A PEC do Trabalho Escravo, aprovada pelo Senado no dia 27 de maio, é fruto de uma longa batalha para a erradicação desta prática no Brasil. Em setembro de 1992 os fotógrafos Nando Neves e Ricardo Funari, da agência Imagens da Terra, estiveram no interior da Bahia e flagraram trabalhadores escravizados na usina Nova Aliança, ligada ao grupo Econômico, de Angelo Calmon de Sá. O banco foi liquidado em 1995 e mais tarde absorvido pelo Bradesco, mas a usina continua na família, hoje com o nome de União Industrial Açucareira – UNIAL.
A usina Nova Aliança fica no município de Amélia Rodrigues, no Recôncavo Baiano, a 84 km de Salvador. Nando e Ricardo voltavam de uma viagem ao norte da Bahia, onde foram fazer fotos encomendadas por uma fundação estrangeira. No retorno, foram passando por lugares onde flagraram situações de exploração de trabalhadores. As fotos da Usina Nova Aliança foram feitas depois que receberam denúncia da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Salvador. Segundo o administrador da usina, o número de funcionários chegava perto de mil, e ainda eram contratados mais 400 para reforçar o contingente no período do corte da cana.
As fotos de Nando e Funari só foram reveladas porque os fotógrafos clicaram primeiro e perguntaram depois. Após uma semana fotografando a rotina dos escravizados, conseguiram conversar com o administrador da usina, Jorge França. Depois de obterem algumas informações, Funari perguntou sobre trabalho escravo. “Ele nos deu cinco minutos para sair da usina. Sorte que não falamos que já tínhamos fotografado, porque ele poderia tomar nosso equipamento. Naquele dia, eu tive medo de morrer”, relata Nando.
A situação dos homens, mulheres e crianças que trabalhavam na usina era a pior possível. O alojamento era um galpão com chão de terra batida e não havia camas. Quem tinha dinheiro – ou fazia “fiado” na vendinha da usina, chamada de barracão – comprava uma rede. Quem não podia, dormia em cima do que achasse – quase sempre pedaços de papelão. Não havia separação por sexo ou idade, todos dormiam no mesmo lugar.
A empresa fornecia apenas uma refeição por dia – que era servida no meio da tarde, sendo que os empregados começavam a trabalhar às 5 da manhã. “A cena mais chocante que vi foi na hora do almoço. Chegou um ônibus trazendo um panelão com a comida, uma gororoba. Quem tinha prato, comia no prato. Quem não tinha, recebia a comida numa sacola plástica, no que arranjasse. Não tinha garfo, colher, as pessoas comiam com as mãos. Estava chovendo e as pessoas se abrigaram embaixo do ônibus para comer. Essa imagem não me sai da cabeça”, lembra Nando Neves. “Se quiserem fazer as outras refeições, os peões têm que comprar os mantimentos no barracão, frequentemente acumulando dívidas superiores a seus ganhos”, escreveu Funari em matéria publicada no Jornal Bancário, do Seeb-Rio, em janeiro de 1993.
O caso da Usina Nova Aliança era clássico: os trabalhadores chegaram de longe, atraídos por promessas de bom salário e boas condições de trabalho. Muitos ficaram sabendo da oportunidade através de anúncios em emissoras de rádio. Mas, ao chegar, percebiam que os alojamentos, o salário bruto e as condições gerais eram bem diferentes. “Eles tinham que pagar pelo facão, pelo equipamento para trabalhar. Tinham que pagar pela comida. No barracão compravam também cigarro e cachaça. As dívidas eram enormes, eles não podiam ir embora, porque a carteira de trabalho ficava retida”, relata Nando.
Além da dificuldade de se desvencilharem da situação, os trabalhadores também tinham que enfrentar as longas distâncias. “O canavial era imenso e o alojamento ficava lá no meio. Tinha um caminhão para levar o pessoal do alojamento para o local onde seria feito o trabalho. Eles ficavam muito isolados”, lembra Nando. E, mesmo que pagassem as dívidas, os trabalhadores só podiam ir embora da usina no fim da temporada do corte de cana, quando era oferecido o transporte para levá-los para fora da propriedade.
Saúde
Nando Neves não se lembra de ter visto qualquer estrutura de atendimento médico para os trabalhadores. E quem se acidentasse e não pudesse trabalhar, não recebia pagamento.
Como se não bastassem estas condições, outro problema punha em sério risco a saúde e até a vida dos trabalhadores: a contaminação por agrotóxicos. Alguns dos produtos utilizados eram de comercialização proibida, mas, por falta de fiscalização, continuavam sendo manuseados sem nenhuma proteção. “A gente nunca teve nada não sinhô. Só umas dor de cabeça de vez em quando. O trabalho aqui é assim mesmo”, revelou uma trabalhadora de 51 anos ao fotógrafo Ricardo Funari. Segundo a Comissão de Justiça e Paz, os danos causados pelo uso destes produtos provoca a morte prematura do trabalhador.
Esperança
Embora ainda precise ser regulamentado, o artigo da constituição que foi reescrito após a Emenda do Trabalho Escravo já é um avanço. O que a emenda traz, afinal, é a possibilidade de expropriação, sem pagamento de indenização, de qualquer propriedade onde seja flagrado trabalho análogo à escravidão.
A PEC foi proposta pela primeira vez em 1995, pelo então deputado Paulo Rocha (PT-PA). Nestes 19 anos foram muitos adiamentos e algumas mudanças. Uma das principais foi a inclusão do trabalho escravo nas cidades, com previsão de expropriação do imóvel urbano. Outra foi a expressão “na forma da lei”, barganhada pelos ruralistas, que levou à necessidade de regulamentação.
Mesmo com a regulamentação pendente, a emenda já é uma vitória. E traz a esperança de que situações como as que Nando Neves e Ricardo Funari flagraram na Usina Nova Aliança fiquem no passado.
Veja em nossa galeria mais fotos dos trabalhadores escravizados da usina Nova Aliança
Fonte: Da Redação – Fetraf-RJ/ES