, e o agronegócio é que é moderno”, diz João Alfredo.
A avaliação do geógrafo Bernardo Mançano Fernandes, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente, talvez ajude a entender a virulência com que os ruralistas atacam o MST. “Não existe força política hoje no país capaz de confrontar essa hegemonia do agronegócio. A única força que bate de frente é o MST”, diz ele. Para o assessor parlamentar da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Carlos Coutinho, o mais recente campo de confronto da bancada ruralista tem sido com a chamada “nova esquerda”, os grupos ambientalistas. A Lei de Biossegurança, que, entre outras medidas, permitiu o plantio de transgênicos no país, foi um dos embates mais recentes. A última demonstração da força ruralista segue um padrão estabelecido ao longo dos anos 90. No fim de junho, eles levaram milhares de máquinas agrícolas à Esplanada dos Ministérios, em um autodenominado “tratoraço”. Os objetivos declarados da manifestação estavam ligados, uma vez mais, à “crise do setor”, causada pela baixa do dólar, que afetou preços de exportação de produtos como a soja, e a seca no Sul do país, entre outros fatores.
Edélcio Vigna adverte que o discurso apocalíptico não é ocasional. “A bancada ruralista sobrevive da crise na agricultura. A crise leva à negociação com o governo. E aí, como o Executivo tem medo ou é conivente, cede. Daí vem o poder de barganha”, explica ele. A acusação que recai sobre esses movimentos de pressão é a de que, enquanto apontam causas conjunturais da “crise no setor” e se escudam nos agricultores afetados pela seca ou a queda dos preços, servem para disfarçar uma barganha pelo perdão de algumas dívidas com bancos públicos que são roladas há décadas ou periodicamente têm novas parcelas perdoadas. Os ruralistas negam que suas ações visem beneficiar caloteiros, mas o fato é que, entre outros pontos pouco divulgados pela mídia, o tratoraço de junho incluiu reivindicações como o fim da inclusão de inadimplentes antigos do setor na dívida ativa da União (medida que começou a ser aplicada no início deste ano). Da mesma forma, enquanto se dizem comprometidos com a sustentabilidade ambiental de sua atividade, pediram também ao governo a flexibilização das normas de importação de agrotóxicos – uma medida contra a qual a Agência Nacional de Vigilância Sanitária divulgou nota técnica dias após o tratoraço.
Pouco depois da manifestação em Brasília, o Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat) aprovou a liberação de 3 bilhões de reais para financiamento de dívidas dos grandes produtores. Os recursos devem sair pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o dinheiro tem juros subsidiados, com a TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo), atualmente, em 9,75% ao ano. Na negociação dessa medida, o governo incluiu a exigência de que as empresas de insumos para as quais os agricultores devem fossem avalistas dos empréstimos. O tiro pode ter saído pela culatra, porque as multinacionais do setor estão se negando a realizar essa operação. A estimativa do governo é que, até agora, menos de 10 por cento desse montante tenha sido efetivamente emprestado. Engana-se, portanto, quem imagina haver perfeita sintonia com o governo. Apesar de admitirem o bom relacionamento com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, para os ruralistas o setor está hoje à mercê das grandes multinacionais e dos bancos. “São os banqueiros que ganham dinheiro hoje no país. E, no caso do agronegócio, quem comanda o mercado hoje são as grandes multinacionais”, diz o deputado Micheletto. “Na discussão profunda dos temas ligados ao setor agrícola, não vemos evolução”, emenda Coutinho, da CNA.

 


(Fonte: Revista Caros Amigos)

 

 

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