A CRISE DO IMPERIALISMO É A OPORTUNIDADE DA AMÉRICA LATINA

A esquerda avança na América Latina: a revolução bolivariana na Venezuela, a vitória de Evo Morales na Bolívia, o fortalecimento dos movimentos sociais em diversos países. Nos Estados Unidos, a falta de apoio da população às políticas do governo de George W. Bush enfraquece o imperialismo. “Esse é o momento para que os povos do Sul reúnam forças e enfrentem os Estados Unidos”, acredita o presidente do parlamento cubano, Ricardo Alarcón. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, concedida em Caracas durante o Fórum Social Mundial, o cubano diz que “os Estados Unidos podem vencer militarmente qualquer adversário, mas não podem governar o mundo”. O parlamentar alerta para a existência de bases militares estadunidenses na América Latina e afirma que a sociedade civil precisa “se mobilizar para exigir dos governos de suas regiões uma postura mais rígida no trato com a questão da militarização. É uma questão de soberania”. Especialista em relações Estados Unidos/Cuba, Alarcón também discorre sobre a nova etapa da revolução cubana e o crescimento da economia da ilha socialista. “Cuba conseguiu sair da crise econômica em que caímos quando desapareceu a União Soviética e sua produção petroleira e conseguimos aumentar nossa produção petroleira. Passamos muitos anos buscando isso e hoje temos associação com algumas empresas estrangeiras, do Canadá e da Europa”.

 

 

Brasil de Fato – Como o senhor avalia o processo da revolução bolivariana? Diferentemente do que aconteceu em Cuba, não foram feitas mudanças na estrutura da propriedade privada na Venezuela. No entanto, houve mudanças sociais siginificativas. Podemos dizer que o país está vivendo um processo revolucionário?

Ricardo Alarcón – Sim, eu penso que sim. Uma revolução autêntica não pode ser idêntica às outras que já foram feitas. Acredito que esse é um dos ensinamentos mais importantes que o movimento revolucionário deve tirar das experiências do século 20. A tentativa de copiar um modelo não dá certo. Por exemplo, a Europa Oriental seguiu mais ou menos o padrão da União Soviética, e vimos como isso acabou sendo um castigo para eles. Sem dúvida, a revolução cubana só não desapareceu porque ela foi autêntica, não foi importada da União Soviética. Cada processo tem que se explicar segundo as suas condições, suas especificidades. No caso cubano, por exemplo, o que se pode chamar de burguesia era um setor muito pequeno, débil economicamente, muito atado ao capital estadunidense. Os Estados Unidos intervieram quatro vezes em Cuba, chegaram a ocupá-la com forças militares e tudo. Com a revolução, esta burguesia saiu do país atemorizada, pois tinha certeza de que as tropas estadunidenses iam intervir mais uma vez. Mas isso foi há 47 anos.

 

BF – E na Venezuela, como isso aconteceu?

Alarcón – Na Venezuela, há uma burguesia muito mais forte em comparação com a que havia em Cuba. E continua aqui. Eles têm seus partidos, meios de comunicação e tratam de se opor à revolução internamente. Esse é um dado que tem que se levar em conta. No nosso caso, por exemplo, houve muitas nacionalizações. O Estado tomou posse de algumas empresas, que foram abandonadas por seus donos, que deixaram o país por acreditarem que aquele governo duraria muito pouco. Ou seja, não dissemos “vamos nacionalizar tudo” . Há uma grande parte das terras da reforma agrária em Cuba que eram áreas abandonadas por seus donos. Creio que aqui há uma revolução em curso que segue por um caminho diferente do nosso. E não tem por que ser igual. Deve ser diferente. Deve ser próprio e venezuelano.

 

BF – Mas quais são os pontos caracterizam esse processo como revolucionário?

Alarcón – Houve mudanças importantes, como a alfabetização, o desenvolvimento dos programas sociais. Colocou-se fim a uma casta política que foi tirada do jogo na prática. Foram criadas condições e dados passos para que o povo possa exercer seus direitos democráticos de uma maneira que nunca pôde, por meio dos programas de educação, de saúde. Essas coisas não mudam a estrutura básica da sociedade, mas criam condições para que isso possa acontecer e para que o povo possa exercer a democracia, a autoridade, e ser capaz de governar a si mesmo. Creio que isso é um feito revolucionário. Os momentos, os ritmos que se dão os processos revolucionários não têm que ser iguais. Por exemplo, se tivéssemos tido a oportunidade de fazer a reforma agrária cubana de um outro jeito, teríamos feito.

 

BF – Mesmo que o modelo cubano não possa ser copiado na Venezuela, pois são tempos históricos diferentes, alguns críticos dizem que o que está acontecendo aqui não é uma revolução, e sim uma reforma, visto que, como o senhor disse, a burguesia saiu de Cuba, mas continua na Venezuela.

Alarcón – Isso é um ponto importante. Não acredito que para um processo histórico ganhar o título de ser revolucionário tenha que corresponder a alguns manuais. Em uma primeira instância, uma revolução significa a emancipação das pessoas, das massas para que se coloque fim à exploração. Por onde isso começa, como se faz e com que ritmo, varia. Por exemplo, um revolucionário pode tomar o poder em um dado momento e não fazer a revolução. O Partido Comunista cubano, por exemplo, não se propunha o socialismo. Não o via como uma tarefa imediata, havia uma aspiração a longo prazo. E isso não era apenas uma característica do partido cubano, isso se passava em vários países, pois se acreditava que não havia as condições para se chegar naquele sistema. Não se pode dizer arbitrariamente, “vou proclamar o socialismo, vou fazer o que me der vontade”. Isso tem que ser feito em sintonia com as pessoas, as massas. Agora, no caso da Venezuela, se não há uma revolução, se não se mudou nada, por que a burguesia e o imperialismo estão contra? Porque não são bobos, sabem que por aí vem algo que mudará definitivamente a sociedade venezuelana, pois é uma revolução.

 

BF – Após a queda da União Soviética e do fortalecimento do bloqueio dos Estados Unidos, a economia cubana entrou em crise. Hoje, o país está vivendo um novo período na economia, com um crescimento de cerca de 11% no ano passado. Essa é uma nova etapa da revolução?

Alarcón – Sim, mas seria um erro superestimá-la. Cuba conseguiu sair da crise econômica em que caímos quando desapareceu a União Soviética, mas não podemos dizer que a superou completamente. Mas o que explica isso? Uma série e fatores e muitos são inteiramente cubanos, como o setor turístico que cresceu cerca de 13%, por exemplo. O mais importante é que Cuba conseguiu aumentar sua produção petroleira- algo muito significativo. Passamos muitos nos buscando isso e hoje temos associação com algumas empresas estrangeiras, do Canadá e da Europa. Fomos encontrando cada vez mais petróleo, e a produção foi crescendo substancialmente. Outra é a produção de níquel, que atingiu recordes nos últimos anos. Esse é um dado cubano, não em nada a ver com os vínculos externos. Externamente, temos que falar da vinculação econômica com a República Popular Chinesa, com quem firmamos créditos a longo prazo, sem juros, o que ajudou a oxigenar a economia cubana. Com a Venezuela há acordos que envolvem petróleo.

 

BF – E quais foram as conseqüências do bloqueio econômico dos Estados Unidos?

Alarcón – O desaparecimento da URSS e o recrudescimento do bloqueio dos EUA nos ajudaram a acumular uma experiência que nenhum outro povo tem. Nenhum outro povo viveu meio século sob bloqueio dos EUA. Nós sabemos como resistir e como se pode buscar vias para enfrentá-lo. Uma delas é economizar. Os cubanos têm uma capacidade de economizar que outros povos não têm. Nós nos acostumamos há muito tempo a reparar, a cuidar, a preparar. Outro ponto importante é o desenvolvimento da indústria biotecnologica e farmacêutica. Pouco a pouco, esse setor foi crescendo e agora Cuba exporta medicamentos, produtos tecnológicos, instrumentos médicos. Exportamos vacinas que não há em nenhum lugar do mundo. A economia cubana foi se transformando de um país agroexportador, que vendia açúcar, tabaco, rum e pesca. Continuamos produzindo e vendendo esses produtos – mas passamos a ser uma economia de bens de serviço. Temos dezenas de milhares de cientistas, pesquisadores. Alcançamos um grau de desenvolvimento que não é o mesmo  o que tínhamos quando começamos a revolução. Isso também unindo a outros esforços em matéria de organização, de uso mais racional dos recursos. E isso explica como a economia cubana se recuperou. Quando caiu a URSS, as conseqüências para nós foram terríveis. Tudo foi cortado em cerca de 35%, da noite para a manhã. Nesse momento se recrudesceu o bloqueio e ironicamente podemos dizer que um dia vamos agradecer isso que se passou com os cubanos. Imagine se dependêssemos a vida toda da exportação de petróleo da URSS a baixos preços em troca da nossa produção de açúcar. Esse não é o caminho para o desenvolvimento de Cuba. O caminho certo é o que estamos seguindo agora. Mas é um caminho difícil, especialmente se não tivéssemos sofrido esse golpe.

 

BF – Nas palestras que fez durante o Fórum Social Mundial o senhor falou na crise do imperialismo. Que crise é essa?

Alarcón – O imperialismo está enfraquecendo, principalmente devido à falta de apoio da população estadunidense ao governo Bush e às suas políticas antiterroristas. Onde estão os estadunidenses que engrossam as filas daqueles que querem ir para a Guerra do Iraque, combater o terrorismo, o eixo do mal? O governo dos EUA está pagando soldados para ir para o Oriente Médio. Isso lembra o Império Romano, em sua etapa final, quando teve início sua decadência. Nesse momento, os Estados Unidos são a única potência nuclear do mundo e podem atacar a qualquer país, como fizeram com o Iraque. Mas a tragédia para os EUA é que podem vencer militarmente, mas não podem governar o mundo. O ponto de partida dos neoconservadores que hoje governam os EUA é precisamente esse: querem reverter a tendência, o curso da História, de cima para baixo. Eu não digo que podem vir a ser um país miserável, porque militarmente seguem sendo muito poderosos. Mas o grande problema é: de onde vão tirar os soldados? O império está enfraquecendo, mas ainda assim, os povos da América Latina têm que lutar.

 

BF – Hoje vemos um crescimento de governos progressistas na América Latina. Como as organizações populares e novos governos podem se unir para enfrentar o imperialismo que vive esse momento de crise?

Alarcón – Há dois processos de transcendência histórica nesse momento, na Venezuela e na Bolívia. Uma estratégia importante seria apoiar esses novos processos que surgem na América Latina e que enfrentam abertamente o governo dos EUA, para que se possa reunir forças na luta contra o imperialismo. Por outro lado, os movimentos sociais precisam ser sensíveis aos sentimentos do povo, da sociedade e à necessidade de resistir à hegemonia estadunidense no campo internacional. Pelo menos nisso estamos avançando. Claro que com as diferenças. Nós falamos de governos populares, progressistas, de esquerda, mas somos diferentes. E acho que assim que deve ser. Esperar que todos pensem da mesma maneira seria dogmatismo. O ideal é que seja o oposto; deve ser somar, incorporar. O que tem que existir, o mínimo em cada uma das muitas forças sociais nos muitos governos, é a defesa da independência, da soberania, da integração latinoamericana. Para mim, o símbolo está em Mar del Plata, quando houve grandes manifestações nas ruas, grandes conferências dos povos contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca).

 

BF – Outro tema bastante discutido durante o Fórum Social Mundial foi a integração da América Latina. Como isso pode ser feito, na prática?

Alarcón – Há acordos muito importantes, como o firmado entre os governos do Brasil, Venezuela e Argentina, sobre o gás. Esse é um exemplo. Outro é a comunicação territorial com o Peru. Será a primeira vez que vocês vão chegar ao Pacífico pela terra, via Peru. Se não há integração física é muito difícil. Fala-se muito na integração da América Latina, mas a pergunta é: como se integrar-se não há comunicação física? Houve avanços nisso. Veja as iniciativas de Chávez: Petrocaribe, Petrosul (iniciativas para integrar as estatais petrolíferas da região). São coisas que estiveram avançando pouco a pouco, mas que têm a ver também com as mudanças políticas. Não havia como conceber isso anteriormente com a Bolívia, por exemplo, que tem um papel importante, com a crise que passava. A Telesul (rede de televisão lançada por Venezuela, Cuba, Argentina e Uruguai) é um exemplo concreto da necessidade de integração. É um projeto de vários países latino-americanos para construir uma alternativa que rompa o monopólio. O grande problema do mundo de hoje é a informação, de acordo com Noam Chomsky. O lingüista disse que é necessário atravessar as nuvens da distorção e do engano para poder apreciar a verdade do mundo, da realidade objetiva, para a partir daí poder organizar-se para mudar. Os movimentos sociais têm um papel fundamental em tudo isso, na educação das pessoas. De mobilização para criar consciência para combater o dano que faz o controle midiático cuja hegemonia segue sendo, repito, o controle estadunidense. Isso lhe permite a distorção e o engano com o objetivo de neutralizar e ganhar. Mas com a luta dos movimentos sociais é possível se chegar a mudar governos, e aí está a vitória de Evo Morales como prova.

 

BF – Há um crescimento de bases militares na América Latina. Como o senhor vê isso e de que maneira os governos da América Latina deveriam se posicionar quanto à questão?

Alarcón – Este é um dos temas que mais foi discutido durante o Fórum, as bases militares e a militarização na América Latina. Os EUA são o único país que tem bases militares neste continente. É a única potência nuclear também, a única nação que tem tropas suas em outros países. Claro, há a exceção lamentável das tropas latino-americanas que estão no Haiti, mas na verdade esses militares estão fazendo o trabalho dos EUA, encobertos pela Nações Unidas. Os EUA são a única potência que tem barcos militares e aviões que se movem por essa área. É o único país que está realizando constantemente exercícios e ensaios militares em várias áreas. A sociedade civil precisa se mobilizar para exigir dos governos de suas regiões uma postura mais rígida no trato com a questão da militarização. É uma questão de soberania. Já os movimentos sociais devem educar a população com o objetivo de eliminar todas as bases militares dos Estados Unidos na América Latina. A começar por uma luta conjunta pela independência de Porto Rico. De todas as nações latino-americanas, são os únicos que ainda são colônias deles. Lá há um movimento de massas amplíssimo em Porto Rico contra as bases militares estadunidenses. Como no restante da América Latina não podem haver movimentos ao menos parecidos com o de Porto Rico, com relação às bases que têm aqui e ali em seu território? Elas são muito perigosas, porque ninguém estabelece uma base por nada. A pergunta final desse tema é por que os Estados Unidos se utilizam dessas estratégias? Para eles, a corrida armamentista ainda não terminou. A única diferença é que agora correm sozinhos.

 

BF – Com qual objetivo?

Alarcón – Não é uma coincidência que os Estados Unidos tenham bases militares no continente onde há dois aqüíferos importantíssimos. Há um informe da CIA de 2000, que pode ser encontrado na página da agência na internet, intitulado “Tendências Globais para o ano 2020”. Neste informe, a CIA diz que para o ano de 2020 o problema mais importante do mundo será a água, e não os conflitos étnicos e militares. Os problemas entre palestinos e Israel não serão nada comparado a esse problema. Haverá uma zona que vai do norte da África até o centro da Ásia onde vão viver bilhões de pessoas sem água. Neste informe, a CIA também explica que há empresas privadas que estão se dedicando a adquirir terras, onde não há minerais, onde não se pode cultivar nada, mas que sabem que há água embaixo. Este é um dos temas mais importantes – segundo eles – e que está ligado aos recursos naturais, que são nossos. Esse é outro tema que se tem que seguir explorando e denunciando.

 

BF – E como está o caso de Luis Posada Carriles?

Alarcón – A Venezuela o reclama há mais de 20 anos. Sem extraditá-lo, os EUA desrespeitam a soberania da Venezuela. Haveria duas opções para que os EUA lidassem dignamente com a questão. Sua extradição é uma delas; outra seria julgá-lo no próprio EUA. Mas não é isso que eles querem fazer. A idéia é enviá-lo para outro país, com a intenção de escondê-lo. Isso é uma infração grave contra o povo venezuelano.

 


(Por Tatiana Merlino e Mariana Tamari – Brasil de Fato – em 2/fev)

 
 

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