Está fazendo um ano que estudantes do ensino médio do estado de São Paulo ocuparam escolas contra o fechamento de várias unidades, anunciado pelo governo de Geraldo Alkimin. A experiência se repetiu em maio, em razão do fornecimento irregular de merenda. Em maio deste ano, as escolas paulistas voltaram a ser ocupadas em protesto contra os desvios na verba da alimentação escolar, que já estavam causando escassez na merenda. No Rio de Janeiro, as primeiras escolas públicas – estaduais, regulares e técnicas – foram ocupadas na segunda quinzena de março, com uma pauta que reunia pedidos de melhorias físicas nos colégios, redução do número de alunos por turma, eleição para diretor, liberdade de organização dos grêmios estudantis, e o fim da avaliação Saerj – prova que media o desempenho das escolas e premiava as mais bem colocadas com gratificações, aumentando ainda mais as desigualdades entre elas.
Com o início da tramitação da PEC 241, do Ajuste Fiscal – agora PEC 55, no Senado –, a reformulação do Ensino Médio, anunciada pelo governo federal em 22 de setembro, e o projeto Escola Sem Partido, começou um novo ciclo de ocupações. Desta vez, o movimento é nacional e com pauta igual, repudiando todas estas iniciativas. Além de escolas secundárias, universidades país afora estão sendo ocupadas pelos alunos, em repúdio a estas medidas, que vão representar grande retrocesso e impor severas limitações na área da educação.
No estado do Rio de Janeiro, as ocupações estão se concentrando nas unidades federais: os sete campi de ensino médio dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – IFRJs, ameaçados de extinção, e o Colégio Pedro II. Todas as unidades de ensino médio do centenário colégio estão ocupadas: Engenho Novo, Realengo, Centro, Duque de Caxias, Humaitá, Niterói, São Cristóvão e Tijuca.
Visitamos a ocupação do Pedro II no Centro, que se mantém desde o último dia 26, e conversamos com os ocupantes, que estão articulados com os colegas das outras unidades. Embora haja sutis diferenças entre elas, as preocupações são as mesmas: as ameaças de retrocesso e a redução dos investimentos na área social. Os alunos não estão preocupados somente com a educação, mas também com o futuro da saúde, da assistência social e de vários programas importantes para a população, já que o congelamento de gastos, proposto pela PEC do Ajuste Fiscal vai estrangular os investimentos em diversas áreas. A reforma do ensino médio, com reformulação do currículo mínimo, e a mordaça que será imposta, caso o projeto Escola Sem Partido vire lei, são outras preocupações que levaram os alunos a ocupar as escolas.
Comportamento exemplar
A disciplina e a organização impressionam. Foram montadas comissões para divisão das tarefas – segurança, limpeza, alimentação, saúde, comunicação externa e cultura (eventos), além de comissão de Mulheres, Negros e LGBT, montadas num segundo momento. Os estudantes também contam com apoio externo de ex-alunos, pais, professores e até advogados, que são contatados sempre que há alguma ameaça de intervenção. A farmacinha de emergência está equipada com remédios para os males mais comuns e a página do Facebook divulga as ações, a agenda de atividades e os pedidos de doação de alimentos e material de limpeza. A comida é feita no colégio diariamente e as instalações estão limpas. O consumo de álcool e drogas é terminantemente proibido.
Mais do que a experiência da luta política, o movimento está proporcionando uma singular oportunidade de amadurecimento e conscientização. Muitos não estavam acostumados a realizar tarefas domésticas regularmente e todos estão passando por uma adaptação. Mas a faxina, o preparo da alimentação e a arrumação da cozinha, que demandam boa parte do tempo dos alunos, estão gerando uma nova compreensão sobre a importância destes serviços. “Limpar o banheiro da escola dá outra visão de mundo”, admite a estudante Joana*. E, embora os funcionários terceirizados de limpeza e vigilância estejam no colégio diariamente – para evitar o corte de ponto – todo o trabalho é feito pelos estudantes. “A tia da cozinha ensinou a ligar o fogão industrial, que não conhecíamos. Mas todo o resto somos nós que estamos fazendo”, informa Elisabete*, aluna do terceiro ano. Dimensionar as quantidades de comida foi outra dificuldade, já que, diariamente, almoçam no colégio dezenas de estudantes, mas ninguém está sofrendo para comer. Aqueles que já tinham alguma prática em cozinhar assumiram a tarefa.
O uso coletivo e a responsabilidade pela manutenção também estão ensinando a importância de preservar. “Os banheiros estão bem limpos, ninguém está deixando ficar muito sujo. Mas, se acontecer, quem vir vai limpar, não pode deixar sujo. Se isso começar a acontecer, vamos ter que ir conversando, conscientizando, para que quem está fazendo deixe de fazer”, esclarece Elisabete.
A solução dos problemas pela via do diálogo é outra marca dos ocupantes. “O movimento é totalmente horizontal. Todas as decisões são tomadas horizontalmente, com discussão dos problemas que acontecem. Não há necessidade de verticalizar. Ninguém aqui é melhor que ninguém e não há por que ter alguém em posição de maior poder que os outros”, destaca a aluna Elisabete. Outra característica é que, como não há lideranças, todos podem falar pela ocupação, e há um discurso afinado que todos são capazes de apresentar. Os visitantes só não discutem assuntos com as primeiras pessoas que encontram – na portaria – porque cada grupo tem sua função bem definida. “Todos poderiam dar entrevistas e não haveria problema com as respostas, mas é a comissão de comunicação que faz isso. Até porque nem todo mundo gosta de ser entrevistado e cada um aqui assumiu a função em que fica mais à vontade”, informa Margarete.
Todo mundo fala pela ocupação, o discurso é combinado. Só não fala com a primeira pessoa que encontra porque as coisas estão definidas em funções. Todos poderiam, por exemplo, dar entrevistas e as respostas seriam semelhantes, mas houve divisão em comissões para que apenas as pessoas que se dispõem a falar com pessoas de fora desempenhem esta tarefa. Não selecionamos, cada um se posiciona e assume a função em que se sente mais confortável.
As ameaças
Outra comissão que trabalha pesado é a de segurança. Com a constante ameaça de invasão por movimentos contrários à ocupação, é necessário controlar a entrada e circulação de pessoas de fora. Quem chega tem que apresentar documento de identificação e as informações são anotadas num livro. Só fica autorizado a circular pelas dependências do colégio quem estiver acompanhado de um ocupante e usando crachá de visitante. À noite, os grupo da segurança faz vigília e ronda as dependências da escola para verificar se houve alguma invasão ou ataque e, caso haja, poder acordar os colegas para organizar a resistência e chamar por ajuda.
No Pedro II do Centro ainda não houve nenhuma tentativa de invasão, mas este é um temor recorrente. Os ataques se resumem a comentários na página do Facebook. “Não parece uma ação organizada, são comentários individuais”, informa Elisabete. O preconceito que algumas pessoas têm contra o colégio e seus alunos também tem sido notado. “Houve a questão da saia, fomos muito atacados [Nota: a permissão dos alunos do sexo masculino usarem uniforme com saia, atendendo à reivindicação de estudantes transexuais]. As pessoas já estavam com ideias preconceituosas em relação ao Pedro II e há comentários de que nós deveríamos estar estudando e não invadindo o colégio”, aponta Margarete.
A escassez de notícias na mídia sobre as ocupações e as informações falsas são uma grande preocupação. “Nosso principal problema é a opinião pública, porque muita gente vê a nossa ação como vandalismo, invasão de um prédio público. Mas isto é um estereótipo, as pessoas precisam buscar fontes de informação confiáveis para saber o que realmente acontece. Quanto mais a opinião pública estiver a nosso favor, menor a chance do movimento sofrer ação violenta de grupos de desocupa ou da polícia e do Estado”, avalia Margarete.
O futuro
O Pedro II também se caracteriza pelo amor que seus alunos e ex-alunos têm pela instituição. E a experiência da ocupação está fortalecendo ainda mais este sentimento. “Todo mundo só vai amar cada vez mais o Pedro II. Estamos fazendo isso não só pela nossa escola, mas pela educação pública. Estamos cuidando da nossa escola, este amor foi para outro nível”, declara Margarete. Os ocupantes têm consciência de que em breve vão deixar o colégio e entendem a responsabilidade de fazer este esforço de mobilização em favor dos estudantes que virão depois deles.
Considerado um colégio de elite, o Pedro II pode sofrer muito com as medidas que o governo federal pretende implementar. Os estudantes esperam que os movimentos de ocupação ajudem a mudar a visão da sociedade sobre a educação pública. Com a questão do MEC no ENEM, esperamos que as pessoas vejam que nós tentamos um diálogo pela educação e o ministério e o governo federal não deram atenção [Nota: o MEC adiou a realização do exame nas escolas ocupadas, mas, uma semanas antes, o TRE realizou o segundo turno das eleições municipais sem nenhum transtorno, apenas negociando com os alunos ocupantes]. Esperamos que, ao final deste processo de ocupação, as pessoas se informem mais e saibam o que vão apoiar, porque a educação pública é o futuro da sociedade.
Para a vida pessoal, o que vai é a experiência. Todos j
á tiveram, em algum momento da vida, situações em que era preciso agir coletivamente, mas a experiência da ocupação tem sido a mais radical neste sentido. “Poucas pessoas vão viver a experiência e entender como é cuidar de uma escola”, acredita Margarete. “Estamos aprendendo muito sobre autonomia e empatia. Precisamos cuidar um do outro, sendo amigo ou não, e cuidar de nós mesmos com uma autonomia que, normalmente, não tínhamos. Tem que haver cooperação para as coisas funcionarem e isso exige muito diálogo e apoio de todos, como numa rede. Levamos para a vida a ideia de que não se pode andar sozinho, é preciso muita gente para conseguir realizar coisas”, resume Elisabete.
Sobre o resultado da ocupação, exceto pelo desejo de que a PEC do Ajuste Fiscal, a reforma do ensino médio e o projeto Escola Sem Partido sejam derrotados, as esperanças ainda são vagas. “Esperamos que em todos os colégios que passaram por ocupações aconteça uma integração maior entre professores, alunos e funcionários, uma relação menos hierarquizada”, deseja Elisabete. “A direção e os professores já estão percebendo os alunos como algo mais que alguém que se senta para captar matéria. Fazemos parte do colégio”, conclui Margarete.
* Nomes fictícios. Os nomes das entrevistadas foram omitidos para garantir sua segurança.