Artigo: O trabalho de luto

No artigo “O trabalho de luto”, Antonio Negri e Giuseppe Cocco analisam as gigantescas manifestações realizadas em toda a França contra a mudança na Lei do Primeiro Emprego. Segundo eles, elas põem em evidência a crise das ocupações “do passado” e sugerem que mobilidade não significa necessariamente risco e precarização.
 
O trabalho de luto


 
Antonio Negri e Giuseppe Cocco


 


O movimento de março de 2006 na França mostra uma potência que faz lembrar a todo o mundo o Maio de 1968. Foram os próprios jovens manifestantes que explicitaram essa referência simbólica a cada fim de manifestação, pelos ataques quase rituais às barreiras erguidas pela polícia para impedir a ocupação da Sorbonne. Mas não é só isso.
Logo após a promulgação da lei do CPE [Contrato do Primeiro Emprego, que autoriza admissões por um período experimental de dois anos (reduzidos, após os protestos, a 12 meses) para trabalhadores de menos de 26 anos, período em que estes podem ser demitidos sem justificativas] pelo presidente Jacques Chirac, uma inédita manifestação noturna de mais de 10 mil jovens atravessou Paris de sul a norte e foi parar no Sacré Coeur -monumento funerário da derrota da Comuna de Paris-, onde os manifestantes escreveram “1871-2006”, se identificando até com os “communards” [membros da Comuna de Paris de 1871].
Obviamente, o movimento atual tem raízes problemáticas e completamente diferentes das do “joli mai” de 1968. O Maio de 68 eclodiu como uma primavera de vida contra a opressão do pleno emprego industrial, ao passo que o março de 2006 nasce diante das angústias da crise do pleno emprego. Em 68, a subjetividade estudantil, ao mesmo tempo que era o produto de um longo período de prosperidade econômica, se insurgia exatamente contra o que significava a “segurança” opressora de um futuro preestabelecido, de que a massificação do ensino e da universidade já eram uma prefiguração, e a disciplinarização de toda a sociedade sob o regime de fábrica era o resultado. Ao contrário, o movimento de março contra o CPE parece estar lutando contra a falta dessa segurança e exatamente contra uma lei que visa a aprofundar o nível de precariedade do emprego e, pois, tornar cada vez mais incerto o “futuro” dos jovens que atualmente estão se formando.
Desde o início dos anos 1990, uma subjetividade de tipo novo se constituiu a partir das mais diversas figuras dessa precariedade: os estudantes das escolas técnicas, os trabalhadores do audiovisual, os estagiários, os imigrantes ilegais (“sans papiers”), os secundaristas, os jovens das periferias e agora os estudantes universitários, juntos das mil figuras da precariedade metropolitana.
O capitalismo global das redes procura e precisa capturar um trabalho difuso nos territórios sociais visando a reduzir a cooperação social em um conjunto desordenado de fragmentos que competem entre si. O capitalismo, organizando a produção diretamente na metrópole, reconhece a dimensão múltipla que assume um trabalho que se torna produtivo sem passar pela relação salarial.
Ao mesmo tempo, o comando se reorganiza no nível global e estatal exatamente sobre o limite que separa a multiplicidade livre do trabalho enquanto potência da vida dos fragmentos atomizados da vida posta para trabalhar.
Sobre essa clivagem, às vezes imperceptível e às vezes escandalosa, os diferentes estatutos do trabalho se organizam em uma modulação que indica, no extremo, formas de atividade livre (formas de vida que produzem outras formas de vida) ao passo que, no extremo oposto, emergem as formas de uma nova escravidão (de subordinação de toda a vida na dinâmica da acumulação). Na França, ao longo das últimas duas décadas do século passado, as lutas de resistência conseguiram travar a ofensiva neoliberal. Isso foi possível porque o enfrentamento podia ser diluído nas “margens” da sociedade: se os setores “centrais” das forças de trabalho conseguiam manter parte de suas conquistas, a precarização era imposta aos imigrantes ilegais e aos jovens franceses (oriundos das imigrações norte-africana e africana) segregados nas periferias metropolitanas e discriminados (e fragmentados) por um racismo cada vez mais declarado e organizado em força política.


Impasse Real
Ora, essas margens não existem mais: foram queimadas nas fogueiras da insurreição das periferias de outubro e novembro de 2005, quando esses jovens “entraram na política”! O CPE é filho legitimo do devir político dos “banlieues”: fragmentação social e segregação espacial só podem ser governadas pela explicitação da normalidade do estado de exceção. O estado de exceção não se limita à suspensão dos direitos constitucionais de reunião e manifestação pública das periferias. Pelo contrário, ele se torna efetivo procedimento de gestão e controle do mercado de trabalho, exatamente pela generalização da precariedade.
Isso “obriga” o governo do primeiro-ministro francês, Dominique de Villepin, a generalizar o enfrentamento. Impossível explicar de outra maneira o fato de o próprio Villepin ter assumido a paternidade do CPE até o ponto em que a eventual retirada implicasse sua própria queda. Por trás do CPE e da gestão da crise parece haver menos “cálculo” político do que a emergência de um real impasse: como conseguir reanimar um projeto de integração social que passe pelo “pleno” emprego na medida em que este só pode ser alcançado pelo aprofundamento da sua “precarização” e, pois, pela perda de suas capacidades inclusivas?
A luta contra o desemprego das periferias passaria pela amplificação da fragmentação social. Tenta-se jogar os jovens franceses de ascendência africana e árabe contra seus coetâneos brancos ou, de modo geral, mais integrados. A integração da periferia exigiria, pois, a periferização do centro.
Mas esse impasse não é específico apenas ao governo, ele atravessa também o próprio movimento e sobretudo suas bases mais organizadas. E isso na medida em que esse se resumiria a defender uma integração pelo “emprego” definitivamente limitada a setores cada vez mais limitados da população. Para o movimento contra o CPE, o desafio é abandonar as amarras do “emprego do passado” e apreender sua própria excepcionalidade produtiva: ir além da defesa da legislação da era industrial e afirmar que flexibilidade e mobilidade não significam necessariamente precariedade e risco.
Se a passagem de um emprego a outro, da formação ao emprego, são hoje as dimensões ontológicas do trabalho, é preciso reconhecer a dimensão produtiva de todas essas situações, algo que só pode acontecer pela implementação de uma renda de “existência”, algo como a construção de um comum que permita as singularidades serem móveis e flexíveis de maneira livre e produtiva de novo comum. Esse desafio é um quebra-cabeça que só lutas como essa, contra o CPE, podem “resolver”. A homenagem prestada pelos adolescentes parisienses à Comuna de Paris pode ser muito mais atual do que se pensa.

Fonte: CUT