Ciência e Humanismo

Frei Betto*

 

Em agosto de 1945, duas cidades japonesas foram varridas do mapa: Hiroshima e Nagasaki. Mais de 200 mil pessoas perderam a vida atingidas pelas bombas atômicas lançadas por aviões estadunidenses. Foram os mais graves atentados terroristas ocorridos em toda a história da humanidade.

Por detrás das bombas estavam homens graduados nas melhores universidades do mundo. Robert Oppenheimer, que chefiou o Projeto Manhattan, do qual resultaram os artefatos mortíferos, era físico teórico formado por Harvard, em 1925. Após a catástrofe japonesa, foi acometido de crise de consciência. Costumava repetir uma frase do Bhagavad-Gita: “Eu me tornei a morte, destruidora de mundos.” Mais tarde, posicionou-se a favor de maior controle na proliferação de armas nucleares, o que lhe custou a acusação de ser espião soviético.

Edward Teller, colega de Oppenheimer no Projeto Manhattan, nascido na Hungria, graduou-se em engenharia química na Alemanha. Canalizou sua inteligência para inventar a bomba de hidrogênio, 750 vezes mais potente que a de Hiroshima. Foi ele quem acusou Oppenheimer de espião soviético. Na década de 1980, destacou-se como mentor do Programa “Guerra nas estrelas”, patrocinado pelo presidente Reagan. Sua insanidade científica inspirou o filme Dr. Fantástico, de 1964, dirigido por Stanley Kubrick.

Se Oppenheimer tivesse recebido, como Einstein, uma formação humanista baseada em valores morais, teria chefiado o Projeto Manhattan? Se Teller tivesse recebido uma formação humanista fundada na ética, teria criado a bomba de hidrogênio? E os presidentes Roosevelt e Truman teriam autorizado o Projeto Manhattan e o genocídio nuclear em Hiroshima e Nagasaki?

Não basta ter uma formação humanista. Heidegger teve e, no entanto, apoiou o nazismo. Werner Heisenberg também, e colaborou com o projeto atômico dos nazistas. Uma verdadeira formação humanista supõe encarnar valores como solidariedade, cooperação, luta por justiça, defesa da dignidade de todos os seres humanos e preservação ambiental.

Dentro de uma universidade, toda a diversidade de disciplinas, da filosofia à medicina, segue o mesmo objetivo de constituir uma instituição voltada a formar mão de obra qualificada para o mercado, e raramente profissionais em condições de responder às demandas da população.

A universidade precisa sempre se submeter à autocrítica. Perguntar-se se é uma ilha do saber indiferente às reais necessidades do país ou se constitui uma usina capaz de dotar a nação de ferramentas teóricas e práticas para solucionar os problemas que a afetam.

Quando Napoleão entrou em Berlim, em 1806, os prussianos tiveram que abandonar suas posturas inflexíveis e permitir que nos países de língua alemã as universidades se libertassem da tutela da teologia. Os pioneiros dessa emancipação foram Johann Fichte, Christian Wolff e Immanuel Kant. E graças à autonomia da razão, as universidades alemãs nos deram Marx, Engels, Planck, Weber, Freud e Einstein. Geologia, física e química passaram a merecer a mesma importância de filosofia, história e sociologia.

Os EUA se espelharam no modelo alemão, pois necessitavam de profissionais qualificados para expandir seu parque industrial. Estabeleceu-se estreito vínculo entre empresas e universidades.

A universidade ianque se transformou em uma usina elitista de pragmatismo e liberalismo. O que lhe interessa, ainda hoje, é desenvolver a ciência e a tecnologia. E o princípio estratégico pedagógico que rege esse pragmatismo é óbvio: fortalecer o mercado e a apropriação privada da riqueza.

Em 1908, Harvard inaugurou sua Escola Superior de Empresas de Graduados. Ou seja, formar melhor os homens de negócios. Os alunos eram enviados para estagiar nas empresas. Essa pedagogia propiciou às empresas aprimorar a qualidade de seus quadros de profissionais.

O caráter desse projeto pedagógico das universidades dos Estados Unidos se encontra bem definido nestas palavras de Marx e Engels em O manifesto comunista: “Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus ‘superiores naturais’, ela (a burguesia) os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço frio do interesse, as duras exigências do ‘pagamento à vista’. Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca. Substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio.”

Como frisa Maurício Abdalla, infelizmente em nossas universidades quase não há espaço para a filosofia das ciências. Se o positivismo é teoricamente rechaçado, na prática é vigente, embora criticado pela Nova Filosofia das Ciências, como Popper, Kuhn, Lakatos etc. Muitos professores universitários, em especial das áreas científicas e tecnológicas, permanecem alheios aos debates epistemológicos. São tributários de uma visão positivista ingênua das ciências. Acreditam que há uma ciência neutra, isenta de influências ideológicas e de subjetividades, mero fruto de investigações e pesquisas desinteressadas, de observações empíricas alheias a qualquer metafísica. O resultado dessa postura é que teorias científicas, carregadas de subjetivismo e condicionamentos culturais, são abraçadas como dogmas, sem conexão com a realidade mutante e o processo histórico dinâmico.

Cria-se assim a cisão entre ciências naturais e ciências humanas, ética e pesquisa científica, favorecendo aberrações como querer impedir qualquer sistema axiológico em pesquisas da biogenética, ou apregoar que os produtos transgênicos em nada afetam o equilíbrio ambiental e o organismo humano, ou que o uso excessivo de combustíveis fósseis não influi no aquecimento global. Eis a “cientocracia”, a ditadura da ciência. Eis o neoplatonismo pós-moderno, que elege cientistas-reis no lugar de filósofos-reis, como queria Platão.

 

* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff e Mário Sérgio Cortella, de “Felicidade foi-se embora?” (Vozes), entre outros livros.
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