Sementes, terra e água: os idos de março

Por Silvia Ribeiro*


 


Curitiba, Brasil. O sul do Brasil, confluência de vários movimentos sociais mais fortes desse país e da América Latina, foi durante março, o cenário do confronto entre os movimentos camponeses e as transnacionais, tendo como pano de fundo a Organização das Nações Unidos. Entre 5 a 31 de março ocorreram, uma após a outra, a Conferência das Nações Unidas sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural, a terceira Reunião das Partes do Protocolo Internacional de Cartagena sobre Biossegurança e a oitava Conferência das Partes do Convênio de Diversidade Biológica das Nações Unidas. Enquanto isso, no México, se reunia o quarto Fórum Mundial da Água.


 


Sem pedir permissão, os “condenados da terra” na voz de milhares de camponeses, trabalhadores rurais sem-terra, atingidos por barragens, vítimas da monocultura de árvores e dos transgênicos do Brasil e do mundo, interromperam a cena das conferências das Nações Unidas que ocorreram em Porto Alegre e Curitiba, enquanto dezenas de milhares marcharam no México em defesa da água e contra a sua privatização.


 


Com a calma e a firmeza dos motivos justos, armados de sementes, bandeiras e canções, mulheres, crianças e homens deixaram atônitos os diplomatas do mundo – lembrando eles que o mundo real está fora das mesas de negociação – e furiosos os diretores das transnacionais.


 


Na marcha final convocada pela Via Campesina em 31 de março, em frente ao centro de convenções de Curitiba, mais de cinco mil camponeses e integrantes do MST colocaram uma enorme faixa que resumiu o que está em jogo: “A natureza e a biodiversidade são dos povos, não dos governos nem das transnacionais”.


 


No Brasil, a Via Campesina marcou o campo de jogo desde o início: em 8 de março, as mulheres do movimento ocuparam um laboratório e viveiro de eucaliptos clonados da empresa Aracruz, em protesto contra o deserto verde e a expulsão de indígenas e camponeses pelos monocultivos florestais. Em seguida, marcharam e fecharam por quatro horas o acesso a Conferência de Reforma Agrária. Dois dias depois, conseguiram que a declaração do fórum paralelo Terra, Território e Dignidade fosse incluída como documento da conferência oficial de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural.


 


A reunião do Protocolo de Biossegurança começou com marchas e a ocupação feita pela Via Campesina em um terreno onde a empresa Syngenta estava plantando milho e soja transgênicos ilegalmente, em uma zona de amortecimento do Parque Nacional do Iguaçu, onde ficam as famosas cataratas com o mesmo nome. A ocupação continua.


 


Na semana seguinte, em uma vitória contundente da sociedade civil internacional, o Convênio de Diversidade Biológica (CDB) manteve e reafirmou a moratória contra a tecnologia Terminator, que faz sementes suicidas. Moratória que existia dentro do CDB desde 2000, mas que as transnacionais dos transgênicos tentaram minar meses antes, em uma reunião preparatória do CDB em Granada, na Espanha.


 


As transnacionais chegaram contentes ao Brasil: pelos corredores do CDB passavam sem pudores em frente aos diretores globais da Monsanto, Syngenta e Delta & Pine, proprietários da maioria do mercado de transgênicos e patentes de Terminator. A vitória em Granada e seu sentimento de superioridade sobre os burocratas governamentais, a quem se acostumaram a instruir pelo meio do suborno e outros similares, lhes dava ânimo.


 


Receberam uma bofetada em plena cara. O arco-íris dos protestos diários da Via Campesina nas ruas e dentro do centro de conferências, a coordenação de centenas de organizações da sociedade civil na Campanha Internacional contra Terminator, com ações simultâneas no Brasil e em outros países, as intervenções de jovens e indígenas, incluindo delegados especialmente enviados do povo huichol de Jalisco e do povo guambiano da Colômbia, as atividades paralelas com o Fórum Brasileiro das organizações não governamentais e movimentos sociais, conseguiram, finalmente, que fossem revertidos os textos vindos de Granada, para desespero das transnacionais e dos delegados dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, principais governos que queriam romper a moratória. Os delegados do México, até o último momento, também trabalharam para convencer os outros governos para quebrar a moratória, seguindo o costume vergonhoso que tiveram em todas as conferências de março, onde defenderam as transnacionais.


 


O momento mais forte e simbólico do CDB foi a entrada das mulheres da Via Campesina no plenário de negociações: com a bandeira verde dos movimentos e velas, abriram diante dos delegado oficiais dezenas de cartazes escritos em vários idiomas exigindo a proibição da Terminator. O presidente da sessão anunciou que levaria em conta essa “intervenção”, e diante da frustração do diretor da Delta & Pine, que pediu que a segurança entrasse na sala, a maioria do plenário se levantou e aplaudiu.


 


Manter a moratória contra a Terminator é um feito importante e relevante para milhares de camponeses e indígenas, assim como para as possibilidades de todos decidirem o que comemos para que as transnacionais não o façam. Mas talvez a mensagem principal seja outra, que não fica em papel e não se apaga: os condenados da terra não aceitam sua condenação, nem seus algozes nem aqueles que, mediante as leis nacionais e internacionais, legalizaram os privilégios dos poderosos.


 


* Sílvia Ribeiro é investigadora do Grupo ETC

Fonte: MST Informa – nº 112 – Edição Especial