Trecho do livro Favela – Alegria e Dor na Cidade, de Jailson de Souza e Jorge Luiz Barbosa:
“Falar do futuro das favelas é tarefa que exige, em primeiro lugar, que não se dissocie seus rumos com os da cidade como um todo. O primeiro passo é acabar com a relação favela e asfalto. O reconhecimento realmente democrático dos direitos à cidade passa por uma nova apropriação do espaço urbano. A cidade, antes de mais nada, é uma só. Criar um futuro diferente significa reconhecer que as comunidades populares construíram suas histórias ao longo de uma centena de anos de lutas para habitar esta mesma cidade. São obras de vivências entre cidadãos de uma metrópole marcada por profundas contradições, tensões e conflitos sociais.
As comunidades populares se expandiram e se consolidaram nos mais distintos bairros do Rio de Janeiro. A geografia das favelas cariocas não se limita às encostas dos morros. Planícies, baixadas, margens de rios e lagoas – geralmente desvalorizados (tanto do ponto de vista econômico como simbólico) por sua localização ou suas condições físicoambientais – foram também sítios de construção da vida de muitas comunidades. Em todas foram constituídas relações de sociabilidade, formas de trabalho e de geração de renda, criações artísticas e práticas culturais produtoras de identidades. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas no seu cotidiano e na sua inserção na cidade, as favelas afirmaram seus direitos de permanência no espaço urbano metropolitano.
Como estamos falando de futuros possíveis, vale retomar uma pergunta bastante comum entre nós, moradores da Cidade Maravilhosa. A favela é um problema ou uma solução para homens e mulheres pobres da cidade? Essa pergunta provocativa gera outras questões: as favelas não foram sempre interpretadas como um problema para as classes dominantes e os grupos sociais médios? Era uma questão que deveria ser resolvida pela ação do Estado, mediante a repressão às ocupações consideradas indevidas ou pela remoção dessas comunidades para os devidos lugares dos pobres. O problema era sim a favela.
Sendo a favela o problema, logo o Estado era chamado para resolvê-lo de modo arbitrário ou clientelista, faces de uma mesma conveniente negação do exercício de direitos a parcelas significativas da população. O fato é que se a favela é um problema, esse é um problema de responsabilidade de toda a sociedade.
Então a favela é uma solução? Para os que sempre viveram com direitos limitados para habitar a cidade, a favela foi, sim, uma solução possível. Elas foram construídas como um exercício de cidadania, como afirmação de direitos. Mesmo as favelas mais precárias em termos de moradias e de infra-estrutura de serviços são territórios onde os pobres afirmaram presença na metrópole carioca. Isto não significa, é claro, que os cidadãos marcados pela desigualdade devam encontrar por si mesmos suas possibilidades de vida. Essa seria não só uma posição cômoda, mas também profundamente discricionária e socialmente irresponsável com o destino de milhares de pessoas. Seria a mais pura cristalização de processos violentos de discriminação e distinção social, econômica e cultural.
A favela não é um problema, nem uma solução. A favela é uma das mais contundentes expressões das desigualdades que marcam a vida em sociedade em nosso país, em especial nas grandes e médias cidades brasileiras. É nesse plano, portanto, que as favelas devem ser tratadas, pois são territórios que colocam em questão o sentido mesmo da sociedade em que vivemos. O significado da apropriação e uso do espaço urbano deve estar na primeira página de uma agenda política de superação das más condições de vivência no nosso mundo.
Estamos diante de um desafio, e não mais diante de um “problema dos outros”. Criar um conjunto de proposições e práticas de transformação da sociedade que leve em conta as favelas como territórios de sua construção é o grande desafio político da atualidade. Integrar definitivamente as favelas na agenda de superação de contradições, conflitos e tensões presentes no espaço urbano é, sem dúvida, contribuir para um amplo movimento de consolidação da democracia.”
Por Graziela Salomão
TÍTULO – Favela – Alegria e Dor na Cidade
AUTOR – Jaílson Souza e Silva e Jorge Luiz Barbosa
EDITORA – Senac Rio
PÁGINAS – 229
PREÇO – R$ 37,00
Fonte: