ENTREVISTA: Luiz Dulci

As razões para o salto



O mineiro Luiz Dulci foi secretário-geral da Presidência da República durante os oito anos de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Professor de Língua Portuguesa e Literatura e ex-sindicalista, Dulci é membro fundador do PT e da CUT e acaba de lançar o livro “Um salto para o futuro: como o governo Lula colocou o Brasil na rota do desenvolvimento”.


A motivação para escrever o livro partiu de uma observação das obras sobre o tema que vinham sendo escritas desde que o PT chegou ao governo. “A maioria eram críticas, escritas por opositores, ou tratavam de questões específicas. Há também alguns livros muito bons, como o do jornalista André Singer, que foi porta-voz do governo, mas que são voltados para a Academia. Eu quis escrever um livro que falasse sobre o governo como um todo e que servisse para a militância, os sindicalistas, os ativistas dos movimentos sociais”, revela Dulci. A publicação do livro, pela editora da Fundação Perseu Abramo, é o enceramento de um longo percurso. O trabalho começou em 2010, mas Dulci precisou interromper a escrita, por uma série de motivos. Só foi possível retomá-lo em 2012.


Dulci tem percorrido vários estados para lançar o livro, a convite de sindicatos e militantes do PT. No último dia 18 foi realizado um debate para marcar o lançamento do livro no auditório do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro. Na ocasião, o ex-ministro concedeu à Federação a seguinte entrevista:



Luiz Dulci (à esquerda), com Almir Aguiar, presidente do
Seeb-Rio, durante lançamento do livro na sede da entidade


Seu livro analisa as mudanças por que o país passou desde que Lula chegou à presidência. É possível apontar se o Brasil mudou mais para dentro ou mais para fora?


Mudou tanto para dentro, e todas as pesquisas de opinião comprovam, quanto para fora. Na América Latina, na Europa, nos EUA, na Ásia, em âmbito internacional existe uma percepção de que o Brasil durante os oito anos de governo Lula e agora nos dois da presidenta Dilma, deu de fato um salto. Por isso usei este termo como título do livro, um salto histórico. O Brasil mudou de patamar. Não foi um crescimento, uma melhoria rotineira. O Brasil teve uma mudança qualitativa extraordinária neste período, foi uma mudança, de fato, excepcional. Então, o prestígio que o Brasil tem fora no mundo só seria possível se a maioria da população brasileira tivesse essa opinião tão favorável do governo Lula. Porque não seria possível, jamais, se a maioria dos brasileiros não achasse, como acha, que a vida melhorou muito, sustentar este prestígio fora do Brasil.


Temos ouvido que o governo Dilma é continuação do governo Lula. Concorda?


É o mesmo projeto, mas é outro governo, e é bom que seja assim. A Dilma tem um compromisso com o Brasil e os brasileiros equivalente ao do Lula, mas tem outra formação, outra trajetória, e isso é muito positivo – o primeiro a dizer isso foi o próprio Lula – que haja uma renovação. O Brasil já tinha o Lula como liderança, e agora tem o Lula e a Dilma. É uma riqueza, não um problema.


Ela está dando continuidade a todos os principais programas do governo Lula, estabelecendo metas até mais arrojadas para alguns. Nas pesquisas, também, todo mundo valoriza isso, que ela está fazendo avançar os programas do Lula, o que foi uma das razões por que a grande maioria dos brasileiros votou nela. As pessoas queriam que o governo Lula, não em termos de pessoas, mas de programas, continuasse. Além de dar continuidade ela está também criando coisas novas. O programa Ciência sem Fronteiras, por exemplo, é inovador. O Lula reduziu drasticamente a extrema pobreza no Brasil e ela agora identificou 16 milhões de brasileiros que ainda vivem abaixo da linha de pobreza para tentar eliminar a miséria através do programa Brasil sem miséria. E Dilma adotou também medidas muito corajosas, como a redução da taxa de juros, que só seria possível criando uma dialética saudável entre o setor financeiro público e o privado. Ela está reduzindo o preço da energia, tanto para a indústria quanto para os consumidores familiares, individuais. Eu diria que ela fez o que o povo queria, dando continuidade ao governo Lula, mas foi além. O governo dela tem aspectos inovadores. É por isso que eu acho que ela vai ser reeleita em 2014. Nada está ganho de antemão, mas, se o governo continuar tão bom quanto está e com tanto apoio, eu acho que ela tem chance de ser reeleita, inclusive, no primeiro turno.


Quando Lula foi eleito, levava décadas de esperança de vários segmentos da sociedade brasileira, não só os eleitores de última hora, mas, principalmente, aqueles eleitores históricos, a esquerda tradicional. Alguns segmentos desse eleitorado ficaram frustrados porque esperavam um avanço maior. O que faltou realizar?


Os oito anos de governo Lula, e mesmo nos dez anos de governos liderados pela esquerda, são um prazo curto, do ponto de vista histórico, para um país que teve governos de elite durante quase 500 anos. Acho que os resultados foram extraordinários. Para dar um exemplo só, entre tantos outros que se poderia citar, tirar 28 milhões de pessoas da pobreza e levar 39 milhões para a classe trabalhadora e para as classes médias é um resultado histórico extraordinário. O que outros países do mundo fizeram em um século, e o Brasil fez em dez anos. Mas é claro que seria impossível fazer tudo o que queríamos fazer pelo Brasil, e que precisa ser feito, em um governo, dois, ou mesmo em três. Então, é natural que os militantes de esquerda queiram mais. E eu acho que é positivo que queiram mais, porque evita que o governo se acomode. Os resultados, até agora, foram extraordinários. Não sou eu que estou dizendo, em qualquer pesquisa de opinião pelo menos 80 % da população considera o governo bom ou ótimo. Mesmo gente que não votou, por uma razão ou por outra, considera o governo muito bom, que o país está no rumo certo, que as coisas que estão sendo feitas são as que precisam ser feitas.



Mas tem um lado que é de aprendizado. A esquerda nunca tinha liderado um governo no Brasil. Tinha participado como coadjuvante muito secundário, por exemplo, no governo João Goulart. Mas liderado o governo, com o presidente e boa parte dos ministros e ministras, não. Então, tem um lado de aprendizado. Vamos aprendendo a fazer e, à medida que aprendemos, vamos fazendo cada vez melhor, conhecendo a máquina. As elites conhecem a máquina pública brasileira, mas as esquerdas não conheciam, nunca tinham dirigido a maquina, nunca tinham estado dentro do governo, da máquina administrativa.


E tem também a correlação de forças. A direita perdeu as eleições, mas não significa que ela não tenha nenhum poder. Ela tem muito poder, no parlamento, nos meios de comunicação, tem um poder econômico enorme, e não quer abrir mão disso. Quanto mais profundas forem as transformações, maior a resistência da direita. A resistência, agora, à redução da taxa de juros, foi enorme e continua sendo. Uma parte do capital financeiro brasileiro estava acostumada a viver de renda, comprando títulos da dívida pública, que são corrigidos pela Selic, em vez de financiar a economia real do país, e fizeram isso durante décadas. De repente, por uma iniciativa da Dilma – corretíssima e corajosa – os bancos brasileiros, se quiserem manter suas taxas de lucros, terão que investir na economia real do país. Não poderão mais aplicar em títulos do Tesouro, corrigidos pela Selic, e depois pressionar para corrigir os juros e não baixar a taxa Selic para manter os lucros.


Mesmo aqueles setores de ultra-esquerda – com os quais eu não concordo, não estou de acordo com os diagnósticos e as propostas deles – acabam contribuindo com suas lutas e mobilizações para criar uma correlação de forças favorável. É sempre bom para que o governo liderado pelo PT não se acomode nunca, seja obrigado a sempre se autoavaliar, veja o que pode fazer melhor. E até corrigir os erros, que também existem. A população acha que predominantemente é um sucesso, mas isso não significa que não haja erros. É natural que existam erros e é preciso que sejam apontados e corrigidos.


Temos visto os setores conservadores fazendo muito barulho, se utilizando de todos os mecanismos que têm à sua disposição, principalmente a mídia, para criticar o governo petista. Este segmento aumentou ou é o mesmo grupo que está falando mais alto?


Eu acho que é o mesmo grupo que está radicalizando sua luta contra o governo. Não vejo que eles tenham ampliado seu apoio na sociedade. E vou mencionar novamente as pesquisas de opinião, porque eles gostavam tanto de falar das pesquisas quando, no passado, eram contrárias a nós, e agora fingem que as pesquisas não existem quando são favoráveis ao governo e contrárias à oposição conservadora. Eu acho que eles estão radicalizando, estão percebendo que este governo, liderado pelo PT – que alguns chamam de centro-esquerda, mas que é na verdade de esquerda-centro, porque é liderado pela esquerda e tem participação dos partidos de centro, sem o que não haveria maioria parlamentar, que é importante para dar continuidade – mas eles estão sentindo que a Dilma está com muito prestígio. O governo consegue identificar e enfrentar as dificuldades, o país está seguindo, apesar da crise internacional que é muito forte e acaba tendo impacto aqui também – não tem como, tem impacto até na China, que dirá no Brasil. Nós exportamos muito para a Europa, 25 % de nossas exportações são para lá, e a crise européia prejudica nossas exportações. Exportamos muito para a China, que, por sua vez, vende muito para a Europa. Se a Europa está em crise, a China vende menos para eles e compra menos de nós. Na economia globalizada o impacto sobre países exportadores, como o Brasil, é real.


Mas, apesar disso, o país segue. O nível de emprego está alto, apesar do PIB oscilar – tem ano que é maior, tem ano que é menor. É o mais alto da nossa história desde que é medido pelo Dieese. Os trabalhadores continuam tendo aumentos reais, a massa salarial está aumentando, o salário mínimo tem uma política permanente de valorização. Então as condições de vida seguem melhorando, e este é o principal critério. Por que a grande maioria da população tem uma opinião positiva do governo – pelo menos nas pesquisas atuais vemos que as pessoas querem a continuidade deste projeto no comando do país? Porque o principal critério de qualquer pessoa para avaliar se um governo é bom ou ruim é se as condições de vida estão melhorando, este é o critério central. Não há imprensa conservadora, por mais pesada que seja, por mais duros que sejam os ataques, as agressões, até mesmo pessoais – e a mídia conservadora brasileira é muito dura, cruel – que mude esta percepção.


Agora, por exemplo, a mídia está torcendo para a inflação voltar. Mas não vai voltar, o governo já tomou as medidas. O país continuará crescendo com a inflação sob controle. Mas tem horas em que se tem a impressão de que eles estão torcendo contra o Brasil. Não conseguem apresentar um programa econômico e social alternativo – até porque eles não têm esta vivência, o vínculo dos partidos conservadores é com as elites, não com as classes populares, como o PT, o PCdoB e outros. Então, não tendo alternativas econômicas e sociais, de certa maneira eles estão caindo na tentação de torcer contra o país para ver se governo afunda e eles aparecem. Agora, isso não dá certo, nunca deu. Não há um episódio na história do Brasil em que a oposição tenha torcido contra o país e isso tenha lhe dado votos. Porque uma parcela da população não tem muita escolaridade, não teve oportunidade de estudar, mas tem boa intuição política. Sabe avaliar quando um partido, seja de situação, seja de oposição, está apostando no país e quando está apostando contra.


Eu preferiria, sinceramente – sou do PT – uma oposição que disputasse no terreno das ideias e das propostas. Mas, infelizmente, os neoliberais do Brasil – até porque já foram governo e não conseguiram os resultados que conseguimos hoje – ficam muito constrangidos, eles não têm como comparar os governos deles e o nosso, os resultados são muito negativos para eles, são incomparáveis. Eles acabam apostando no “quanto pior, melhor”, que é ruim para o Brasil. Mas seguramente a população brasileira não apoiará este tipo de perspectiva. Nunca apoiou e não vai apoiar agora.


O presidente Lula tem origem política no sindicalismo e o senhor também, além de outros quadros que integraram a administração. O que esta experiência sindical levou de positivo para dentro do governo?


A contribuição do movimento sindical brasileiro, principalmente da CUT, mas também das várias outras centrais, para as transformações realizadas nos últimos dez anos foi muito grande. Eu faço questão de sublinhar isso. Por exemplo, a política de valorização do salário mínimo foi negociada pelo governo com as centrais sindicais. E se não tivesse sido negociada não haveria correlação de forças para implantar esta política que beneficia 42 milhões de trabalhadores, entre ativos e aposentados. Além de melhorar a vida de quem ganha salário mínimo, injetou na economia bilhões e ajudou a expandir o mercado interno e a promover o crescimento econômico do país. O programa do crédito consignado, com juros mais baixos e desconto na folha de pagamento, foi uma proposta levada pelas centrais e que o governo aceitou. Isso melhora a vida das pessoas, porque passam a ter crédito mais barato, mas também ajudou tremendamente a desenvolver a economia do país. Então, muitas das conquistas dos últimos 10 anos teriam sido literalmente impossíveis se não tivesse havido uma intensa mobilização do movimento sindical e também dos movimentos sociais – de mulheres, de combate ao racismo, e outros. Um governo de mudanças nunca faz as mudanças sozinho. Ele precisa da sociedade para promover as mudanças.


No que diz respeito à equipe de governo, tivemos a participação de muitos sindicalistas e pessoas oriundas do movimento social e de outras áreas. Havia cientistas, intelectuais, professores, médicos, trabalhadores rurais, artistas, como o Gilberto Gil, que deu uma contribuição extraordinária não só na área de cultura, mas como integrante da equipe de governo, com opiniões políticas e sociais muito criativas e úteis. No nosso caso, do presidente Lula, no meu, dos ministros Ricardo Berzoini e Luiz Gushiken, todos dois bancários, e de vários outros de origem sindical, a experiência de luta, de mobilização, de diálogo permanente com a sociedade foi central. Trouxe a ideia de que um governo de mudanças deve, antes de mais nada, dialogar. Com o funcionalismo público, quando reivindica ao governo, podendo atender ou não. Às vezes o funcionalismo está lutando e você pode atender 70 % da pauta, mas não pode atender os outros 30 % de imediato. Os governos conservadores não dialogam. Nós dialogamos sempre, podendo atender ou não, porque às vezes não podemos atender naquele ano, mas no ano seguinte podemos. Se há alguma dificuldade conjuntural, temos obrigação de explicá-la à categoria. É preciso construir as políticas públicas dialogando, seja com o funcionalismo, seja com outros setores.


Acho que foi em grande parte pela experiência dos sindicalistas que fizemos 73 conferências de políticas públicas, que começavam nos municípios, depois iam para os estados, e no final havia uma conferência-síntese em Brasília. Cerca de 5 milhões de  pessoas participaram, no país inteiro, destas 73 conferências – de saúde, educação, políticas para mulheres, reforma agrária, cultura, direitos humanos, educação, juventude. E estas conferências tinham muito debate, muita disputa, misturavam, às vezes, reivindicações possíveis de serem atendidas com propostas que até legalmente o governo não podia adotar. Eu me lembro do grande Paulo Freire, que foi fundador do PT, para nossa honra, que dizia isso: as classes populares precisam conhecer o Estado, como ele funciona, para ajudarem a dirigi-lo. As elites já conhecem, porque o comandaram por 500 anos. Mas as classes populares, não. O Lula dizia que nós precisávamos criar canais para que o movimento sindical, os movimentos populares e mesmo o cidadão possam dar opinião, fora do período eleitoral, sobre o que é melhor para o país.


O pessoal da direita ria. “Ah, o Lula está recebendo no palácio as mulheres, as empregadas domésticas, os homossexuais, os portadores de hanseníase, os sindicalistas, a população de rua.” Mas é claro! As elites sempre entraram no palácio, e continuaram entrando – porque têm direito de entrar, já que fazem parte da sociedade brasileira. A grande novidade do governo Lula e do governo Dilma é que, pela primeira vez, as classes populares, os pobres, os plebeus, também entraram. A “aristocracia” brasileira não saía do palácio. Desta vez, os pobres entraram, e entraram para levar suas reivindicações, o que é justo, e também para dar opinião sobre os rumos do país, para falar de economia, de política externa. Os empresários quando vão ao palácio – e têm direito de ir – não falam só das reivindicações deles, falam sobre tudo. Então, por que as classes populares não podem ter os mesmos direitos?


Lula cansou de ir encontrar com a marcha das mulheres camponesas da Contag, com os acampamentos do MST, e nem sempre nós estávamos de acordo com tudo que os movimentos estavam propondo. Mas, justamente quando havia alguma diferença é que nós fazíamos mais força para irmos lá conversar. E não íamos só para falar, mas para ouvir. E explicar, “vocês têm razão por isso, mas nossa avaliação é tal”. Isso criou uma sintonia, respeitando a independência dos movimentos, porque nós nunca pedimos a ninguém para deixar de reivindicar, pelo contrário. O Lula dizia: “quanto mais mobilizações vocês fizerem, mais correlação de forças nós vamos ter para fazer as transformações. Para estas coisas eu acho que contou muito a experiência sindical. É como eu falo no livro: faz muita diferença você mudar o país com a população e não só para a população. É para a maioria do povo, mas é também com a população, com o povo como sujeito. Paulo Freire dizia isso, e Lula traduziu, ele que gosta muito de futebol, falando: “Para um governo como o nosso, a população não pode estar na arquibancada, tem que participar do jogo durante os 90 minutos. E se tiver prorrogação, tem que continuar participando, ou não vamos conseguir fazer as mudanças.”

Fonte: Da Redação – FEEB-RJ/ES