Por Emir Sader
Cena 1: Primeira reunião de Lula com Palocci e José Dirceu, em janeiro de 2003, duas semanas depois da posse do novo governo, para discutir o primeiro encontro do Copom com a nova equipe. Palocci chega com o diagnóstico do Banco Central sobre a “herança maldita”, sobre os riscos de ruptura, de descontrole inflacionário, propondo aumento da já exorbitante taxa de juros de 25%. Aceita-se os argumentos, mas se decide que se manterá a taxa de juros, “sinalizando um viés de alta”. Palocci segue seu caminho e no dia seguinte o Banco Central decide subir a taxa de juros anual para 25,5%. Subiu meio ponto, desprezível diante da taxa estratosférica, mas suficiente para demonstra duas coisas: a nova direção do Banco Central se autonomizava, apontava para o “mercado” que a política anterior seguiria adiante e, por outro lado, Lula aceitava. O poder incomparável de Palocci – adquirido na campanha eleitoral, com a “Carta aos Brasileiros” – se impunha dentro do governo de forma inquestionável.
Cena 2: Palocci entrega sua carta de demissão, 39 reuniões do Copom depois, por envolvimento evidente em irregularidades na prefeitura de Ribeirão Preto, em Brasília e na recente quebra do sigilo bancário da pessoa que o acusava. Vai depor na Polícia Federal, onde deve ser indiciado.
Ele foi, durante esses quase quarenta meses, a figura exponencial do governo. Se havia um homem forte, era Palocci. Definiu as linhas gerais da política econômica de continuidade com o governo FHC – a quem saudou fraternalmente em um seminário em Salvador, confessando que havia mantido a política do governo anterior -, usou braço de ferro para contingenciar recursos dos ministérios sociais, impôs um brutal superávit fiscal, manteve a taxa de juros real do Brasil como a mais alta do mundo. Em suma, foi o responsável pelo baixo crescimento da economia brasileira, por seu viés exportador, pelos lucros recordes dos bancos.
Quando ele sai e é substituído por Guido Mantega – de trajetória desenvolvimentista -, o que muda? O governo vai sair do modelo? O pós-Palocci significa o anti-Palocci? O governo Lula muda suas orientações centrais sem o único homem forte que de fato teve até aqui?
A manutenção de Palocci no ministério serviria para Lula manter uma ponte com o grande empresariado, para o qual ele serviu de garantia. Sua substituição, se Lula quisesse manter as coisas do mesmo jeito, teria sido feita por alguém de sua equipe ou da do Banco Central, ou por Paulo Bernardo, que atuou de forma bastante harmônica com Palocci. Ao colocar a Guido Mantega, que teve enfrentamentos com Joaquim Levy, Lula aponta, não a mudanças imediatas na política econômica, mas sinaliza sua disposição concreta de que um segundo mandato presidencial terá outra ênfase: desenvolvimento e distribuição de renda.
Com esse gesto, Lula estende uma ponte na direção do empresariado industrial, outra na direção dos beneficiários das políticas redistributivas: as centrais sindicais, os movimentos sociais e todos os beneficiários diretos das políticas sociais. Ocupa um espaço que o cobertor curto da opção claramente neoliberal de Alckmin deixa descoberto.
Mas, principalmente, Lula aponta para que o segundo mandato a que ele se candidata será um mandato de saída do modelo, com o Estado funcionando como indutor do desenvolvimento e agente de expansão do mercado interno. É, portanto, uma escolha para o presente, mas principalmente para o futuro. Hoje, mantêm-se a política econômica, flexibilizando-a, mas Lula pretende apontar para uma política de saída do modelo herdado.
Fonte: Revista Fórum