A dramática situação dos moradores da comunidade do Horto, ameaçados de serem expulsos de suas casas, expõe a sanha higienista das classes abastadas da Zona Sul carioca. E o pior: travestida de preocupação ambiental. Trocando em miúdos, esta é a razão ideológica que está por trás da briga que já se arrasta há mais de 30 anos para remover da região os moradores das casas construídas nas beiradas do Jardim Botânico para abrigar os trabalhadores do Jardim Botânico e do Horto Florestal e suas famílias.
“Todos os moradores, sem exceção, são famílias de antigos funcionários, e o próprio jardim botânico os orientou a construírem as casas”, afirma o deputado estadual Gilberto Palmares (PT), que vem acompanhando a situação. Ao contrário de outras regiões, os moradores são os mesmos, não há o crescimento de uma favela. A maioria é nascida e criada no local, como o Sr. Delton Luiz, de 71 anos, que é funcionário aposentado do parque e filho de um antigo funcionário. No dia 05 de abril a família do Sr. Delton foi removida de sua residência por ordem judicial e se mudou provisoriamente para imóveis cedidos pela Superintendência de Patrimônio da União, gestora das terras ocupadas pela comunidade. (veja abaixo um depoimento do Sr. Delton)
Só que a própria SPU já declarou que é a favor da manutenção das casas e das famílias. A decisão é embasada por uma pesquisa de mapeamento e diagnóstico realizada pela UFRJ em 2010 e apoiada por estudo de 2005 realizado pelo Instituto de Terras e Cartografia do Estado – ITERJ. “A mídia impõe a pecha de invasores a estas pessoas, mas eles foram viver lá por interesse do próprio poder público. Numa época em que ninguém queria trabalhar naquela região, foram oferecidas casas para os funcionários morarem perto de seu local de trabalho”, ressalta Palmares. A razão de tanta implicância com a comunidade é simples: há interesses econômicos – principalmente imobiliários – em jogo. Com a expansão do Jardim Botânico, que alargou seus limites, vários grupos que defendem a remoção das famílias passaram a dizer que as casas estariam em área pertencente ao parque. Só que os imóveis foram construídos antes do Jardim Botânico ampliar sua área. E o empenho dos endinheirados contra a comunidade passou a contar com uma apoio de peso: a mídia carioca, encabeçada pelas Organizações Globo, que têm na vizinhança a sede de seu braço mais poderoso, a Rede Globo de Televisão.
Dois pesos, duas medidas
A virulência dos ataques – que chegaram a envolver o recém-exonerado presidente do Jardim Botânico, Lizt Vieira – contrasta com a leniência do poder público quando a questão das ocupações de áreas verdes envolve endinheirados. O Ministério Público Estadual e da Procuradoria Geral do Município entraram com ação civil pública contra o condomínio Parque Canto e Mello, na Rua João Borges, na Gávea – vizinho ao Horto – que está fincado em área de preservação ambiental. Mas a sentença foi muito mais branda: o desembargador Maurício Caldas Lopes entendeu que a demolição seria mais danosa ao meio ambiente do que manter as casas e permitir que os moradores continuassem vivendo no local. Assim, o magistrado determinou o pagamento de indenizações ao invés de mandar que os moradores fossem removidos, as casas, demolidas e os proprietários dos imóveis, obrigados a fazer o reflorestamento total da área. Muito diferente do que está sendo imposto aos moradores pobres da região vizinha.
No caso da comunidade do Horto, a Justiça Federal passou por cima até mesmo da Superintendência de Patrimônio da União, que é a gestora das terras e entende que é possível manter as famílias regularizar a situação fundiária. Mas a juíza Maria Amélia Almeida Senos de Carvalho concedeu liminar ao Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, determinando a reintegração de posse. Nos dias 04 e 05 foi feita mais uma ação de remoção, para retirar do lugar a família do Sr. Delton, que é objeto de um dos muitos processos de reintegração que tramitam na Justiça. “Quatro oficiais de justiça, o batalhão de choque da PM e a polícia federal foram até lá com a orientação de retirar todos os objetos e bens que estavam dentro das casas, armazená-los em contêineres, e levar as pessoas para a Fundação Leão XIII”, relata Gilberto Palmares.
O empenho da SPU tem sido importante na luta dos moradores do Horto. O órgão está agindo para minimizar os impactos da ação agressiva da administração do Jardim Botânico e da Associação dos Amigos do Jardim Botânico, entidades que estão à frente do processo de reintegração de posse. Foi a SPU que garantiu ao Sr. Delton e seus familiares as casas para moradia provisória desde que a família deixou o imóvel no Horto, no último dia 05 de abril. (Veja, abaixo, a presidente da Associação dos Moradores e Amigos do Horto – AMAHOR, Emília Souza, explicando aos moradores o desfecho da situação)
A situação dos moradores do Horto é semelhante à dos antigos funcionários do presídio da Ilha Grande. Localizado num local de difícil acesso – uma ilha – os policiais e agentes penitenciários receberam autorização para construir casas na região. Com o fechamento do presídio, os moradores estão sendo ameaçados de remoção. “Agora o estado quer de volta estas casas. Uma pessoa que mora na Ilha Grande há 30, 40 anos, viu seu filhos crescerem, alguém da família montou uma atividade perto dali. Agora estas pessoas vão morar num lugar distante, onde terão que começar de novo?”, questiona Palmares.
Abastados querem pobres longe de áreas nobres
A história da comunidade do Horto remonta à construção do Jardim Botânico, erguido por escravos. Mais tarde, com a abolição, a região ainda era afastada e não oferecia qualquer infraestrutura de transporte, o que inviabilizava o ir e vir de trabalhadores para cuidarem do parque. Foi então que os funcionários receberam a autorização para construir numa área do horto que, na época, ficava fora dos limites do Jardim Botânico, separada por um bambuzal.
Mais tarde, já na década de 50, um temporal devastou a barreira natural e os moradores foram autorizados pela administração do parque a construírem novas casas mais perto dos limites do Jardim Botânico, na localidade conhecida como Caxinguelê. O reassentamento era tão reconhecido e legítimo que o então presidente, Juscelino Kubitschek fundou uma escola pública, batizada em homenagem à sua mãe, Júlia, para atender às crianças da região. Os ataques têm sido tão intensos que parte do pátio da escola foi desapropriado e integrada ao parque. Em artigo publicado no site da Associação de Moradores e Amigos do Horto – AMAHOR, a historiadora Laura Olivieri descreve com detalhes a história da comunidade e sua relação com o Jardim Botânico e o Horto Florestal (veja aqui http://www.amahor.org.br/5608)
Mas a administração do parque vem forçando a expansão de seus limites, sob argumento de que é necessária uma área maior para aumentar o arboreto e os espaços para pesquisa. O que ninguém admite é que tem havido também um crescimento dos espaços estritamente destinados ao lazer, como restaurantes, lanchonetes e até um teatro, que não atendem aos objetivos do parque. Mas, como geram receita para o instituto, estes estabelecimentos contam com a aprovação dos administradores. Também a Associação de Amigos do Jardim Botânico tem um tratamento especial: seus associados pagam uma mensalidade que lhes dá direito de usufruir do parque em condições especiais, sem necessidade de pagar o salgado preço do ingresso – R$ 6 – que afasta os mais pobres. “Um dos principais adversários das famílias do Horto é esta associação. Eles querem que o parque seja um jardim para seu lazer. O Jardim Botânico já não tem o propósito único de ser um centro de pesquisas”, denuncia o deputado.
Guerra midiática
Com interesses claros na região, o mais poderoso grupo de mídia do país tem massacrado os moradores. A palavra invasor, que carrega o peso da ilegalidade e do abuso, tem sido usada maciçamente para definir as famílias que vivem na região, algumas há mais de um século. Para mostrar o outro lado da história, uma jovem de 17 anos, que adotou o pseudônimo de Flávia, escreveu o livro “Diário de uma invasora”, um relato do que viveu e do que ouviu dos moradores mais velhos. Durante as conversas para escrever o livro – e, sobretudo, a partir do lançamento do volume – a autoestima e a esperança dos moradores foi sendo resgatada.
Para Gilberto Palmares, que começou sua vida política no Sindicato dos Trabalhadores em telecomunicações do Rio de Janeiro – Sinttel-Rio, o movimento sindical tem todos os meios de ajudar a desfazer a impressão que a mídia tradicional vem impondo à sociedade. “Os sindicatos são, dentro dos movimentos sociais, um segmento que tem muita força política e também dispõe de um aparato maior, com jornais e outros veículos de comunicação. O movimento tem que se envolver mais nas discussões sobre transporte e moradia, que são dois dos maiores problemas que vivemos hoje”, provoca o deputado.
Fonte: Da Redação – FEEB-RJ/ES