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A ARTE DE REINVENTAR A VIDA

Finda o ano, inicia-se o novo. No íntimo, o propósito de “daqui pra frente, tudo vai ser diferente”… Começar de novo. Será? Haveremos de escapar do vaticínio do verso de Fernando Pessoa, “fui o que não sou”?


Atribui-se a Gandhi esta lista dos Sete Pecados Sociais: 1) Prazeres sem escrúpulos; 2) Riqueza sem trabalho; 3) Comércio sem moral; 4) Conhecimento sem sabedoria; 5) Ciência sem humanismo; 6) Política sem idealismo; 7) Religião sem amor.


E agora, José? No mundo em que vivemos, quanta esbórnia, corrupção, nepotismo, ciência e tecnologia para fins bélicos, práticas religiosas fundamentalistas, arrogantes e extorsivas!


Os ícones atuais, que pautam o comportamento coletivo, quase nada têm do altruísmo dos mestres espirituais, dos revolucionários sociais, do humanismo de cientistas como os dois Albert, o Einstein e o Schweitzer. Hoje, predominam as celebridades do cinema e da TV, as cantoras exóticas, os desportistas biliardários, a sugerir que a felicidade resulta de fama, riqueza e beleza.


Impossibilitada de sair de si, de quebrar seu egocentrismo (por falta de paradigmas), uma parcela da juventude se afunda nas drogas, na busca virtual de um “esplendor” que a realidade não lhe oferece. São crianças e jovens deseducados para a solidariedade, a compaixão, o respeito aos mais pobres. Uma geração desprovida de utopia e sonhos libertários.


A australiana Bronnie Ware trabalhou com doentes terminais. A partir do que viu e ouviu, elencou os cinco principais arrependimentos de pessoas moribundas:


1) Gostaria de ter tido a coragem de viver uma vida verdadeira para mim, e não a que os outros esperavam de mim.


No entardecer da vida, podemos olhar para trás e verificar quantos sonhos não se transformaram em realidade! Porque não tivemos coragem de romper amarras, quebrar algemas, nos impor disciplina, abraçar o que nos faz feliz, e não o que melhora a nossa foto aos olhos alheios. Trocamos a felicidade da pessoa pelo prestígio da função. E muitos se dão conta de que, na vida, tomaram a estrada errada quando ela finda. Já não há mais tempo para abraçar alternativas.


2) Gostaria de não ter trabalhado tanto.


Eis o arrependimento de não ter dedicado mais tempo à família, aos filhos, aos amigos. Tempo para lazer, meditar, praticar esportes. A vida, tão breve, foi consumida no afã de ganhar dinheiro, e não de imprimir a ela melhor qualidade. E nesse mundo de equipamentos que nos deixam conectados dia e noite somos permanentemente sugados; fazemos reuniões pelo celular até quando dirigimos carro; lidamos com o computador como se ele fosse um ímã eletrônico do qual é impossível se afastar.


3) Gostaria de ter tido a oportunidade de expressar meus sentimentos.


Quantas vezes falamos mal da vida alheia e calamos elogios! Adiamos para amanhã, depois de amanhã… o momento de manifestar o nosso carinho àquela pessoa, reunir os amigos para celebrar a amizade, pedir perdão a quem ofendemos e reparar injustiças. Adoecemos macerados por ressentimentos, amarguras, desejo de vingança. E para ficar bem com os outros, deixamos de expressar o que realmente sentimos e pensamos. Aos poucos, o cupim do desencanto nos corrói por dentro.


4) Gostaria de ter tido mais contato com meus amigos.


Amizades são raras. No entanto, nem sempre sabemos cultivá-las. Preferimos a companhia de quem nos dá prestígio ou facilita o nosso alpinismo social. Desdenhamos os verdadeiros amigos, muitos de condição inferior à nossa. Em fase terminal, quando mais se precisa de afeto, a quem chamar? Quem nos visita no hospital, além dos que se ligam a nós por laços de sangue e, muitas vezes, o fazem por obrigação, não por afeição? Na cultura neoliberal, moribundos são descartáveis e a morte é fracasso. E não se busca a companhia de fracassados…


5) Gostaria de ter tido a coragem de me dar o direito de ser feliz.


Ser feliz é uma questão de escolha. Mas, vamos adiando nossas escolhas, como se fossemos viver 300 ou 500 anos… Ou esperamos que alguém ou uma determinada ocupação ou promoção nos faça feliz. Como se a nossa felicidade estivesse sempre no futuro, e não aqui e agora, ao nosso alcance, desde que ousemos virar a página de nossa existência e abraçarmos algo muito simples: fazer o que gostamos e gostar do que fazemos.

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.



 


Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

Fonte: Frei Betto

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O Ovo da Serpente

por Frei Betto



 
 Não é preciso ser economista para perceber a grave turbulência que afeta a economia globalizada. Se a locomotiva freia, todos os vagões se chocam, contidos em seu avanço. E o Brasil, apesar do PIB de US$ 2,5 trilhões, ainda é vagão…
 Todo ano, desde 1980, cumpro a maratona de uma semana de palestras na Itália. Desde o início deste novo milênio eram evidentes os sintomas de que a próxima geração não desfrutará do mesmo nível de bem-estar dos últimos 20 anos. Nenhuma economia podia suportar tamanho consumismo e a monopolização crescente da riqueza. Agora, a realidade o comprova. A carruagem da Cinderela virou abóbora. A União Europeia patina no pântano…
 Muitas são as causas da atual crise econômica. Apontá-las com precisão é tarefa dos economistas que não cultivam a religião da  idolatria do mercado. Como leigo no assunto, arrisco o meu palpite.
 Desde os anos 80, a especulação se descolou da produção. O mundo virou um cassino global. Sem passaporte e sem vistos, bilhões de dólares trafegam livremente, dia e noite, em busca de investimentos rentáveis. Enquanto o PIB  do planeta é de US$ 62 trilhões, o cacife do cassino é de US$ 600 trilhões. A famosa bolha… Haja papel sem lastro!
 A lógica do lucro supera a da qualidade de vida. A estabilidade dos mercados é, para os governos centrais, mais importante que a dos povos. Salvar moedas, e não vida humanas.
 Todos sabemos como a prosperidade da Europa ocidental foi alcançada. Para se evitar o risco do comunismo, implantou-se o Estado de bem-estar social. Combinaram-se Estado provedor e direitos sociais. Reduziu-se a desigualdade social, e as famílias de trabalhadores passaram a ter acesso à escolaridade, assistência de saúde, carro e casa própria.
 Em contrapartida, para não afetar a robustez do capital, desregularam-se as relações de trabalho, desativou-se a luta sindical, sepultou-se a esquerda. Tudo indicava que a prosperidade, que batia à porta, viera para ficar.
 Não se deu a devida importância a um pequeno detalhe aritmético: se há duas galinhas para duas pessoas, e uma se apropria das duas, a outra fica a ver navios… E quando a fome bate, quem nada tem invade o espaço de quem muito acumulou.
 Assim, os pobres do mundo, atraídos pelo novo Eldorado europeu, foram em busca de um lugar ao sol. Ótimo, a Europa, como os EUA, necessitava de quem, a baixo custo, limpasse privadas, cuidasse do jardim, lavasse carros…
 A onda migratória viu-se reforçada pela queda do Muro de Berlim. A democracia política chegou ao Leste europeu desacompanhada da democracia econômica. Enquanto milhares tomaram o rumo de uma vida melhor no Ocidente, seus governos acreditaram que, para chegar ao Paraíso, era preciso ingressar na zona do euro.
 A Europa entrou em colapso. A culpa é de quem? Ora, crime de colarinho branco não tem culpado. Quem foi punido pela crise usamericana em 2008? Os desmatadores do Brasil não estão sendo anistiados pelo novo Código Florestal?
 Culpados existem. Todos, agora, se escondem sob a barra da saia do FMI. E nós, brasileiros, sabemos bem como este grande inquisidor da economia pune quem comete heresias financeiras: redução do investimento público; arrocho fiscal, desemprego, aumento de impostos, corte de direitos sociais, punição a países com déficit público etc.
 O descaramento é tanto que o pacote do FMI inclui menos democracia e mais intervencionismo. Quando Papandréu, primeiro-ministro da Grécia, propôs um plebiscito para ouvir a voz do povo, o FMI vetou a proposta, depôs o homem e nomeou Papademos, um tecnocrata, para o seu lugar. Também o governo da Itália foi ocupado por um tecnocrata. Como se o fim da crise dependesse de uma solução contábil.
 A história recente da Europa ensina que a crise social é o ovo da serpente – chocado pelo fascismo. Sobretudo quando a crise não é de um país, é de um continente. Não adiantam mobilizações em um país, é preciso que elas se expandam por toda a Europa. Mas como, se não existem sindicalismo combativo nem partidos progressistas?
 As mobilizações tipo Ocupem Wall Street servem para denunciar, não para propor, se não houver um projeto político. Quem se queixa do presente e teme o futuro, corre o risco de se refugiar no passado – onde se abrigam os fantasmas de Hitler e Mussolini.
 
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de “Conversa sobre fé e ciência” |(Agir), entre outros livros.

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Fonte: Frei Betto

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Espiritualidade e Religião

por: Frei Betto

Espiritualidade e religião se  complementam mas não se confundem. A espiritualidade existe desde que o ser  humano irrompeu na natureza, há mais de 200 mil anos. As religiões são  recentes, não ultrapassam 8 mil anos de existência.


 


A religião  é a institucionalização da espiritualidade, assim como a família é do amor. Há  relações amorosas sem constituir família. Do mesmo modo, há quem cultive sua  espiritualidade sem se identificar com uma religião. Há inclusive  espiritualidade institucionalizada sem ser religião, como é o caso do budismo,  uma filosofia de vida.


 


As religiões, em princípio, deveriam ser  fontes e expressões de espiritualidades. Nem sempre isso ocorre. Em geral, a  religião se apresenta como um catálogo de regras, crenças e proibições,  enquanto a espiritualidade é livre e criativa. Na religião, predomina a voz  exterior, da autoridade religiosa. Na espiritualidade, a voz interior, o  “toque” divino.


 


A religião é uma instituição; a espiritualidade,  uma vivência. Na religião há disputa de poder, hierarquia, excomunhões e  acusações de heresia. Na espiritualidade predominam a disposição de serviço, a  tolerância para com a crença (ou a descrença) alheia, a sabedoria de não  transformar o diferente em divergente.


 


A religião culpabiliza; a  espiritualidade induz a aprender com o erro. A religião ameaça; a  espiritualidade encoraja. A religião reforça o medo; a espiritualidade, a  confiança. A religião traz respostas; a espiritualidade suscita perguntas. As  religiões são causas de divisões e guerras; as espiritualidades, de  aproximação e respeito.


 


Na religião se crê; na espiritualidade se  vivencia. A religião nutre o ego, pois uma se considera melhor que a outra. A  espiritualidade transcende o ego e valoriza todas as religiões que promovem a  vida e o bem.



A religião provoca devoção; a espiritualidade,  meditação. A religião promete a vida eterna; a espiritualidade a antecipa. Na  religião, Deus, por vezes, é apenas um conceito; na espiritualidade, uma  experiência inefável.


 


Há fiéis que fazem de sua religião um fim e se  dedicam de corpo e alma a ela. Ora, toda religião, como sugere a etimologia da  palavra (religar), é um meio para amar o próximo, a natureza e a Deus. Uma  religião que não suscita amorosidade, compaixão, cuidado do meio ambiente e  alegria, serve para ser lançada ao fogo. É como flor de plástico, linda, mas  sem vida.


 


Há que tomar cuidado para não jogar fora a criança com a água  da bacia. O desafio é reduzir a distância entre religião e espiritualidade, e  precaver-se para não abraçar uma religião vazia de espiritualidade nem uma  espiritualidade solipsista, indiferente às religiões.


 


Há que fazer das  religiões fontes de espiritualidade, de prática do amor e da justiça, de  compaixão e serviço. Jesus é o exemplo de quem rompe com a religião  esclerosada de seu tempo, e vivencia e anuncia uma nova espiritualidade,  alimentada na vida comunitária, centrada na atitude amorosa, na intimidade com  Deus, na justiça aos pobres, no perdão. Dessa espiritualidade resultou o  cristianismo.


 


Há teólogos que defendem que o cristianismo deveria ser  um movimento de seguidores de Jesus, e não uma religião tão hierarquizada e  cuja estrutura de poder suga parte considerável de sua energia  espiritual.


 


O fiel que pratica todos os ritos de sua religião, acata os  mandamentos e paga o dízimo e, no entanto, é intolerante com quem não pensa ou  crê como ele, pode ser um ótimo religioso, mas carece de espiritualidade. É  como uma família desprovida de amor.


 


O apóstolo Paulo descreve  magistralmente o que é espiritualidade no capítulo 13 da Primeira Carta aos  Coríntios. E Jesus a exemplifica na parábola do Bom Samaritano  (Lucas 10, 25-37) e faz uma crítica mordaz à religião em Mateus  23.


 


A espiritualidade deveria ser a porta de entrada das religiões.  Antes de pertencer a uma Igreja ou a uma determinada confissão religiosa,  melhor propiciar ao interessado a experiência de Deus, que consiste em se  abrir ao Mistério, aprender a orar e meditar, penetrar o sentido dos textos  sagrados.


 


Frei Betto é escritor, autor de Um homem chamado  Jesus (Rocco), entre outros livros. 



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Fonte: Frei Betto

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Dimensão Holística da Ética

Frei Betto


 


Sócrates foi condenado à morte por heresia, como Jesus. Acusaram-no de pregar novos deuses aos jovens. Tal iluminação não lhe abriu os olhos diante do céu, e sim da Terra. Percebeu não poder deduzir do Olimpo uma ética para os humanos. Os deuses do Olimpo podiam explicar a origem das coisas, mas não ditar normas de conduta.

A mitologia, repleta de exemplos nada edificantes, obrigou os gregos a buscar na razão os princípios normativos de nossa boa convivência social. A promiscuidade reinante no Olimpo, objeto de crença, não convinha traduzir-se em atitudes; assim, a razão conquistou autonomia frente à religião. Em busca de valores capazes de normatizar a convivência humana, Sócrates apontou a nossa caixa de Pandora: a razão.


 


Se a moral não decorre dos deuses, então somos nós, seres racionais, que devemos erigi-la. Em Antígona, peça de Sófocles, em nome de razões de Estado, Creonte proibiu Antígona de sepultar seu irmão Polinice. Ela se recusou a obedecer “leis não escritas imutáveis, que não datam de hoje nem de ontem, que ninguém sabe quando apareceram”. Foi a afirmação da consciência sobre a lei, da cidadania sobre o Estado.


 


Para Sócrates, a ética exige normas constantes e imutáveis. Não pode ficar na dependência da diversidade de opiniões. Platão trouxe luzes ensinando-nos a discernir realidade e ilusão.  Em República, lembrou que para Trasímaco a ética de uma sociedade reflete os interesses de quem ali detém o poder. Conceito retomado por Marx e aplicado à ideologia.


 


O que é o poder? É o direito concedido a um indivíduo ou conquistado por um partido ou classe social de impor a sua vontade aos demais.


 


Aristóteles nos arrancou do solipsismo ao associar felicidade e política. Mais tarde, Santo Tomás de Aquino, inspirado em Aristóteles, nos deu as primícias de uma ética política, priorizando o bem comum e valorizando a soberania popular e a consciência individual como reduto indevassável.


 


Maquiavel, na contramão, destituiu a política de toda ética, reduzindo-a ao mero jogo de poder, onde os fins justificam os meios.


 


Para Kant, a grandeza do ser humano não reside na técnica, em subjugar a natureza, e sim na ética, na capacidade de se autodeterminar a partir da própria liberdade. Há em nós um senso inato do dever e não deixamos de fazer algo por ser pecado, e sim por ser injusto. E nossa ética individual deve se complementar pela ética social, já que não somos um rebanho de indivíduos, mas uma sociedade que exige, à boa convivência, normas e leis e, sobretudo, cooperação de uns com os outros.


 


Hegel e Marx acentuaram que a nossa liberdade é sempre condicionada, relacional, pois consiste numa construção de comunhões, com a natureza e os nossos semelhantes. Porém, a injustiça torna alguns dessemelhantes.


 


Nas águas da ética judaico-cristã, Marx ressaltou a irredutível dignidade de cada ser humano e, portanto, o direito à igualdade de oportunidades. Em outras palavras, somos tanto mais livres quanto mais construímos instituições que promovam a felicidade de todos.


 


A filosofia moderna fez uma distinção aparentemente avançada e que, de fato, abriu novo campo de tensão ao frisar que, respeitada a lei, cada um é dono de seu nariz. A privacidade como reino da liberdade total. O problema desse enunciado é que desloca a ética da responsabilidade social (cada um deve preocupar-se com todos) para os direitos individuais (cada um que cuide de si).


 


Essa distinção ameaça a ética de ceder ao subjetivismo egocêntrico. Tenho direitos, prescritos numa Declaração Universal, mas e os deveres? Que obrigações tenho para com a sociedade em que vivo? O que tenho a ver com o faminto, o excluído e o meio ambiente?


 


Daí a importância do conceito de cidadania. Os indivíduos são diferentes e numa sociedade desigual são tratados segundo sua importância na escala social. Já o cidadão, pobre ou rico, é um ser dotado de direitos invioláveis, e está sujeito à lei como todos os demais.


 


O capitalismo associa liberdade ao dinheiro, ou seja, ao consumo. A pessoa se sente livre enquanto satisfaz seus desejos de consumo e, através da técnica e da ciência, domina a natureza. A visão analítica não se pergunta pelo significado desse consumismo e pelo sentido desse domínio.


 


Agora, a humanidade desperta para os efeitos nefastos de seu modo de subjugar a natureza: o aquecimento global faz soar o alarme de um novo dilúvio que, desta vez, não virá pelas águas, e sim pelo fogo, sem chances de uma nova Arca de Noé.


 


A recente consciência ecológica nos amplia a noção de ethos. A  casa é todo o Universo. Lembrem-se: não falamos de Pluriverso, mas de Universo. Há uma íntima relação entre todos os seres visíveis e invisíveis, do macro ao micro, das partículas elementares aos vulcões. Tudo nos diz respeito e toda a natureza possui a sua racionalidade imanente.


 


Segundo Teilhard de Chardin, o princípio da ética é o respeito a todo o criado para que desperte suas potencialidades. Assim, faz sentido falar agora da dimensão holística da ética.


 


O ponto de partida da ética foi assinalado por Sócrates: a polis, a cidade. A vida é sempre processo pessoal e social. Porém, a ótica neoliberal diz que cada um deve se contentar com o seu mundinho.


 


Mas fica a pergunta de Walter Benjamin: o que dizer a milhões de vítimas de nosso egoísmo?


 


Frei Betto é escritor, autor  de “Sinfonia universal – a cosmovisão de Teilhard de Chardin”  (Vozes), entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.


 



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Fonte: Frei Betto

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Do Fundo do Poço

Vira e mexe, volta à baila o  tema da descriminalização das drogas. Uns opinam que com o sinal verde e a  legalização da venda e do consumo o narcotráfico perderia espaço e a saúde  pública cuidaria melhor dos dependentes, a exemplo do que se faz em relação ao  alcoolismo.


 Outros alegam que a maconha deveria ser liberada, mas  não as drogas sintéticas ou estupefacientes como crack, cocaína e ópio. 


 Não tenho posição formada. Pergunto-me se legalizar o plantio e  o comércio da maconha não seria um passo para, mais tarde, se deparar com  manifestações pela legalização do tráfico e consumo de cocaína e  ecstasy…


 Presenciei, em Zurique, no início dos anos 90, a  liberação do consumo de drogas no espaço restrito da antiga estação  ferroviária de Letten. Ali, sob auspícios da prefeitura, e com todo  atendimento de saúde, viciados injetavam cocaína, ópio, heroína, a ponto de o  local ficar conhecido como Parque das Agulhas. Em 1995, encerrou-se a  experiência. Apesar do confinamento, houve aumento do índice de viciados e da  criminalidade.


 Nem sempre o debate se pergunta pelas causas da  dependência de drogas. É óbvio que não basta tratar apenas dos efeitos. Aliás,  em matéria de efeitos, a minha experiência com dependentes, retratada no  romance “O Vencedor” (Ática), convenceu-me de que recursos médicos e  terapêuticos são importantes, mas nada é tão imprescindível quanto o afeto  familiar.


 Família que não suporta o comportamento esdrúxulo e  antissocial do dependente, comete grave erro ao acreditar que a solução reside  em interná-lo. Sem dúvida, por vezes isso se faz necessário. Por outras é o  comodismo que induz a família a se distanciar, por um período, do parente  insuportável. Dificilmente a internação resulta, além de desintoxicação, em  abstenção definitiva da droga. Uma vez fora das grades da proteção clínica, o  dependente retorna ao vício. Por quê?


 Sou de uma geração que, na  década de 1960, tinha 20 anos. Geração que injetava utopia na veia e,  portanto, não se ligava em drogas. Penso que quanto mais utopia, menos droga.  O que não é possível é viver sem sonho. Quem não sonha em mudar a realidade,  anseia por modificar ao menos seu próprio estado de consciência diante da  realidade que lhe parece pesada e absurda.


 Muitos entram na droga  pela via do buraco no peito. Falta de afeto, de autoestima, de sentido na  vida. Vão, pois, em busca de algo que, virtualmente, “preencha” o  coração.


 Assim como a porta de entrada na droga é o desamor, a de  saída é obrigatoriamente o amor, o cuidado familiar, o difícil empenho de  tratar como normal alguém que obviamente apresenta reações e condutas  anômalas.


 Do fundo do poço, todo drogado clama por transcender a  realidade e a normalidade nas quais se encontra. Todo drogado é um místico em  potencial. Todo drogado busca o que a sabedoria das mais antigas filosofias e  religiões tanto apregoa (sem que possa ser escutada nessa sociedade de  hedonismo consumista): a felicidade é um estado de espírito, e reside no  sentido que se imprime à própria vida.


 O viciado é tão consciente  de que a felicidade se enraíza na mudança do estado de consciência que, não a  alcançando pela via do absoluto, se envereda pela do absurdo. Ele sabe que sua  felicidade, ainda que momentânea, depende de algo que altere a química do  cérebro. Por isso, troca tudo por esse momento de “nirvana”, ainda que  infrinja a lei e corra risco de vida.


 Devemos, pois, nos  perguntar se o debate a respeito da liberação das drogas não carece de ênfase  nas causas da dependência química e de como tratá-las. Todos os místicos, de  Pitágoras a Buda, de Plotino a João da Cruz, de Teresa de Ávila a Thomas  Merton, buscaram ansiosamente isto que uma pessoa apaixonada bem conhece:  experimentar o coração ser ocupado por um Outro que o incendeie e arrebate.  Esta é a mais promissora das “viagens”. E tem nome:  amor.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com  Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de “Conversa sobre a fé e a ciência”  (Agir), entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.

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Redes Sociais e mobilizações

Frei Betto *


 


 


 


A 7 de setembro, data da independência do Brasil, ocorreu algo novo: as ruas foram ocupadas por mobilizações populares convocadas através da internet.


 


 


As pessoas saíram em passeatas para protestar contra a corrupção, o sucateamento da educação, e por reforma agrária e auditoria da dívida pública, entre outros temas. E fizeram questão de imprimir às manifestações caráter apartidário. Quem se atrevesse a desfilar com sigla de partido político era imediatamente rechaçado. Ali, no 7 de setembro, uniram-se o Grito dos Excluídos e o grito dos indignados.


 


 


As ruas do Brasil, até então acostumadas a ver, nos últimos tempos, apenas manifestações de evangélicos, gays e defensores da liberação da maconha, voltaram a ser palco de pressão política e reivindicação popular.


 


 


O poder convocatório das redes sociais é inegável. Elas possuem uma capilaridade que supera qualquer outro meio de comunicação. E carecem de censura ou editoração falaciosa.


 


 


Há, contudo, duas limitações que podem afetar seriamente os efeitos da mobilização internáutica. A primeira, a falta de proposta. Não basta gritar contra a corrupção ou aprovar a faxina operada pela presidente Dilma Rousseff. É preciso exigir reforma política, e propor critérios e métodos.


 


 


Reforma política com o atual Congresso – composto, em sua maioria, por parlamentares capazes de absolver uma deputada federal flagrada e filmada recebendo propina – é acreditar que Ali Babá é capaz de punir os 40 ladrões…


 


 


É preciso, primeiro, reformar, ou melhor, renovar o Congresso para, em seguida, obter reforma política minimamente decente. De modo que sejam instituídos mecanismos que ponham fim às duas irmãs gêmeas madrinhas da corrupção: a imunidade e a impunidade.


 


 


Essa renovação deve se iniciar, ano que vem, pela eleição de prefeitos e vereadores, todos submetidos ao crivo da Ficha Limpa, e pressionados a apresentar metas e objetivos, como propõe o Movimento Nossa São Paulo.


 


 


A segunda limitação é o caráter apartidário das manifestações. Em si, é positivo, pois impede que algo nascido da mobilização cidadã venha a se converter em palanque eleitoral deste ou daquele partido político.


 


 


Porém, na democracia não se inventou algo melhor para representar os anseios da população que partidos políticos. Eles fazem a mediação entre a sociedade e o Estado. O perigo é as manifestações não resultarem na eleição de candidatos eticamente confiáveis e ideologicamente comprometidos com as reformas de estruturas, como a política e a agrária. Ou desaguar no pior: o voto nulo.


 


 


Quem tem nojo de política é governado por quem não tem. E os maus políticos torcem para que tenhamos todos bastante nojo de política. Assim, eles ficam em paz, entretidos com suas maracutaias, embolsando o nosso dinheiro e ampliando suas mordomias e seus patrimônios.


 


 


As redes sociais são, hoje, o que a ágora era para os gregos antigos e a praça para os nossos avós – local de congraçamento, informação e mobilização. Foram elas que levaram tunisianos e egípcios às ruas para derrubar governos despóticos. São elas que divulgam, em tempo real, as atrocidades praticadas pelas tropas usamericanas no Iraque e no Afeganistão.


 


 


As redes sociais têm, entretanto, seu lado obscuro e perverso: a prostituição virtual de adolescentes que exibem sua nudez; o estímulo à pedofilia; a difusão de material pornográfico; o incitamento à violência; a propaganda de armas; o roubo virtual de senhas de cartões de crédito e contas bancárias.


 


 


Espero não tardar o dia em que as escolas introduzirão em seus currículos a disciplina Redes Sociais. Crianças e jovens serão educados no uso dessa importante ferramenta, aprimorando o olhar crítico, o senso ético e, em especial, a síntese cognitiva, de modo a extrair sentidos ou significações do incessante fluxo de informações e dados.


 


 


Graças à internet, qualquer usuário pode se arvorar, agora, em sujeito político e protagonista social, abandonando a passivo papel de mero espectador. Resta vencer o individualismo e o comodismo e sair à rua para congregar-se em força política.


 


 


 





 


* Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org   twitter: @freibetto


 


 


 


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Minas do Ouro

Frei Betto*

No início dos anos 80, engravidei da pulsão de  escrever um romance sobre a história de Minas Gerais. É assim: o tema de uma  obra de ficção nos agarra na esquina da vida. É como paixão à primeira vista.  Ou a “eureka” dos gregos. Súbito, brota a ideia, e ela impregna o sentimento e  gruda nas dobras da subjetividade. Ali germina até que se consiga dar vazão à  pulsão.

Meu projeto inicial era escrever um  romance ambientado na mina de Morro Velho, em Nova Lima. Ali acampei quando  escoteiro. Dali ouvi histórias mirabolantes de desabamentos, inundações,  mortes, e muita pobreza em meio à riqueza gerada pela mais profunda mina de  ouro do mundo.

A cozinheira de minha família, Ana, era de Raposos e,  seus parentes, quase todos empregados da Morro Velho. Dela escutei incríveis  relatos do que ocorria naqueles subterrâneos em que se extraíam ouro das  galerias e saúde dos trabalhadores.

Graças à colaboração de Christina Fonseca e Maione R.  Batista, entrevistei ex-empregados da mina e, em especial, Dazinho, líder  sindical de Morro Velho que se elegeu deputado estadual e, mais tarde, teve o  mandato cassado pela ditadura, que o levou à prisão.

Tive acesso a livros raros sobre a história da mina, a  manuscritos antigos, a mapas e até papéis de contabilidade, e retornei a ela  um par de vezes.

Uma coisa leva à outra. De Morro Velho minha pesquisa  se ampliou para a história das Minas e das Gerais. Devorei, calculo, cerca de  120 livros, entre os quais o Códice Matoso, Autos da devassa, os  volumes das coleções Mineiriana e Brasiliana, textos de Diogo de Vasconcelos,  Lúcio dos Santos, Iglesias, Boschi, Neusa Fernandes, Laura de Mello e Souza,  Myriam A. Ribeiro de Oliveira, Júnia Ferreira Furtado  etc.

Em 1997 iniciei a redação de Minas do  Ouro. Havia que transformar os dados coletados em texto literário.  Escrever é como cozinhar: reúnem-se os ingredientes e, em seguida, faz-se a  mistura (aqui, o talento do escritor) e deixe fermentar até que a massa chegue  ao ponto (aqui, o estilo, o “sotaque” narrativo). Admito que os Sermões  do padre Antônio Vieira me inspiraram na busca da linguagem adequada a cada  período dos cinco séculos que o romance abrange.

Foram 13 anos de trabalho, sempre de olho nas  novidades editadas sobre a história de Minas, como os textos de Luciano  Figueiredo e a História de Minas Gerais – As Minas Setecentistas,  organizado por Maria Efigênia Lage de Resende e Luiz Carlos  Villalta.

Não é fácil elaborar um romance  histórico. Meu primeiro foi Um homem chamado Jesus (Rocco), em que  descrevo a vida do homem de Nazaré. Ali enfrentei o desafio de tratar de um  personagem cuja trajetória o leitor conhece de antemão.

Qualquer desatenção e a narrativa vira ensaio amador  com pitadas de ficção. Os fatos históricos de Minas são tão empolgantes  (bandeiras, guerra dos emboadas, Triunfo eucarístico, conjuração etc), que no  percurso se é tentado a deixar a realidade dos fatos falar mais alto que os  voos da imaginação.

Como não sou historiador, tratei de centrar a  narrativa na saga da família Arienim. Os fatos históricos de Minas ficaram  como pano de fundo. Os leitores dirão se acertei na receita e se ficou  saborosa. Fora os cabotinos, nenhum autor é juiz da própria  obra.

Minas do Ouro é uma narrativa de  anti-heróis. Romances históricos – gênero surgido na Inglaterra no século 18 –  costumam exaltar protagonistas, incensar poderosos, ocultar fraquezas e  desacertos de figuras célebres.

Em Minas do Ouro procurei demitizar personagens  históricos, situá-los com os pés no chão e não nos pedestais dos heróis da  pátria, e realçar a inusitada trajetória da família Arienim em busca de um  tesouro que produziria a alquimia de suas vidas.

Resta acrescentar que meu encanto pela história da  terra em que nasci se aprofundou graças à influência de meu pai, Antônio  Carlos Vieira Christo, de cuja biblioteca herdei boa parte da bibliografia  concernente ao romance, e de Tarquínio Barbosa de Oliveira, historiador, em  cuja Fazenda do Manso, em Ouro Preto, passei inesquecíveis  temporadas.




* Frei Betto é escritor, autor de Minas do Ouro,  que a editora Rocco faz chegar esta semana às livrarias. http://www.freibetto.org/    twitter:@freibetto.

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Fonte: Frei Betto

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Grito dos Excluídos 2011


Frei Betto* 


 



Há 17 anos a Semana da Pátria é dedicada, no Brasil, à  manifestação popular conhecida como Grito dos Excluídos. Ele é  promovido pelo Setor de Pastoral Social da CNBB, Comissão Pastoral da Terra,  Cáritas, Ibrades e outros movimentos e instituições.


 


O lema do 17o Grito é “Pela vida grita a Terra… Por  direitos, todos nós!” Trata-se de associar a preservação ambiental do planeta  aos direitos do povo brasileiro.


 


O salário mínimo atual – R$ 545,00 – possui, hoje,  metade do valor de compra de quando foi criado, em 1940. Para equipará-los,  precisaria valer R$ 1.202,80. Segundo o DIEESE, para atender as necessidades  básicas de uma família de quatro pessoas, conforme prescreve o art. 7 da  Constituição, o atual salário mínimo deveria ser de R$ 2.149,76.


 


As políticas sociais do governo são, sem dúvida,  importantes. Mas não suficientes para erradicar a miséria. Isso só se consegue  promovendo distribuição de renda através de salários justos, e não mantendo  milhões de famílias na dependência de recursos do poder  público.


 


O Brasil começa a ser atingido pela crise  financeira internacional. Com a recessão nos países ricos, nossas exportações  tendem a diminuir. O único modo de evitar que o Brasil também caia na recessão  é aquecendo o consumo interno – o que significa aumento de salários e de  crédito, e redução dos juros.


 


A população extremamente pobre do Brasil é estimada em  16 milhões de pessoas. Dessas, 59 % (9,6 milhões de pessoas) estão concentradas  no Nordeste.


 


Dos que padecem pobreza extrema no  Brasil, 51 % têm menos de 19 anos e, 40 % , menos de 14. O desafio é livrar essas  crianças e jovens da carência em que vivem, propiciando-lhes educação e  profissionalização de qualidade.


 


Um dos fatores que impedem nosso governo de destinar  mais investimentos aos programas sociais e à educação e saúde é a dívida  pública. Hoje, a dívida federal, interna e externa, ultrapassa R$ 2 trilhões.  Em 2010, o governo gastou, com juros e amortizações dessa dívida, 44,93 % do  orçamento geral da União.


 


Quem lucra e quem perde com as dívidas do governo? O  Grito dos Excluídos propõe, há anos, uma auditoria das dívidas interna  e externa. Ninguém ignora que boa parcela da dívida é fruto da mera  especulação financeira. Como aqui os juros são mais altos, os especuladores  estrangeiros canalizam seus dólares para o Brasil, a fim de obter maior  rendimento.


 


Há um aspecto da realidade brasileira que  atende à dupla dimensão do lema do Grito deste ano: preservação  ambiental e direitos sociais. Trata-se da reforma agrária. Só ela poderá  erradicar a miséria no campo e paralisar o progressivo desmatamento da  Amazônia e de nossas florestas pela ambição desenfreada do latifúndio e do  agronegócio.


 


Dados do governo indicam que, no Brasil,  existem, hoje, 62,2 mil propriedades rurais improdutivas, abrangendo área de  228,5 milhões de ha (hectares). Mera terra de negócio e, portanto, segundo a  Constituição, passível de desapropriação.


 


Comparados esses dados de 2010 aos de 2003,  verifica-se que houve aumento de 18,7 % no número de imóveis rurais ociosos, e  a área se ampliou em 70,8 % .


 


Se o maior crescimento de áreas improdutivas ocorreu  na Amazônia, palco de violentos conflitos rurais e trabalho escravo,  surpreende o incremento constatado no Sul do país. Em 2003, havia nesta região  5.413 imóveis classificados como improdutivos. Ano passado, o número passou  para 7.139 imóveis – aumento de 32 % . São 5,3 milhões de ha improdutivos em  latifúndios do Sul do Brasil!


 


De 130,5 mil grandes propriedades rurais cadastradas  em 2010, com área de 318,9 milhões de ha, 23,4 mil, com área de 66,3 milhões  de ha, são propriedades irregulares – terras griladas ou devolutas (pertences  ao governo), em geral ocupadas por latifúndios.


 


O Brasil tem, sim, margem para uma ampla reforma  agrária, sem prejuízo dos produtores rurais e do agronegócio. Com ela, todos  haverão de ganhar – o governo, por recolher mais impostos; a população, por  ver reduzida a miséria no campo; os produtores, por multiplicarem suas safras  e rebanhos, e venderem mais aos mercados interno e  externo.


 


 





* Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do  Ouro” (Rocco), entre outros livros.  http://www.freibetto.org/    twitter:@freibetto.


 


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Fonte: Frei Betto

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Corrupção: endemia política

 


Frei Betto 



A  política  brasileira sempre se alimentou do dinheiro  da corrupção. Não   todos os políticos. Muitos são íntegros, têm vergonha na  cara  e lisura  no bolso. Porém, as campanhas são caras, o candidato não  dispõe  de  recursos ou evita reduzir sua poupança, e os  interesses privados no   investimento público são  vorazes.
            
Arma-se, assim, a  maracutaia. O   candidato promete, por baixo dos panos, facilitar  negócios  privados junto à  administração pública. Como por encanto,   aparecem os recursos de campanha.  
            
Eleito, aprova   concorrências sem licitações, nomeia indicados  pelo  lobby da  iniciativa privada, dá sinal verde a projetos   superfaturados e embolsa  o seu quinhão, ou melhor, o milhão.   
            
Para uma empresa que  se propõe a fazer uma obra  no valor de R$  30 milhões – e na qual, de  fato, não gastará  mais de 20, sobretudo em tempos  de terceirização – é  excelente  negócio embolsar 10 e ainda repassar 3 ou 4 ao  político que   facilitou a negociata.
            
Conhecemos todos a qualidade   dos  serviços públicos. Basta recorrer ao SUS ou confiar os  filhos à escola   pública. (Todo político deveria ser obrigado,  por lei, a tratar-se  pelo SUS e  matricular, como propõe o  senador Cristovam Buarque, os  filhos em escolas  públicas).  Vejam ruas e estradas: o asfalto cede com  chuva um pouco mais   intensa, os buracos exibem enormes bocas, os  reparos são  frequentes. Obras  intermináveis…
            
Isso me  lembra  o conselho de um preso comum,  durante o regime militar, a meu   confrade Fernando de Brito, preso político:  “Padre, ao sair da  cadeia  trate de ficar rico. Comece a construir uma igreja.   Promova  quermesses, bingos, sorteios. Arrecade muito dinheiro  dos fiéis. Mas   não seja bobo de terminar a obra. Não termine  nunca. Assim o senhor  poderá  comprar fazendas e viver numa  boa.”
            
Com o perdão  da rima, a ideia  que se tem é  que o dinheiro público não é de ninguém.  É de quem meter a mão   primeiro. E como são raros os governantes que,  como a  presidente Dilma, vão  atrás dos ladrões, a turma do Ali Babá se   farta.
            
Meu pai contava  a história de um político  mineiro  que enriqueceu à base de propinas. Como  tinha apenas  dois filhos,  confiou boa parcela de seus recursos (ou melhor,   nossos) à conta de um  genro, meio pobretão. Um dia, o  beneficiário decidiu se  separar da  mulher. O ex-sogro foi  atrás: “Cadê meu dinheiro?” O ex-genro fez   aquela cara de  indignado: “Que dinheiro? Prova que há dinheiro seu  comigo.”    Ladrão que rouba ladrão… Hoje, o ex-genro mora com a   nova mulher num  condomínio de alto luxo.
            
Sou  cético  quanto à ética dos políticos  ou de qualquer outro grupo  social,  incluídos frades e padres. Acredito, sim,  na ética  da política,  e não na política. Ou seja, criar   instituições e mecanismos que  coíbam quem se sente tentado a  corromper ou ser  corrompido, A carne é  fraca, diz o Evangelho.  Mas as instituições devem ser  suficientemente  fortes, as  investigações rigorosas e as punições severas. A  impunidade   faz o bandido. E, no caso de políticos, ela se soma à imunidade.   Haja  ladroeira!
            
Daí a urgência da reforma  política – tema que   anda esquecido – e de profunda reforma do  nosso sistema judiciário.   Adianta  a Polícia Federal prender  se, no dia  seguinte,  todos voltam à rua ansiosos por destruir provas?  E ainda se gasta   saliva quanto ao uso de algemas, olvidando os milhões   surrupiados… e jamais  devolvidos aos cofres   públicos.
            
Ainda que o suspeito fique em   liberdade, por  que a Justiça não lhe congela os bens e o  impede de movimentar  contas  bancárias? A parte mais sensível  do corpo humano é o bolso. Os   corruptos sabem muito bem o  quanto ele pode ser agraciado ou   prejudicado.
            
As  escolas deveriam levar casos de corrupção  às  salas de aula.  Incutir nos alunos a suprema vergonha de fazer uso  privado dos   bens coletivos. Já que o conceito de pecado deixou de  pautar a  moral social,  urge cultivar a ética como normatizadora do   comportamento. Desenvolver em  crianças e jovens a autoestima  de ser  honesto e de preservar o patrimônio   publico.
            






* Frei  Betto é escritor, autor do  romance “Minas  do Ouro”, que a editora  Rocco faz chegar às  livrarias esta semana.     http://www.freibetto.org/    twitter:@freibetto.

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Fonte: Frei Betto

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As explicações são lógicas


Por Vito Giannotti*



O ano começou com as revoltas árabes em Tunis e Cairo. Depois, o centro das manifestações passou para Atenas, Madrid, Barcelona, Paris. Agora, continuam as lutas nos países árabes, mas não só. As praças de Santiago do Chile, Londres e Espanha encheram-se de milhares de manifestantes “indignados”. Até em Tel Aviv 300 mil pessoas gritaram contra o desemprego e o fim de antigos benefícios. Em Santiago, o mesmo número de jovens protesta contra a privatização do ensino.


 


O que levou essas massas enfurecidas a se juntar, incendiar carros e lojas, fazer barricadas sem temer a repressão, que é igual em todos os países? Contra o que protestam nos países árabes? Ditaduras e governos de sultões medievais já os têm há tempo! Na Europa havia muitas ilusões no  continente unido ao euro. O que aconteceu nos últimos anos, sobretudo após a crise de 2008 na Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha e agora na Inglaterra? O que está acontecendo na adormecida Itália e na sempre agitada França? Se esta pergunta fosse feita há 50 anos seria logo respondida pela maioria da mídia ocidental, manobrada pela CIA: é o comunismo internacional insuflando a revolta. Na década passada, após o 11 de setembro de 2001, o Pentágono iria culpar o terrorismo árabe da Al Qaeda. Hoje, em quem o sistema vai jogar a culpa?


 


É só ver o que aconteceu em Londres. Desempregados, adultos que perderam o mínimo de proteção social e muitos jovens se rebelaram e queimaram carros, lojas e símbolos do sistema que os oprime.  Jovens de várias origens, moradores de bairro cada vez mais iguais às nossas favelas. Jovens que não encontram emprego e viram seus clubes juvenis fechados pelo governo. A escola, cada vez mais privatizada ficou longe deles. Os adultos viram seus direitos previdenciários serem derrubados dia-após dia. Então explode a raiva e o ódio contra a sociedade que condena milhões à miséria enquanto gasta fortunas num casamento de dois bonecos da família real.


 


Em Atenas, o que leva multidões às ruas? A mesma realidade: o FMI impondo corte da assistência social, piorando as aposentadorias, privatizando todos os serviços e impondo uma política de desemprego generalizada.


 


Na Espanha, Portugal, Irlanda é a mesma coisa. Na França, o que levou um milhão às ruas? A Reforma da Previdência. É o desemprego e a retirada de direitos que enchem ruas e praças. O nome do grande inimigo que orquestra as rebeliões de hoje é neoliberalismo, que há 30 anos reina absoluto. O resultado: barbárie para milhões e milhões. Precisa-se de muitas Cairo, muitas Londres muitas Santiago. Ou barbárie neoliberal vai continuar. 


 







* Vito Giannotti é escritor, especialista em comunicação sindical e popular e coordenador do Núcleo Piratininga de Comunicação



Fonte: Vito Giannotti