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Gabo em Havana

Frei Betto *

Meu último encontro com Gabriel García Márquez e Mercedes, sua mulher, foi em Havana, a 11 de dezembro de 2008. Ele parecia cansado e já demonstrava sinais da enfermidade que o consumiria.

Conheci-o na capital de Cuba, em fevereiro de 1985. Perguntei-lhe se havia terminado seu novo romance, O amor em tempos do cólera.

— Terminei o texto linear. Agora trabalho nos acertos.

Gabo havia enviado o texto a Fidel, que pouco depois chegou à casa onde nos encontrávamos. Ansioso, indagou se o Comandante já havia lido os originais.

— Sim, e com muita atenção – disse Fidel. — Descobri um erro crasso.

Gabo ficou lívido.

— Você escreve que um barco saiu de Cartagena transportando toneladas de ouro. Fiz alguns cálculos. Um barco da época, todo de madeira, teria afundado no próprio porto.

Em novembro de 1985, Gabo me chamou à casa de protocolo 61, onde se refugiava para escrever, e mostrou-me seu discurso para abertura do congresso de intelectuais. Uma irônica e divertida história de congressos.

— Sugiro a você ressaltar o múltiplo aspecto da cultura popular na América Latina – opinei. — Como cultura de resistência, solidariedade, protesto, jogo e festa.

Ele me fez subir para o segundo andar da casa, ligou seu Macintosh e acrescentou ao texto a sugestão.

— Em que período do dia você prefere escrever? – perguntei.

— Pela manhã, após banhar-me, vestir-me e tomar um vasto café.

Era a primeira vez que eu via o computador com a grife da maçã. Fiquei maravilhado diante daquela máquina. Ele me mostrou como funcionava e insistiu para que eu comprasse uma. Depois, “roubou” de Mercedes um exemplar de seu romance El amor en los tiempos del cólera, a ser lançado em breve, e me presenteou com uma dedicatória.

Em julho de 1986, participei em Havana de uma recepção oferecida por Fidel a um chefe de Estado da África. Às três da madrugada, Gabo e eu deixamos o Palácio da Revolução e cada um se dirigiu à casa em que se hospedava.

Meia hora depois, quando eu já pegava no sono, soou o telefone da cozinha. Fui atender:

— Companheiro, aqui é da casa de García Márquez – disse uma voz anônima. — Ele está indo para aí.

Por que Gabo viria ao meu encontro àquela hora? Aguardei 20 minutos, bêbado de sono. Nenhum Prêmio Nobel vale o preço do meu sono. Como não apareceu, voltei à cama após deixar a porta da casa encostada.

Na manhã seguinte, fui informado de que na casa de Gabo haviam recebido telefonema de alguém que dissera: “Frei Betto pede que venha urgente à casa dele”.

Ao contrário de mim, que voltara a dormir, Gabo atendeu ao chamado e ficou até as 7h da manhã na varanda da casa em que eu estava hospedado, conversando com amigos que me acompanhavam na viagem.

Nunca entendi por que os fantasmas da madrugada pretenderam nos manter despertos e juntos… Gabo poderia ter aproveitado o estranho episódio para um de seus primorosos contos.

* Frei Betto é escritor, autor de “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org      twitter: @freibetto.




Copyright 2014 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los, propomos assinar todos os artigos do escritor. Contato – MHGPAL – Agência Literária (
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Fonte: Frei Betto

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Energia a que preço?

Frei Betto *

O Plano Decenal de Energia prevê, como prioridade, até 2022, a construção de hidrelétricas. Hoje, o Brasil dispõe de 125 mil MW (megawatts). O Plano estabelece a incorporação de mais 60 mil MW, sendo 35 mil oriundas de 35 hidrelétricas de grande porte a serem construídas, e dezenas de PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas).

Tais empreendimentos atingirão, segundo o Governo Federal, 62 mil pessoas. Tudo indica tartar-se de um número subestimado. Duas hidrelétricas, a de Marabá e a de Belo Monte, causarão transtornos para uma população numericamente maior. Hoje, em todo o Brasil, os atingidos por construções de barragens são calculados pelo MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) em 1 milhão de pessoas. E mais 250 mil serão afetadas pelas obras previstas no Plano Decenal, que prevê investimento de R$ 100 bilhões e o alagamento de 650 mil hectares. Cerca de 80 % do potencial hídrico planejado será em rios da Amazônia: Tocantins, Xingu, Tapajós e Madeira.

O BNDES é a principal fonte de financiamento das usinas hidrelétricas. De 2002 a 2012, financiou cerca de 650 projetos, canalizando para as empresas algo em torno de R$ 200 bilhões. Para os atingidos por barragens – famílias expulsas de suas terras e domicílios para dar lugar às represas – restaram apenas migalhas assistencialistas.

O Relatório Nacional de Direitos Humanos, publicado em 2010, registra que, no Brasil, vigora um padrão de violação dos direitos dos atingidos por barragens: 16 direitos são sistematicamente desrespeitados quando se trata desse segmento da população.

Em julho de 2009, esta dívida social foi publicamente reconhecida pelo presidente Lula. Ainda assim, pouco se avançou. O MAB propôs ao governo criar um fundo para pagar aos atingidos o que é devido. Nada se fez até agora. No entanto, no último 13 de março o governo federal liberou R$ 13 bilhões para empresas estatais administradas pelo PSDB (Cesp, Copel, Cemig e Light) e empresas privadas (Duke, Suez Tractebel, AES, etc.) que vendem energia a R$ 822,83 o MW hora, enquanto as estatais federais vendem a R$ 33,00/MWh.

Dinheiro para as empresas não falta. Falta para promover justiça social e ressarcir as famílias expulsas de suas terras em nome do progresso.

O povo brasileiro vai pagar a conta dessa submissão do Governo Federal às empresas que mantêm energia a preço especulativo. Cerca de R$ 13 bilhões sairão do Tesouro Nacional, e tudo indica que outros R$ 8 bilhões serão repassados nas contas de luz da população, em futuros aumentos, após as eleições de outubro. Até lá, as empresas farão empréstimos a juros altíssimos junto ao capital financeiro internacional.

O MAB tem denunciado que, no interior do setor elétrico nacional, um conjunto de empresas privadas e outras sob governos tucanos promovem um golpe nas contas de luz, e que os futuros aumentos poderão ficar entre 18 e 31 % . Esses aumentos seriam autorizados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) às vésperas das eleições presidenciais – das 64 distribuidoras, 50 teriam o aumento autorizado entre abril e outubro.

Desde 2012, quando o Planalto anunciou redução nas tarifas, essas empresas não aceitaram a intervenção do governo para controlar os preços da energia elétrica e passaram a chantagear o governo e a população com as chamadas “crises” no setor elétrico, com ameaças de apagões etc.

Na renovação das concessões, no final de 2012, os cerca de 7.700 MW médios das hidrelétricas da estatal Eletrobrás, controladas pelo governo federal, passaram a vender sua energia a R$ 33,00/1.000 kW. Isso permitiu a redução da conta de luz da população.

No entanto, as empresas Cesp, Cemig e Copel, que possuíam cerca de 5.500 MW médios, recusaram a renovação das concessões. Não aceitaram reduzir o preço. Além disso, a Light (de propriedade da Cemig) e a Duke, que possuem outros 800 MW médios, também ficaram livres para vender sua energia a R$ 822, já que seus contratos de venda se encerraram entre 2012 e 2013.

É a energia dessas empresas que falta para as distribuidoras e, ao mesmo tempo, está disponível para as geradoras especular e cobrar R$ 822. É energia de hidrelétricas construídas há mais de 30 anos, todas já amortizadas, que poderia ser comercializada a R$ 33. Para justificar e esconder o golpe, alega-se, através de grandes meios de comunicação, que o custo é alto por culpa da falta de chuva e do acionamento de térmicas… Trata-se de uma grande mentira!

Como pode a hidrelétrica Luiz Carlos Barreto, de Furnas, localizada no Rio Grande, divisa entre MG e SP, vender energia a R$ 33,00/MWh e, 30 km abaixo, uma hidrelétrica (Jaguara) da Cemig cobrar R$ 822,83/MWh por uma energia gerada pela mesma água? Que aumento de custo tão grande teria ali? Térmica elas não são! E se fosse falta de chuva afetaria as duas usinas de forma igual. Não é melhor qualificar de golpe especulativo?

O governo, infelizmente, cede à chantagem dos especuladores. As empresas privadas e as administradas por governos tucanos, além de colocar R$ 21 bi no bolso, estão esvaziando os lagos para forçar aumentos nas contas de luz e, de quebra, gerar um grande desgaste político eleitoral ao Executivo Federal.

O que realmente está em jogo é o esforço para manter a alta taxa de exploração sobre os trabalhadores e sobre a população, através da manutenção das tarifas de energia elétrica em patamares internacionais. E, com isso, garantir aos acionistas e especuladores taxas de lucro extraordinárias.

É óbvia a origem desse golpe que se gestou no interior do setor elétrico nacional: a privatização do modelo energético nacional, hoje, controlado por empresas privadas.

* Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto.




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Fonte: Frei Betto

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Criminalizar adolescentes?

Frei Betto *

Voltou à pauta do Congresso, por insistência do PSDB, a proposta de criminalizar menores de 18 anos via redução da maioridade penal.

De que adianta? Nossa legislação já responsabiliza toda pessoa acima de 12 anos por atos ilegais. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, o menor infrator deve merecer medidas socioeducativas, como advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. A medida é aplicada segundo a gravidade da infração.

Nos 54 países que reduziram a maioridade penal não se registrou redução da violência. A Espanha e a Alemanha voltaram atrás na decisão de criminalizar menores de 18 anos. Hoje, 70 % dos países estabelecem 18 anos como idade penal mínima.

O índice de reincidência em nossas prisões é de 70 % . Não existe, no Brasil, política penitenciária, nem intenção do Estado de recuperar os detentos. Uma reforma prisional seria tão necessária e urgente quanto a reforma política. As delegacias funcionam como escola de ensino fundamental para o crime; os cadeiões, como ensino médio; as penitenciárias, como universidades.

O ingresso precoce de adolescentes em nosso sistema carcerário só faria aumentar o número de bandidos, pois tornaria muitos deles distantes de qualquer medida socioeducativa. Ficariam trancafiados como mortos-vivos, sujeitos à violência, inclusive sexual, das facções que reinam em nossas prisões.

Já no sistema socioeducativo, o índice de reincidência é de 20 % , o que indica que 80 % dos menores infratores são recuperados.

Nosso sistema prisional já não comporta mais presos. No Brasil, eles são, hoje, 500 mil, a quarta maior população carcerária do mundo. Perdemos apenas para os EUA (2,2 milhões), China (1,6 milhão) e Rússia (740 mil).

Reduzir a maioridade penal é tratar o efeito, e não a causa. Ninguém nasce delinquente ou criminoso. Um jovem ingressa no crime devido à falta de escolaridade, de afeto familiar, e por pressão consumista que o convence de que só terá seu valor reconhecido socialmente se portar determinados produtos de grife.

Enfim, o menor infrator é resultado do descaso do Estado, que não garante a tantas crianças creches e educação de qualidade; áreas de esporte, arte e lazer; e a seus pais trabalho decente ou uma renda mínima para que possam subsistir com dignidade em caso de desemprego.

Segundo o PNAD, o adolescente que opta pelo ensino médio, aliado ao curso técnico, ganha em média 12,5 % a mais do que aquele que fez o ensino médio comum. No entanto, ainda são raros cursos técnicos no Brasil.

Hoje, os adolescentes entre 14 e 17 anos são responsáveis por consumir 6 % das bebidas vendidas em todo o território nacional. A quem caberia fiscalizar? Por que se permite que atletas e artistas de renome façam propaganda de cerveja na TV e na internet? A de cigarro está proibida, como se o tabaco fosse mais nocivo à saúde que o álcool. Alguém já viu um motorista matar um pedestre por dirigir sob o efeito do fumo?

Pesquisas indicam que o primeiro gole de bebidas alcoólicas ocorre entre os 11 e os 13 anos. E que, nos últimos anos, o número de mortes de jovens cresceu 15 vezes mais do que o observado em outras faixas etárias. De 15 a 19 anos, a mortalidade aumentou 21,4 % .

Portanto, não basta reduzir a maioridade penal e instalar UPPs em áreas consideradas violentas. O traficante não espera que seu filho seja bandido, e sim doutor. Por que, junto com a polícia pacificadora, não ingressam, nas áreas dominadas por bandidos, escolas, oficinas de música, teatro, literatura e praças de esportes?

Punidos deveriam ser aqueles que utilizam menores na prática de crimes. E eles costumam ser hóspedes do Estado que, cego, permite que dentro das cadeias as facções criminosas monitorem, por celulares, todo tipo de violência contra os cidadãos.

Que tal criminalizar o poder público por conivência com o crime organizado? Bem dizia o filósofo Carlito Maia: “O problema do menor é o maior.”

* Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto.




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Fonte: Frei Betto

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Amarildo e Douglas

Frei Betto *


 


Primeiro, mataram Amarildo de Souza. Ajudante de pedreiro, pai de família, reputação ilibada, caiu em mãos de policiais da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da favela da Rocinha, no Rio, e desapareceu.

Sabe-se, hoje, que sofreu espancamentos até a morte atrás da cabina da Policia Militar, na Rocinha. Seu corpo continua desaparecido. Paira a suspeita de que teria sido triturado em uma caçamba de caminhão de lixo.

Agora assassinaram o bailarino Douglas Rafael Pereira, encontrado morto, com um tiro nas costas, na creche da favela Pavão-Pavãozinho, na divisa de Copacabana com Ipanema. Testemunhas viram-no em mãos de policiais militares da UPP local.

Favela não é reduto de bandidos nem a Polícia Militar uma corporação de assassinos. Moram em favelas famílias trabalhadoras sem recursos para adquirir um imóvel melhor ou pagar aluguel em áreas urbanizadas, dotadas de saneamento e vias asfaltadas.

Há, sim, entre os moradores da comunidade, bandidos e traficantes de drogas, assim como eles também são encontrados em bairros como o Morumbi de São Paulo e a Barra da Tijuca, no Rio, onde residem famílias de alto poder aquisitivo.

Nas décadas de 1970-80, a expansão de movimentos populares no Brasil se estendeu para o interior das favelas. Por razões pastorais, morei na de Santa Maria, em Vitória, entre 1974 e 1979. Naqueles cinco anos participei de uma comunidade relativamente bem organizada em torno do Centro Comunitário. No Rio e em São Paulo multiplicavam-se Associações de Moradores.

Em fins dos anos 1980 e início da década seguinte, lideranças comunitárias da periferia começaram a ser cooptadas por prefeitos e governadores. Como ocorre hoje com a UNE e as centrais sindicais, as entidades comunitárias perderam credibilidade na medida em que se transformaram em agentes do poder público junto à população, quando deveriam atuar na direção inversa.

A acefalia abriu espaço ao narcotráfico, que passou a monitorar favelas e bairros da periferia. Na ausência de serviços públicos básicos, o narcotráfico desempenha o papel de assistente social, assegurando tratamento de saúde, bolsas de estudos, transporte e crédito aos desfavorecidos.

Por sua vez a PM, um resquício da ditadura, tornou-se, no Rio e em São Paulo, o avatar na guerra contra o narcotráfico. A ação preventiva deu lugar à mera ação repressiva. Sem preparo pedagógico e psicológico, policiais militares encaram moradores de favelas como o governo dos EUA jovens muçulmanos: todos são suspeitos até prova em contrário.

Como declarou um amigo e vizinho de Douglas, os PM tratam os moradores da favela com arrogância. Muitos não admitem que a pessoa abordada mire em seus olhos. Sentem prazer sádico em ver o cidadão humilhado, de cabeça baixa, suplicando por clemência. Achacam o comerciante local, bebem e comem de graça em bares e lanchonetes da comunidade, recebem propinas do narcotráfico para fazer vista grossa frente ao crime organizado.

O governo do PMDB no Rio, com apoio do PT, acreditou ter inventado a roda ao instalar UPPs em áreas de conflitos. Cometeu duplo erro: por não fazer os serviços públicos acompanhar a entrada de policiais nas comunidades e por não capacitar os integrantes das UPPs.

A ação repressiva não veio casada com a ação educativa. Crianças e jovens continuaram sem escolas de qualidade, oficinas de arte, áreas de lazer e esportes. E por vestirem uma farda e portarem armas, PMs se arvoram em senhores acima do bem e do mal. Revistam um trabalhador como um senhor de engenho tratava um escravo em tempos coloniais.

O estranho é que muitos policiais, moradores em favelas, não se reconhecem em seus amigos de infância e vizinhos, e agem como se não fossem um deles.

Amarildo e Douglas, como tantos outros anônimos, foram sacrificados pela prepotência. Quem será a próxima vítima?

Amarildo e Douglas são mortos insepultos. Seus sacrifícios clamam por um Estado que efetivamente reduza a desigualdade social, construa mais escolas que prisões, incuta nos policiais o sagrado respeito aos direitos humanos, e puna com rigor bandidos de colarinho branco e assassinos fardados.

Se até hoje o Estado brasileiro não obrigou as Forças Armadas a abrir os arquivos da ditadura nem puniu os torturadores, não é de se estranhar que policiais se sintam no direito de ignorar a lei e a cidadania, para agir como se fossem apenas UPPs – Unidades de Policiais Pervertidos.

* Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou” (Saraiva), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto.


 


 





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Fonte: Frei Betto

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Brasil pós-ditadura

Frei Betto*

Faz 50 anos que o golpe militar, respaldado pela Casa Branca, implantou uma ditadura no Brasil. E 29 que os generais voltaram às casernas. E agora, José, vivemos uma verdadeira democracia?

Devagar com o andor, pois o santo é de barro. Cracia, sim; mas demo… Os generais deixaram o poder. Não de ter poder. Falam grosso nos quartéis e ainda têm a petulância de batizar turmas de formandos de Agulhas Negras com o nome de “Emílio Garrastazu Médici”, o mais sanguinário de todos os ditadores.

Comissões da Verdade trabalham arduamente para apurar os crimes da ditadura. Como não são também da Justiça, atuam manietadas. Não têm poder nem projeto de punir ninguém. “Homem mau dorme bem”, intitula-se um filme de Akira Kurosawa. O que dá às Forças Armadas a prerrogativa de não prestar satisfações à nação e manter sob sigilo os arquivos do regime militar, como fazem com os documentos da Guerra do Paraguai. Mas ninguém escapa de prestar contas à história…

Passadas quase três décadas do fim da ditadura, o Brasil nem sacudiu a poeira nem deu a volta por cima. Quem é hoje a figura majestática do PMDB, o maior partido do Brasil e principal aliado do governo petista? José Sarney. Quem era o presidente da Arena, partido de respaldo à ditadura e aos crimes por ela cometidos? José Sarney.

Nossas estruturas ainda conservam fortes resquícios dos 21 anos (1964-1985) de atrocidades. Em especial na política, que mantém o mesmo número de senadores por estado, malgrado a desproporção populacional, e aprova o financiamento de campanhas eleitorais por empreiteiras, bancos e empresas. Sei que nem tudo é como dantes – temos pluripartidarismo e a Constituição de 1988 – mas ainda trafegamos à sombra do quartel de Abrantes.

Houve mudanças! O impossível aconteceu: Lula eleito presidente e o PT há 11 anos no poder. Lá chegou graças aos movimentos sociais que minaram os alicerces da ditadura. Como já disse, o poder, a cracia, ganhou novos protagonistas. Porém, a demo… o povo ficou de fora!

Nossa democracia ainda é predominantemente delegativa (delega-se, pelo voto, poder ao eleito); tendenciosamente representativa (vide os lobbies do agronegócio e dos grandes meios de comunicação); e nada participativa.

A social-democracia chegou ao Brasil, paradoxalmente, pelas mãos do PT, e não do PSDB. A pobreza extrema sofreu significativa redução; a escolaridade ampliou-se; a saúde socorreu-se na importação de médicos estrangeiros. No Nordeste, trocou-se o jegue pela moto. A inflação ficou sob controle; o salário mínimo teve crescimento expressivo; a linha branca, desonerada e facilitada pelo crédito, encheu os domicílios populares de geladeiras, fogões e máquinas de lavar.

Quem nunca comeu melado… Cadê os benefícios sociais? Transporte coletivo precário e congestionado; saúde pública infeccionada por falta de recursos; educação sem qualidade; segurança despreparada e insuficiente.

Em 11 anos de governo petista, nenhuma reforma de estruturas. Nem a agrária, nem a política, nem a tributária. Como fazia a ditadura, os megaprojetos atropelam as exigências ambientais (transposição do São Francisco; hidrelétricas como Belo Monte; Copa), enquanto a Amazônia perde o fôlego asfixiada por lavouras movidas a agrotóxicos e ampliação dos pastos abertos a serra elétrica.

Eis que, de repente, o Brasil se dá conta de que não está deitado em berço esplendido. E o gigante adormecido acorda… nas manifestações de rua!

Se os 11 anos de governo petista promoveram considerável inclusão econômica, falta propiciar a participação política. Ao contrário, temos um governo despolitizante, que acredita que só de pão vive o homem… Nada estranho que haja arruaças em manifestações.

Ainda somos o país do futuro… O presente requer um novo projeto Brasil.

* Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.
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O golpe

Frei Betto *

São vivas minhas lembranças da quartelada de 1964. Desde 1962 eu trocara Belo Horizonte pelo Rio. Jânio Quadros, em agosto de 1961, havia renunciado à presidência da República. Jango, seu vice, tomou posse.

O Brasil clamava por reformas de base: agrária, política, tributária etc. No Rio Grande do Sul, o deputado federal e ex-governador daquele estado, Leonel Brizola, cunhado de Jango, advertia sobre o perigo de um golpe de Estado.

Em Pernambuco, Miguel Arraes contrariava usineiros e latifundiários e imprimia a seu governo um caráter popular. Em Angicos (RN), Paulo Freire gestava sua pedagogia do oprimido.

O MEB (Movimento de Educação de Base) dava os primeiros passos apoiado pela ala progressista da Igreja Católica. A UNE multiplicava, por todo o pais, os CPC (Centros Populares de Cultura).

Novo era o adjetivo que consubstanciava o Brasil: cinema novo; bossa nova; nova poesia; nova capital…

A luta heroica dos vietnamitas, o êxito da Revolução Cubana (1959) e o fracasso dos EUA ao tentar invadir Cuba pela Baía dos Porcos (1961) inquietavam a Casa Branca. “A América para os americanos”, reza a Doutrina Monroe. A maioria dos ianques não entende que está incluído no termo “América”  todo o nosso Continente mas só eles são considerados “americanos”.

Era preciso dar um basta à influência comunista, inclusive no Brasil. E tudo que não coincidia com os interesses dos EUA era tachado de “comunista”, até mesmo bispos como Dom Helder Camara, que clamava por um mundo sem fome. Foi apelidado de “o bispo vermelho”.

Trouxeram dos EUA o padre Peyton, pároco de Hollywood. De rosário em mãos e bancado pela CIA, ele arrastava multidões nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Manipulava-se o sentimento religioso do povo brasileiro como caldo de cultura favorável à quartelada.

A 13 de março de 1964, Jango promoveu um megacomício na Central do Brasil, no Rio, defronte o prédio do Ministério do Exército. Ali, ovacionado pela multidão, assinou os decretos de apropriação, pela Petrobras, de refinarias privadas, e desapropriação, para fins de reforma agrária, de terras subutilizadas. As elites brasileiras entraram em pânico.

Em 31 de março, terça-feira, as tropas do general Olimpio Mourão Filho, oriundas de Minas, ocuparam os pontos estratégicos do Rio. Jango, após passar por Brasília e Porto Alegre, deposto da presidência, refugiou-se no Uruguai. Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu o comando do país e, pressionado pelos militares, convocou eleições indiretas. A 11 de abril, o Congresso Nacional elegeu o marechal Castelo Branco presidente da República. Estava consolidado o golpe.

A máquina repressiva começou a funcionar a todo vapor: Inquéritos Policiais Militares foram instalados em todo o país; a cassação de direitos políticos atingiu sindicalistas, deputados, senadores e governadores; uma simples suspeita ecoava como denúncia e servia de motivo para um cidadão ser preso, torturado ou mesmo assassinado.

Os estudantes e alguns segmentos da esquerda histórica resistiram nas ruas do Brasil. Foram recebidos a bala. A reação da ditadura acuou seus opositores na única alternativa viável naquela conjuntura: a luta armada. Em dezembro de 1968, o governo militar assina o Ato Institucional nº 5, suprimindo o pouco de espaço democrático que ainda restava e legitimando a prisão, a tortura, o banimento, o sequestro e o assassinato de quem lhe fizesse oposição ou fosse simplesmente suspeito.

Muitos são os sinais de que se vivia sob uma ditadura. Este foi insólito: há no centro do Rio uma região conhecida como Castelo. E, na Zona Norte, um bairro chamado Muda (porque, outrora, ali trocavam as parelhas de cavalos que puxavam os bondes que ligavam a Tijuca ao Alto da Boa Vista).

Em 1964, no letreiro de uma linha de ônibus carioca a indicação: Muda-Castelo. Os milicos não gostaram: o marechal viera para ficar. Pressionada, a empresa inverteu o letreiro: Castelo-Muda. Ficou pior. Cancelaram a linha…

* Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros.
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Pela redução das desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho

No dia 8 de março comemora-se o Dia Internacional da Mulher. A data está relacionada à luta grevista de mulheres trabalhadoras[1] por melhores condições de emprego, salários e vida. Desde os primeiros movimentos paredistas até agora, as mulheres conseguiram avanços no que diz respeito ao direito de inserir-se no mercado de trabalho. Porém, apesar disso, a desigualdade de condições de trabalho entre homens e mulheres ainda se faz bastante perceptível. Uma de suas maiores manifestações se traduz nas expressivas disparidades salariais.

De acordo com os dados de 2012 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE, as mulheres brasileiras ocupadas recebiam como fruto de seu trabalho R$ 1.116 mensais, em média. Este valor corresponde a 70 % do valor médio de R$ 1.589 percebido pelos homens no mesmo ano.

No estado do Rio de Janeiro, apesar das remunerações médias serem superiores à média nacional, a disparidade entre homens e mulheres persiste. Enquanto o rendimento médio mensal dos homens ocupados era de R$ 1.939, no ano de 2012, as mulheres ocupadas percebiam R$ 1.394 mensais, ou seja, 72 % do valor recebido pelos trabalhadores do sexo masculino.

Os dados da PNAD referentes à distribuição salarial evidenciam ainda mais o problema. No Brasil, em 2012, 28 % dos ocupados recebiam até um salário mínimo (R$ 622 a época). Dentre os homens, 24 % recebiam salários até este valor e entre as mulheres esta proporção chegava a 33 % . No Rio de Janeiro, novamente o fenômeno se repete, sendo a disparidade ainda maior. Enquanto 13 % dos homens recebiam até um salário mínimo, entre as mulheres este número chegava a 28 % .

Os baixos salários praticados no Brasil são um problema para toda a classe trabalhadora, sendo ainda mais agudo para as mulheres. Em 2012, do total de brasileiros ocupados 62 % recebiam rendimentos de até dois salários mínimos (R$ 1.244,00). Considerando apenas as mulheres, 67 % das ocupadas recebiam rendimentos menores ou iguais a este valor. Dos trabalhadores fluminenses, 58 % dos ocupados não recebiam mais do que dois salários mínimos – percentual ainda muito elevado, porém melhor do que a média nacional. Entretanto, no caso das mulheres fluminenses, repetem-se os mesmos 67 % de ocupadas com rendimentos de até dois salários mínimos.

As diferenças salariais são sintomáticas de outras disparidades. As mulheres ascendem menos a cargos de direção e chefia, estão mais inseridas em formas precárias de ocupação e também em atividades que ainda carecem do reconhecimento tanto social quanto econômico de sua importância, como por exemplo, nos serviços de cuidado domiciliar de doentes, idosos e crianças[2].

A negociação coletiva, instância que possibilita avanços em relação à legislação, têm sido um importante espaço de discussão e implementação de ações que podem permitir o questionamento da natureza assimétrica das condições de trabalho por gênero e também o avanço em direção ao seu enfrentamento.  De acordo com a pesquisa SACC-DIEESE, no que se refere ao trabalho da mulher e às questões de gênero, verifica-se desde o inicio dos anos 2000 um aumento do número de cláusulas nos contratos coletivos de trabalho. No tocante aos avanços percebidos nesse período, destacam-se as cláusulas relativas à gestação (estabilidade da gestante) e as cláusulas de garantias da maternidade e paternidade (creche, acompanhamento dos filhos e licença paternidade).

Portanto, se faz necessária e urgente a mobilização do movimento sindical brasileiro em torno das lutas e medidas de enfrentamento das questões de gênero no mercado de trabalho nacional, com objetivo de ampliar os avanços nas condições de trabalho da mulher, além de buscar a igualdade de oportunidades de ingresso e ascensão profissional no mercado de trabalho.

Distribuição das pessoas ocupadas na semana de referência, por classes de rendimento
mensal do trabalho (em salários mínimos de 2012 – R$ 622,00), segundo o sexo
Estado do Rio de Janeiro – 2012 (em % )


 







Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2012.





[1] Há controvérsias sobre a origem do Dia Internacional da Mulher. Uns atribuem a manifestações de trabalhadoras russas em 1917, que teria culminado na Revolução Russa. Outros atribuem a outro movimento grevista, mas desta vez nos Estados Unidos, em 1857, sufocado com a morte de mais de 100 trabalhadoras presas e incendiadas numa fábrica de tecidos.

[2] A este respeito a socióloga brasileira Helena Hirata diz que a inserção feminina em atividades para as quais as mulheres possuem apenas “qualidades” inatas ou naturais e não qualificações adquiridas pela formação profissional desvaloriza o trabalho feminino (HIRATA, Helena. A precarização e a divisão internacional e sexual do trabalho. Sociologias, vol. 11, núm. 21, junho, 2009, pp. 24-41. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Brasil).

Fonte: Dieese-RJ

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Igreja Católica e o golpe de 1964

Frei Betto *



Sabemos que o povo latino-americano é profundamente religioso. Pergunte a um pequeno agricultor qual a sua visão de mundo e, com certeza, receberá uma resposta de caráter religioso.



Sabemos todos? Quase todos. Exceto certa parcela da esquerda latino-americana que, influenciada pelo positivismo marxista europeu, se esqueceu de aplicar o método dialético ao fator religioso e, na contramão de Marx e Engels (vide O Cristianismo Primitivo, de Engels) considerou tudo o que cheira a água benta e incenso pura alienação a ser duramente combatida. E o pior: incluíram nos estatutos de seus partidos a exigência de o novo militante declarar-se formalmente ateu… Ou seja, primeiro, ateu; depois, revolucionário.



Já a direita, mais inteligente em sua esperteza, sempre soube explorar o fator religioso em seu proveito. Assim, para evitar que Jango implementasse no Brasil reformas de base (estruturais) evocou a proteção anticomunista de Nossa Senhora Aparecida e importou dos EUA o padre Peyton que promoveu aqui, nas principais capitais, Marchas da Família com Deus pela Liberdade.



Veio o golpe militar, a 1º de abril de 1964, e não era mentira… Jango foi deposto e a sanha repressiva se disseminou pelo Brasil.



Como membro da direção nacional da Ação Católica, participei no Rio, no Convento do Cenáculo, na rua Pereira da Silva, em Laranjeiras, da reunião da CNBB na qual os bispos católicos definiram sua posição frente à quartelada. Houve acalorada discussão entre progressistas e conservadores. De um lado, Dom Helder Camara, bispo auxiliar do Rio, apoiado por Dom Carlos Carmelo Mota, arcebispo de São Paulo e presidente da CNBB, criticaram os militares por desrespeito à Constituição e à ordem democrática. De outro, Dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, e Dom Geraldo Sigaud, arcebispo de Diamantina (MG), exigiam Te Deum por ter a Virgem de Aparecida escutado os clamores do povo e livrado o Brasil da ameaça comunista. Venceu esta segunda posição. A CNBB deu seu apoio oficial aos militares golpistas.



Porém, não há mal que sempre dure. Àquela altura, um amplo setor da Igreja Católica já estava comprometido com a resistência à ditadura. Esta não soube perceber a diferença entre católicos progressistas e conservadores. Cometeu o equivoco de considerar a Igreja uma instituição monolítica, de poder centralizado, unívoco, que tacitamente acendia uma vela a Deus e outra ao diabo…



O germe do progressismo católico no Brasil havia sido semeado pela Ação Católica, influenciada pela Ação Católica francesa que, na Segunda Guerra, participou da resistência ao nazismo em aliança com os comunistas. Aqui, a JEC (Juventude Estudantil Católica) e a JUC (Juventude Universitária Católica) se destacavam na luta por justiça no movimento estudantil. Desses movimentos nasceu a Ação Popular, na qual os militantes católicos de esquerda atuavam sem prestar contas aos bispos nem comprometer a instituição eclesiástica.



Na primeira semana de junho de 1964, dois meses após o golpe, o CENIMAR, serviço secreto da Marinha, promoveu no Rio o arrastão destinado a prender militantes da Ação Popular. Para ele não havia diferença entre Ação Católica e Ação Popular. O apartamento da direção nacional da Ação Católica, da JUC e da JEC, vizinho do Convento do Cenáculo, foi invadido na madruga de 5 para 6 de junho de 1964. Fomos todos presos.



Em outras regiões do país, leigos, religiosos(as) e padres foram perseguidos, presos e/ou convocados a depor em IPMs (Inquérito Policial Militar).



Logo a repressão percebeu que nem toda a Igreja apoiava o golpe. Havia até mesmo bispos e cardeais críticos à ditadura e dispostos a defender os direitos humanos. Muitos se engajaram em ações de resistência, seja proferindo sermões tidos como “subversivos”, seja escondendo perseguidos políticos.



A partir da prisão dos frades dominicanos aliados à Ação Libertadora Nacional comandada por Carlos Marighella, em novembro de 1969 (vide meu livro e filme de mesmo título, dirigido por Helvécio Ratton, Batismo de Sangue), aprofundou-se o conflito entre Estado e Igreja Católica. A CNBB, já então hegemonizada por bispos progressistas, emitiu documentos em defesa dos direitos humanos e da democracia, e o papa Paulo VI respaldou os religiosos encarcerados.



Em São Paulo, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns criou, a partir de 1970, uma vasta articulação de resistência e crítica à ditadura, e defesa dos direitos humanos: Comissão Justiça e Paz, equipe Clamor, jornal O São Paulo, culminando na publicação do mais consistente documento antiditadura produzido até hoje, o livro Brasil Nunca Mais, no qual os crimes da ditadura são divulgados com base, não em notícias de jornais, e sim em documentos oficiais elaborados pelas Forças Armadas.


 


* Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto


 





Copyright 2014 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los, propomos assinar todos os artigos do escritor. Contato – MHGPAL – Agência Literária (
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Fonte: Frei Betto

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Meu 1º de abril de 1964

Frei Betto *

Na data do golpe militar, eu participava em Belém (PA) do congresso latino-americano de estudantes. Nunca havia vivido um golpe e, muito menos, uma ditadura. Meu pai, no entanto, sofrera sob o Estado Novo de Vargas, padecera prisão, e se vira obrigado a deixar o Rio e retornar a Minas ao assinar o Manifesto dos Mineiros.

Na capital paraense as notícias chegavam confusas e difusas. Pelas ruas, viaturas militares. Lideranças estudantis de outros países do Continente, já acostumadas a quarteladas, preferiram dissolver o congresso. Foi o salve-se quem puder…

Como membro da direção nacional da Ação Católica, eu estava hospedado na residência do arcebispo Dom Alberto Ramos, a convite de seu bispo auxiliar, Dom Milton Pereira. Este era progressista; o outro, conservador.

Na noite do 1º de abril, vi na TV o arcebispo dar loas à Virgem de Nazaré por livrar o Brasil do comunismo, e sugerir que entre seu clero havia quem sofresse influência marxista… Dom Milton aconselhou-me buscar refúgio fora dali.

Fui para a casa de Lauro Cordeiro, militante da JEC (Juventude Estudantil Católica). Ali, de ouvidos colados ao rádio, tentávamos avaliar o que ocorria no Sudeste do país. Jango fora deposto e buscara exílio no Uruguai. Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, assumira a presidência da República sob tutela dos militares. Estes impunham novas eleições presidenciais a 11 de abril, pelo voto apenas de membros do Congresso Nacional que ainda não haviam sido cassados.

Mas… cadê a resistência de toda aquela multidão que aplaudira Jango no megacomício de 13 de março, no Rio? E a militância do Partidão, onde se enfiara? A esquerda não bradava ser capaz de mobilizar milhares de trabalhadores em caso de ameaça de golpe? Por que as tropas comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho viera de Minas ao Rio sem se deparar com nenhum empecilho?

Nossos sonhos libertários se derretiam como os saborosos sorvetes da Tip Top, a mais famosa sorveteria da capital paraense. Após nove dias esperando a poeira baixar, decidi retornar ao Rio, onde morava.

Minha passagem aérea tinha sido cedida por Betinho, então chefe de gabinete do ministro da Educação, Paulo de Tarso dos Santos. Deparei-me com a agência da Varig repleta de pessoas afoitas por viajarem. Ao ser atendido, fui informado de que “estão canceladas todas as passagens de cortesia emitidas pelo governo anterior”. Sem dinheiro, me senti desamparado.

Na capa da passagem (outrora os bilhetes aéreos vinham encadernados) havia o carimbo de “Cancelado”. Rasguei a capa e estendi-a ao funcionário que avisava não ter mais assento vago em voos diretos para o Rio, a menos que o passageiro fizesse escala no Recife. Consegui embarcar.

Cheguei à capital pernambucana a 10 de abril, dia da posse de Dom Helder Camara como arcebispo de Olinda e Recife. Ele havia sido o responsável pela minha transferência de Minas para o Rio e cuidava da manutenção do apartamento das direções da JEC e da JUC (Juventude Universitária Católica).

Talvez por captar minha aflição, Dom Helder, após a missa de posse, deixou a recepção por alguns minutos para ouvir o relato do que eu presenciara em Belém. Em seguida, embarquei para o Rio, tomando assento ao lado de Dom Cândido Padin, bispo auxiliar do Rio e assessor nacional da Ação Católica.

Ao aterrissar no aeroporto Santos Dumont, o piloto avisou que todos deveriam permanecer a bordo, pois a Polícia Federal entraria para conferir a identidade de cada passageiro. Passei a Dom Padin todos os documentos do congresso de estudantes, temendo que fossem considerados subversivos. Ele os escondeu dentro do hábito beneditino.

Ao ingressar na aeronave, os policiais avistaram a figura episcopal: “O bispo pode desembarcar”, disseram. Todos os demais fomos identificados e revistados. Desembarquei ileso.

Na madrugada de 5 para 6 de junho de 1964, o apartamento da direção da Ação Católica foi invadido por agentes do CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). Fomos todos arrastados para o Comando Naval, no centro do Rio, e depois encarcerados no quartel dos fuzileiros navais, na Ilha das Cobras.

A ditadura me atingira na pele, pela primeira vez, para mais tarde me prender por quatro anos (1969-1973) e cassar por dez meus direitos políticos.

* Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.
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Fonte: Frei Betto

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Março de 64

Frei Betto *



Em 1964 eu morava no Rio, em um apertamento na esquina das ruas Laranjeiras e Pereira da Silva. Ali se instalavam os jovens dirigentes da JEC (Juventude Estudantil Católica) e da JUC (Juventude Universitária Católica), movimentos da Ação Católica. Ali se hospedavam, com frequência, os líderes estudantis Betinho, Vinicius Caldeira Brant e José Serra.



Eu havia ingressado no curso de Jornalismo na Universidade do Brasil (atual UFRJ) e, entre meus professores, se destacavam Alceu Amoroso Lima, Danton Jobim e Hermes Lima. À direita, Hélio Vianna, professor de história, cunhado do marechal Castelo Branco.



Desde que cheguei ao Rio, vindo de Minas, o Brasil vivia em turbulência política. Despertava o gigante adormecido em berço esplêndido. Tudo era novo sob o governo João Goulart: a bossa, o cinema, a literatura…



A Sudene, dirigida por Celso Furtado, aliada ao governador de Pernambuco, Miguel Arraes, redesenhava um Nordeste livre do mando coronelístico de usineiros e latifundiários. Francisco Julião defendia as Ligas Camponesas, que lutavam por reforma agrária.



Paulo Freire implantava, a partir de Angicos (RN), seu método de conscientização política dos pobres através da alfabetização. Gestava a pedagogia do oprimido.



No Sul, Leonel Brizola enfrentava os monopólios estrangeiros e defendia a soberania brasileira. Marinheiros e sargentos do Exército se organizavam, no Rio, para reivindicar seus direitos.



“Verás que um filho teu não foge à luta”. Porém, os filhos não tinham suficiente lucidez para perceber que, desde a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, vinha sendo chocado, pelas classes dominantes, o ovo da serpente…



A embaixada estadunidense, ainda instalada no Rio, e tendo à frente Lincoln Gordon, movia-se à sombra para atiçar os militares brasileiros – muitos deles treinados nos EUA – contra a ordem democrática (vide “Taking charge: the Johnson White House Tapes – 1963-1964”, de Michael Beschloss).



Quem conhece a história dos golpes de Estado na América Latina sabe que todos foram patrocinados pela Casa Branca. Daí a piada: nunca houve golpe nos EUA porque não há, em Washington, embaixada ianque…



Os EUA, inconformados com o êxito da Revolução Cubana em 1959, temiam o avanço do comunismo na América Latina. O presidente Lyndon Johnson (1963-1969) estava convencido de que o Brasil era tão vulnerável à influência soviética quanto o Vietnam.



Rios de dinheiro foram destinados a preparar as condições para o golpe de 1º de abril de 1964. Para os pobres, que tanto ansiavam por reformas estruturais (chamadas na época de “reformas de base”, e até hoje não realizadas), os EUA ofereciam as migalhas das cestas básicas distribuídas pela Aliança para o Progresso. O empresariado se articulava no IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e no IPES (Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais).



Os EUA sequer admitiriam que o Brasil se tornasse como o Egito de Nasser, um país independente das órbitas ianque e soviética. Navios estadunidenses da Operação Brother Sam rumavam em direção aos nossos portos.



Jango convocou o megacomício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil. Eu queria estar lá, mas padre Eduardo Koaik (mais tarde bispo de Piracicaba {SP} e colega de seminário de Carlos Heitor Cony) decidiu que aproveitaríamos o feriado para um dia de estudos da direção nacional da JEC, da qual eu fazia parte, em Itaipava (RJ).



Em 29 de março, com passagem cedida pelo Ministério da Educação (leia-se: Betinho, chefe de gabinete do ministro Paulo de Tarso dos Santos), embarquei para Belém. Na capital paraense, o golpe militar me surpreendeu dia 1º de abril de 1964. Custei a acreditar que o presidente Jango, constitucionalmente eleito, havia se refugiado no Uruguai.



Aguardei a tão propalada reação popular. O PCB (Partido Comunista Brasileiro), com quem a JEC mantinha alianças na política estudantil, garantira que, em caso de golpe, Prestes havia de convocar milhares de trabalhadores em armas.



A Ação Popular, movimento de esquerda oriundo da Ação Católica, prometia mobilizar seus militantes para defender a ordem democrática.



Esperei em vão. Reações isoladas, inclusive de altos oficiais das Forças Armadas, foram logo abafadas sem necessidade de um só disparo de arma de fogo. E ninguém acreditava que a ditadura duraria, a partir de 1o de abril de 1964, 21 anos.


 

* Frei Betto é escritor, autor de “Batismo de Sangue” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto






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Fonte: Frei Betto