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Terrorismo de Estado

Frei Betto *


 


 


Nada mais cínica do que a comissão de frente da Marcha pela Paz em Paris, a 11 de janeiro, contra o atentado terrorista ao “Charlie Hebdo” e ao supermercado judaico.


 


Ali estavam, de braços dados, os representantes do terrorismo de Estado, como o presidente da França, país que vendeu armas aos sunitas que combatiam o governo da Síria, como também fizeram os EUA e o Reino Unido, e que, agora, são obrigados a engolir o fato de os combatentes antissírios terem se transformado no exército do Estado Islâmico.


 


O ataque terrorista ao jornal “Charlie Hebdo” não foi apenas um gesto tresloucado de dois jovens franceses de fé muçulmana. Ele se origina em um dos últimos capítulos da Guerra Fria: a ocupação do Afeganistão pelos soviéticos (1979-1989).


 


Zbigniew Brzezinsky, responsável pela Segurança Nacional dos EUA na gestão Jimmy Carter, viu na ocupação soviética excelente oportunidade de colocar em prática seu diabólico plano para rechaçá-la e instalar um governo pró-EUA: incrementar o fanatismo religioso contra os “comunistas ateus”.


 


Havia alternativas, como grupos nacionalistas afegãos, laicos, que se opunham a Moscou. Porém, a Casa Branca preferiu chocar o ovo da serpente e patrocinar os grupos fundamentalistas reunidos na Aliança Islâmica do Mujahedin (combatente) Afegão, que reagia indignada aos propósitos da infiel modernização soviética, como permitir às meninas acesso à escola…


 


Agentes da CIA passaram a incentivar a jihad (guerra santa) contra os soviéticos, de modo a expulsar os “comunistas ateus” e levar ao poder um governo aliado dos EUA.


 


George Bush pai era, desde os anos 60, amigo íntimo de um saudita do ramo da construção: Muhammad Bin Laden, pai de Osama. Após o Afeganistão ser invadido pelos russos, ele propôs ao amigo que seu filho trabalhasse para a CIA, na Arábia Saudita, disfarçado de monitor da ONG Blessed Relief. Logo, o jovem Osama, de 23 anos, foi transferido para Cabul, entusiasmado com a jihad financiada pelos EUA. Através de sua ONG, atraiu 4 mil voluntários sauditas que, no Afeganistão, foram incorporados à Aliança Islâmica – berço do Taliban e, a médio prazo, do Estado Islâmico.


 


A queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da União Soviética apressaram a saída das tropas de Moscou do Afeganistão. Porém, os 4 mil voluntários sauditas, ao retornarem a seu país de origem, já não se readaptaram à vida civil. Sem formação política, haviam sido transformados em “máquinas de matar”.


 


 O rei Fahd ainda tentou cooptar o jovem rebelde Osama Bin Laden. Nomeou-o conselheiro real. Mas ele retornara encantado com a jihad, obcecado em combater os infiéis. No ano seguinte, foi expulso da Arábia Saudita. E em 1996 declarou a jihad contra os EUA.


 


Os atos terroristas contra o “Charlie Hebdo” e o supermercado judaico resultaram da política equivocada dos EUA e da Europa Ocidental no Oriente Médio.


 


 


* Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Paralela), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto


 


 






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Fonte: Frei Betto

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Dorothy Stang, vítima do latifúndio

Frei Betto*


 


 


Eram 7h30 da manhã de 12 de fevereiro de 2005. Irmã Dorothy Stang, religiosa estadunidense naturalizada brasileira, 73, se dirigia à área do Projeto Esperança de Desenvolvimento Sustentável, em Anapu (PA).


 


No caminho, Rayfran das Neves a abordou. Perguntou se estava armada. Dorothy exibiu a Bíblia: “Eis a minha arma.” E leu trechos em voz alta.


 


O rapaz não se intimidou. A recompensa pelo crime importava mais que a vida da missionária que defendia pequenos agricultores, posseiros e sem-terras. Sacou a arma e descarregou nela sete tiros, sendo um na cabeça.


 


Há tempos, Dorothy sofria ameaças. Poucos dias antes havia escrito: “Não vou fugir nem abandonar a luta desses agricultores desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar.”


 


Rayfran, condenado a 27 anos de prisão, teve como mandante o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, condenado, em 2013, a 30 anos. Passou por três julgamentos. O primeiro, em 2007, deu-lhe igual penalidade. Por receber pena superior a 20 anos, teve direito, em 2008, a novo júri. Foi absolvido! O Ministério Público recorreu, anulou-se a sentença, e o júri de 2013 confirmou a pena de 30 anos de prisão.


 


Dorothy Stang mereceu prêmio de direitos humanos da OAB, em 2004. Homenageou-a, em 2005, o documentário-livro “Amazônia revelada”, patrocinado pelo CNPq e o Ministério dos Transportes.


 


O documentário de Daniel Junge, “Mataram irmã Dorothy”, produzido nos EUA e narrado por Wagner Moura, retrata a trajetória da religiosa. O artista Cláudio Pastro incluiu o perfil dela no painel, em azulejos, “As mulheres santas”, na basílica de Aparecida (SP).


 


Quem de fato matou Dorothy Stang foi o latifúndio, conforme denúncia dos bispos católicos brasileiros reunidos em Aparecida, em abril de 2013.


 


Reza o documento por eles aprovado: “A sempre prometida reforma agrária não foi prioridade de nenhum dos governos democráticos. As decisões governamentais, nestas três décadas, foram, quase sempre, tomadas para favorecer o latifúndio e o agronegócio: financiamentos altíssimos, subvenções, e até anistia para os endividados, impunidade e regularização da grilagem, legislação favorável aos interesses da bancada ruralista. É injustificável que os índices de produtividade, essenciais para provar a função social da propriedade, ainda sejam os do tempo da ditadura militar.”


 


Outros assassinatos ocorrerão se o governo não promover a reforma agrária e defender os direitos de índios, quilombolas, atingidos por barragens, posseiros e sem-terra.


 


Segundo a Comissão Pastoral da Terra, de 1985 a 2011,  registros revelam que 1.610 pessoas foram assassinadas no campo, julgadas apenas 96 ocorrências e condenados 21 mandantes e 75 executores.


 


A impunidade faz do Brasil uma nação violenta.


 


 


* Frei Betto é escritor, autor de “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org     Twitter: @freibetto.


 





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Fonte: Frei Betto

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Desafios à educação escolar

Frei Betto*

A educação escolar exerce papel fundamental em todo processo de transformação social. À semelhança da política e da religião, a educação serve para libertar ou alienar; despertar protagonismo ou favorecer o conformismo; incutir visão crítica ou legitimar o status quo, como se ele fosse insuperável e imutável; suscitar práxis transformadora ou sacralizar o sistema de dominação.

Nesse inicio de século XXI, a educação escolar difere muito da que predominou no século XX. Hoje, nosso cotidiano é invadido por novas tecnologias que nos trazem, em tempo real, informações capazes de interferir em nossa forma de existência e de relacionamentos (ciberespaço, relações virtuais, crise das ideologias libertárias, novos perfis familiares e sexuais, monopólio e manipulação da informação etc.)

Por viver em uma mudança de época e trafegarmos entre a modernidade e a pós-modernidade, somos ameaçados pela crise de identidade teórica. O instrumental teórico que tanto nos confortava e incentivava no século XX, e que nos parecia tão sólido, ruiu com a crise da modernidade e da razão instrumental.

O que impede a educação de formar pessoas altruístas? Falta uma educação que, além da escolaridade, de transmissão cultural do país e da humanidade, suscite nos educandos visão crítica da realidade e protagonismo social transformador.

De fato, em muitos países a educação escolar se tornou uma prisão da mente, onde as disciplinas curriculares são sucessivamente repetidas, visando à qualificação da mão de obra destinada ao mercado de trabalho. Não se cogita a prioridade de formar cidadãos e cidadãs solidariamente comprometidos com o projeto social emancipatório.

Vivemos, hoje, na era do impasse frente ao futuro emancipado. Estamos no limbo do processo libertário. Movimentos, grupos e partidos de esquerda, quando existem, parecem todos perplexos perante o futuro. Muitos cedem à força cooptadora do neoliberalismo e trocam o projeto de libertação social pelo mero usufruto do poder, ainda que isso implique corrupção e traição às esperanças dos oprimidos.

A hegemonia capitalista exerce um poder tão avassalador, que muitos de nós abdicam do propósito de construir um novo modelo civilizatório. Aos poucos, como se fosse um vírus incontrolável, o capitalismo se impõe em nossas relações pessoais e sociais. Vamos aderindo à fé idolátrica de que “fora do mercado não há salvação”.

Na esfera pessoal, abrimos mão de nossa ideologia libertária em troca de uma zona de conforto que nos permita acesso ao poder e à riqueza, livrando-nos da ameaça de integrar o contingente de 2,6 bilhões de pessoas que, hoje, sobrevivem com renda diária inferior a 2 dólares!


 


A escola é, sim, um espaço político. Se não tiver clareza de seu projeto político pedagógico, corre o risco de se transformar em mero balcão de negócios para diplomar competidores avessos à ética e aos direitos humanos.


 


 


 


Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – Autobiografia Escolar” (Ática), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto


 


 





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Fonte: Frei Betto

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Novos perfis de família

Frei Betto*


 


Maria Antônia, bebê gaúcho, tem duas mães, um pai, seis avós! Nascida em Santa Maria, em setembro de 2014, o juiz Rafael Cunha autorizou seu registro de nascimento.

Os pais são Fernanda, Mariani e Luis Guilherme, que engravidou uma das moças e fez questão de ter seu nome na certidão de nascimento. O juiz reconheceu legalmente que Maria Antônia nasceu em um “ninho multicomposto”.

Desde que resolução do Conselho Federal de Medicina, em 2013, permitiu a utilização de técnicas de fecundação “in vitro” por casais homoafetivos, cresceu no Brasil o número de crianças registradas em nome de dois pais ou duas mães.

O preconceito ainda impede que muitos reconheçam o óbvio: o perfil da família já não se restringe ao da relação monogâmica heterossexual.

Quem melhor percebe essa mutação é o papa Francisco que, em vez de se fingir de cego, como papas anteriores frente aos fenômenos da pós-modernidade, convocou um sínodo para debater o tema. Precedido por reunião extraordinária em outubro de 2014, o Sínodo da Família terá lugar em Roma, em outubro deste ano.

No questionário remetido a todas as dioceses do mundo, o papa pergunta como os católicos encaram casais recasados, a homossexualidade e outros temas considerados polêmicos no interior da Igreja. Francisco quis ouvir as bases, num gesto inédito de democratização da instituição eclesiástica.

É o fim da família? A família é uma estrutura cultural, não natural. Tal como a conhecemos hoje, existe há apenas meio milênio. Aliás, hoje se multiplicam as famílias monoparentais, cujo “chefe” é a mãe. Em comunidades indígenas, a qualidade de proteção e afeto às crianças faz a todos nós, “civilizados”, corar de vergonha.

Para quem, como eu, foi educado no catolicismo à luz de estampas da Sagrada Família, não é fácil acolher os novos perfis de relações afetivas. Porém, ao abrir o Evangelho, nos deparamos com algo distinto do modelo devocional: o jovem Jesus que se desgarra do cuidado dos pais e abandona a caravana de peregrinos; o pregador ambulante que não merece a credibilidade de seus irmãos (João 7,5) e a família o tem na conta de “louco” (Marcos 3,21-31); o filho que parece rejeitar a própria família: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” (Mateus 12, 48).

Quando exclamaram a Jesus “Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram”, ele não desmentiu, mas assinalou a diferença: “Felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam.” (Lucas 11, 27-28).

Jesus enfatizou que não são os laços de sangue que mais aproximam as pessoas, e sim o projeto comum que elas assumem.

Projetos alternativos criam conflitos. Jesus chegou a falar em “odiar” a própria família (Lucas 14, 26). O verbo grego miseo (=odiar) pode ser traduzido por “amar menos”: “Se alguém quer me seguir e não prefere a mim mais que a seu pai e sua mãe…”

Frente ao modelo de família-gueto, centrada no umbigo de seus membros e avessa a estranhos e necessitados, Jesus propôs um modelo de família aberta, centrada no afeto, na gratuidade e na abertura ao próximo.

A família do século XXI já não será apenas a que possui em comum características biológicas, e sim a que o amor aproxima e une pessoas comprometidas com um projeto comum de vida, que estabelece entre elas profundas relações de intimidade e reciprocidade.

E há que lembrar que, em sua recente visita à Ásia, o papa Francisco rogou aos fiéis católicos que evitem “ser como coelhos”, procriando irresponsavelmente. Um sinal de que os métodos contraceptivos, como o uso do preservativo, serão afinal aceitos pela Igreja Católica?


 


 


 



* Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.
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Fonte: Por: Frei Betto

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Relações Cuba e EUA: discurso do método

Frei Betto (desde Havana)*

Mais de 1.000 jornalistas estrangeiros se encontram em Havana. A maioria vinda dos EUA. Cobrem o início do diálogo entre delegações cubana e estadunidense para o restabelecimento de relações, após 53 anos de bloqueio decretado pela Casa Branca.

Obama admitiu, em dezembro de 2014, e repetiu agora no discurso sobre o Estado da União, que o embargo “não funcionou”. Graças à mediação do papa Francisco, se iniciaram neste 22 de janeiro as conversações oficiais entre ambos os países.

Falei com vários cubanos. O sentimento predominante aqui, como me disse em “off” um ex-ministro, é que tão cedo “não serão normais as relações normais entre os dois países”. Os dois falam linguagens distintas: os EUA em FM; Cuba em AM.

Desde que os EUA ajudaram Cuba a se independentizar da Espanha, no fim do século XIX, a Casa Branca julga que a Ilha é como uma filha resgatada pela mãe. Um dos preços da independência foi a perda de soberania de Cuba sobre a base naval de Guantánamo, tema espinhoso que ainda não entrou na pauta das conversações.

O governo cubano considera hipocrisia restabelecer relações apenas formais, sem o cancelamento da “lei de ajuste cubano”, que prevê cidadania estadunidense a todo cubano refugiado que pisar em solo dos EUA.

Cuba sabe – e teme – que flexibilizar a lei de migração trará anualmente, no mínimo, 3 milhões de turistas dos EUA e milhões de dólares a uma economia debilitada. E, na bagagem, uma cultura consumista que se chocará com a austeridade em que vive o povo de Cuba.

Mesmo empresários conservadores do país do Norte pressionam o Congresso para que suspenda o bloqueio o quanto antes, enquanto países como o Brasil e tantos outros já se adiantaram com parceiros do potencial de comércio representado pela geopolítica de Cuba, situada no centro do Caribe.

Obama deixou claro em seu último discurso: não está em jogo modificar os objetivos que regem a política externa usamericana, que considera seu modelo de democracia ideal para o mundo. Ele admite, cartesianamente, uma “mudança de método”. Mas Cuba insiste em saber com que objetivos.

* Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou” (Saraiva), entre outros livros.
www.freibetto.org twitter: @freibetto.


 


 


 





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Fonte: Frei Betto

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Thomas Merton, místico do século XX

Frei Betto*

A palavra mística causa estranhamento. Para muitos, isso é coisa do outro mundo ou de pessoas alucinadas. Ora, o místico é como qualquer outro ser humano. O que o difere é ser um eterno apaixonado por quem, nele, é mais íntimo a ele do que ele a si mesmo: Deus.

A 31 de janeiro, Thomas Merton faria 100 anos. É um dos quatro mais conhecidos místicos do século XX, ao lado de Simone Weil, Teilhard de Chardin e Charles de Foucauld. Fui apresentado às suas obras por Dom Timóteo Amoroso Anastácio, capelão das monjas beneditinas de Belo Horizonte, no início da década de 1960.

Filho de pai neozelandês, que era pintor, e mãe usamericana, Merton nasceu na França. Recebeu o batismo na Igreja Anglicana. Aos 11 anos, aluno interno na Inglaterra, já lia William Blake, D.H. Lawrence e James Joyce.

Ingressou na Universidade de Cambridge e, de mudança para os EUA, em 1934, em Colúmbia cursou espanhol, alemão, literatura francesa, geologia e direito civil. Acercou-se da Juventude Comunista.

A leitura de O espírito da filosofia medieval, de Étienne Gilson, despertou seu interesse pela escolástica. Mergulhou nas obras de Tomás de Aquino e Duns Scotus. No entanto, foi um monge budista, de quem se tornou amigo, que o despertou para o cristianismo. Aconselhou-o a ler Santo Agostinho. Em 1938, em Nova York, Merton foi admitido na Igreja Católica.

Doutor em literatura inglesa aos 24 anos, tornou-se crítico literário do New York Times e do New York Herald Tribune. A obra de São João da Cruz suscitou-lhe a vocação sacerdotal, no que foi desestimulado pelos franciscanos. Entre 1939 e 1941, escreveu um diário e três romances (todos recusados pelas editoras), enquanto fazia trabalho social junto à população negra do Harlem.

Os retiros espirituais na abadia cisterciense (monges trapistas) de Gethsemani, em Kentucky, o convenceram a se tornar trapista, ordem religiosa austera e contemplativa. (No Brasil, há uma comunidade trapista em Campo do Tenente, PR). Ao deixar Nova York, aos 27 anos, Merton distribuiu suas roupas no Harlem; os livros, aos franciscanos; e rasgou dois de seus romances.

Merton viveu em Gethsemani de 1941 a 1968, onde foi mestre de um noviço nicaraguense que, mais tarde, se revelaria excepcional poeta: Ernesto Cardenal. Em 1948, a publicação de sua biografia precoce, A montanha dos sete patamares (título inspirado na Divina Comédia, de Dante), alcançou repercussão mundial. No Brasil, foi editado pela Vozes. Sua leitura influiu em minha vocação religiosa.

Ao longo de seus 27 anos como monge, Merton escreveu compulsivamente. Homem algum é uma ilha é um de seus livros mais traduzidos. Vinculou-se aos movimentos pacifistas e destacou-se como crítico da guerra do Vietnã.

Do eremitério em que morava nos três últimos anos de vida, sua voz ecoava através de artigos, livros, entrevistas e vasta correspondência. Com a sua tradutora no Brasil, a monja beneditina Maria Emmanuel de Souza e Silva, trocou 951 cartas entre 1954 e 1968.

Interessado no zen-budismo, aos 53 anos, em 1968, viajou ao Oriente para se aprofundar na espiritualidade budista. Entrevistou-se com o Dalai-Lama e, em Bangcoc, a 10 de dezembro daquele ano, proferiu conferência sobre “Monaquismo e marxismo”. Pouco depois, o encontraram morto no quarto, eletrocutado pelo fio desencapado do ventilador. Foi sepultado nos EUA.

Mais de 40 obras de Merton mereceram publicação no Brasil, graças a amigos como Alceu Amoroso Lima, que o considerava “o João da Cruz do século XX”. Em nosso país, a Sociedade dos Amigos Fraternos de Thomas Merton (www.merton.org.br) difunde sua espiritualidade e obra.

* Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Paralela), entre outros livros.
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Fonte: Frei Betto

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Reforma política urgente!

Frei Betto*


 


 


Foi inusitada a eleição de 2014 para eleger presidente, governadores de 26 estados e do Distrito Federal, deputados estaduais e federais (estes, 513 para a Câmara dos Deputados) e renovar 1/3 do Senado.


 


Para presidente, 11 candidatos! Cinco formados nas fileiras do PT: Dilma, Marina, Eduardo Jorge, Luciana Genro e Zé Maria.

O Congresso Nacional, a ser empossado este ano, é remendo novo em pano velho, como diz o Evangelho. De cada 10 deputados federais eleitos, sete receberam recursos de ao menos uma das dez empresas (empreiteiras, mineradoras, agroempresas, bancos) que mais investiram na eleição. Algumas delas com seus diretores trancafiados na lavanderia da Operação Lava- Jato, comprovando que nem a Suíça lava mais branco…

Nós votamos, elas (empreiteiras, bancos etc) elegem, até que se proíba o financiamento de campanhas por pessoas jurídicas. De fato, já está proibido, mas de direito ainda não: seis dos 11 ministros do STF votaram pela proibição e, no momento de manifestar seu voto, o ministro Gilmar Mendes pediu vista e enfiou a decisão debaixo do braço. A decisão foi tomada pela maioria, mas enquanto Mendes não se pronunciar a corrupção continuará grassando em nosso sistema eleitoral.

O Congresso de 2015 não será formado propriamente por bancadas de partidos, e sim de interesses: bancada do agronegócio, bancada das empreiteiras (214 deputados de 23 partidos), bancada dos bancos (197 deputados de 16 partidos), bancada dos frigoríficos (162 deputados de 21 partidos), bancada das mineradoras (85 deputados de 19 partidos), bancada da bebida alcoólica (76 deputados de 16 partidos). Sem falar nas bancadas evangélica, da grande mídia etc.

A bancada da bala comemora. Mais de 70 % dos candidatos que receberam, legalmente, doações de campanha da indústria de armas e munições, se elegeram em outubro. Dos 30 nomes beneficiados pelo setor, 21 saíram vitoriosos das urnas: são 14 deputados federais e sete deputados estaduais. Fabricantes de armas destinaram R$ 1,73 milhão para políticos de 12 partidos em 15 estados.

Ganha força em todo o país a proposta de se levar adiante a reforma política, com financiamento público das campanhas, redução do número de partidos, fidelidade partidária, e promovida através de uma Constituinte exclusiva. O Plebiscito, realizado a 7 de setembro de 2014, recolheu mais de oito milhões de votos.

As mudanças exigidas pelas manifestações de junho/julho de 2003, e apoiadas por amplos setores da sociedade civil, têm escassas possibilidades de ser abraçada pelos deputados e senadores eleitos pelo viciado sistema do financiamento privado das campanhas eleitorais.

O principal obstáculo para a reforma política é a atual composição do parlamento: mais de 70 % de fazendeiros e empresários (da educação, da saúde, industriais etc); apenas 9 % de mulheres (elas são mais da metade da população brasileira); 8,5 % de negros (51 % dos brasileiros se autodeclaram negros); menos de 3 % de jovens (os jovens de 16 a 35 anos representam 40 % do eleitorado do Brasil).

* Frei Betto é escritor, autor de “Oito vias para ser feliz” (Planeta), entre outros livros.
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Fonte: Frei Betto

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Caso Jobim, afinal reconhecido

Frei Betto*


 


No Rio, escutei no rádio, na manhã de sábado, 24 de março de 1979, que o embaixador José Jobim havia sido sequestrado há dois dias. Estranhei. Jobim não tinha envolvimentos políticos, embora fosse homem progressista.

Era pai de Lygia Maria, casada com o editor Ênio Silveira, e de cuja filha, Maria Rita, sou padrinho.

Fui à casa da família, no Cosme Velho. Ao chegar, soube que o corpo havia sido encontrado na Barra da Tijuca.

Ênio e eu fomos ao local. De fato, ali estava o embaixador morto. Mas toda a cena nos pareceu estranha: enforcado em um arbusto inferior à altura de seu corpo e em um canteiro divisor das pistas de uma avenida do Itanhangá…

Havia curiosos em volta, policiais e o delegado Rui Dourado. Este nos disse: “O embaixador apanhou bastante.” E que, pelas características do ocorrido, os autores não eram bandidos comuns.

Na época, o caso foi encerrado como “suicídio”. Lygia Maria, editora como o marido, não se conformou. Fez Faculdade de Direito e se dedicou a investigar o caso durante 34 anos.

Em 1983, a então promotora Telma Diuana (hoje desembargadora aposentada), designada para reabrir o caso, solicitou novas investigações, baseando-se na “dubiedade do laudo que concluiu pelo suicídio”.

O inquérito mudou a versão inicial ao apurar que os fatores da morte eram “todos incompatíveis com a hipótese adotada pelos legistas oficiais.” Foi arquivado como “homicídio por autor desconhecido.”

Lygia não se conformou. Ênio e eu éramos testemunhas de que nenhum suicida escolheria para se enforcar um arbusto incapaz de sustentar seu corpo. Era evidente que ele havia sido colocado ali. Como Antígona, Lygia sabia muito bem que, sob ditaduras, nada é como parece.

Jobim, se antecipando ao que o Brasil assiste hoje, havia dito à família que pretendia denunciar, na posse do general Figueiredo, os esquemas de superfaturamento na construção de Itaipu, cujo valor inicial foi multiplicado por dez ao longo das obras.

Lygia não busca indenização. Quer apenas “o reconhecimento de responsabilidades. Itaipu matou meu pai e os agentes do Estado destruíram as provas.” E promete não descansar enquanto não descobrir de quem partiu a ordem para “suicidar” seu pai.

Felizmente, a Comissão da Verdade o incluiu entre as vítimas da ditadura militar.

* Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.
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EUA e Cuba quebram o gelo

Frei Betto*



Ontem foi dia de festa para o Continente americano. O primeiro papa nascido em nossas terras fez 78 anos e nos deu de presente o fruto de sua habilidade diplomática: a reaproximação entre EUA e Cuba.



Francisco, ao receber Obama em março deste ano, no Vaticano, tratou do fim do bloqueio e da libertação de três dos cinco cubanos presos nos EUA desde 1998, acusados de terrorismo.



Na verdade, os cinco eram agentes da inteligência cubana que, graças à infiltração em bandos terroristas anticastristas, evitaram atentados em território cubano. Ontem, os três que ainda se encontravam presos foram trocados por Alan Gross, agente da CIA e terrorista capturado há cinco anos, em Havana.



O bloqueio imposto a Cuba pelos EUA, desde 1962, viola todos os tratados internacionais e, nas últimas décadas, perdeu seu efeito, na medida em que a União Europeia e tantos outros países, como o Brasil, passaram a manter relações diplomáticas e comerciais com a Ilha revolucionária.



Obama, ao admitir ontem que “o isolamento não funcionou”, sabe que o fim do bloqueio depende de decisão do Congresso estadunidense. Mas o sinal verde foi aceso. E em seu bojo o compromisso de reatar relações diplomáticas entre Washington e Havana.


Quem ganha com o recuo de Obama é o povo cubano que, ao longo de 56 anos de Revolução (a serem comemorados no próximo dia 1º), jamais deixou de resistir heroicamente ao bloqueio, mesmo quando a situação do país se agravou devido à queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da União Soviética.



Se hoje Cuba recebe 1 milhão de turistas canadenses por ano, que trocam, no inverno, 20 graus negativos por 30 positivos no mar do Caribe, e se em 2013 mais de 600 mil estadunidenses de origem cubana visitaram Havana, o potencial turístico dos EUA poderá engordar os cofres cubanos.



Cuba, além de exportar médicos e professores de qualidade, e charutos inigualáveis, oferece uma infraestrutura turística isenta de violência e poluição.



Fidel, do alto de seus 88 anos bem vividos, deve estar feliz por mais esta vitória, sobretudo se considerarmos que ele sobrevive a oito presidentes dos EUA, dos quais enterrou quatro, e a mais de 20 diretores da CIA que juraram eliminá-lo.



* Frei Betto é escritor, autor de “Oito vias para ser feliz” (Planeta)
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Fonte: Frei Betto

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Cuba e EUA: o início do fim do bloqueio

Frei Betto*


 


O papa Francisco, ao comemorar ontem 78 anos, deu um inestimável presente ao Continente americano: o início do fim do bloqueio dos EUA à Cuba e o reatamento das relações diplomáticas entre os dois países.



Este foi o tema que Francisco priorizou com Obama no encontro que mantiveram, em Roma, em março deste ano. Um ano antes, ao assumir o pontificado, Francisco se inteirou da questão ao receber Diaz-Canel, primeiro vice-presidente do Conselho de Estado de Cuba.



Obama admitiu que “o isolamento não funcionou.” De fato, o bloqueio imposto à Cuba, ao arrepio de todas as leis internacionais, não conseguiu nem mesmo fragilizar a autodeterminação cubana após a queda do Muro de Berlim.



Fidel, aos 88 anos, sobrevive a oito presidentes dos EUA, dos quais enterrou quatro. E a mais de 20 diretores da CIA.



Os EUA são lerdos para admitir que o mundo não é fruto de seus caprichos. Por isso, demorou 16 anos para reconhecer a União Soviética; 20 para o Vietnã; e 30 para a República Popular da China. E foram precisos 53 anos para aceitar que Cuba tem direito à sua autodeterminação, como já sinalizara a Assembleia Geral da ONU.



De fato, EUA e Cuba jamais romperam o diálogo. Em Washington funcionou, ao longo de cinco décadas, a legação cubana, assim como em Havana o prédio da legação usamericana ergue-se majestoso no Malecón.



A notícia dessa reaproximação marca o fim definitivo da Guerra Fria em nosso Continente. E Cuba sai no lucro, pois oferece uma infraestrutura turística sadia, despoluída e isenta de violência a 1 milhão de canadenses que, no inverno, com três horas de voo, trocam 20 graus negativos por 30 positivos do mar do Caribe.



Com a abertura do mercado cubano a investimentos estrangeiros, os EUA, que raciocinam em cifrões, não querem ficar atrás da União Europeia, do Canadá, do México, do Brasil e da Colômbia, que selam importantes parcerias com a Ilha revolucionária. “Em vez de isolar Cuba, estamos isolando somente o nosso país, com políticas ultrapassadas”, disseram em carta a Obama os parlamentares estadunidenses Patrick Leahy (democrata) e Jeff Flake (republicano) ao retornarem de Havana.



Em troca de Alan Gross, agente da CIA detido em Cuba por ações terroristas, Obama liberou, ontem, três dos cinco cubanos presos nos EUA, desde setembro de 1998, acusados de terrorismo (dois já tinham sido soltos).



Na verdade, tratavam de evitar, na Flórida, iniciativas terroristas de grupos anticastristas. E foram usados como bucha de canhão pelo FBI e por grupos de direita para impedir, na época, a reaproximação entre EUA e Cuba.



O tribunal de Atlanta havia admitido, por unanimidade, que as sentenças aplicadas a três dos cinco cubanos (Hernández, Labañino e Guerrero, libertados ontem) careciam de fundamento jurídico: não houve transmissão de informação militar secreta, nem puseram em risco a segurança dos EUA.



Como me disse a presidente Dilma em encontro a 26 de novembro, Francisco é, sem dúvida, o grande líder mundial nesse mundo carente de figuras confiáveis e respeitáveis.


 


* Frei Betto, escritor, atuou nas relações Igreja-Estado em Cuba nas décadas de 1980-1990, e é autor de “Fidel e a Religião”, entre outros livros.
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Fonte: Frei Betto