Jô Portilho *
Ana Cecília, 17, é a neta mais nova da Maria Leucádia. Semana passada, a professora de sociologia pediu à jovem que fizesse uma entrevista com sua avó. A ideia era levantar dados e inspiração para uma redação sobre a adolescência, essa fase tão controvertida da vida humana…
A avó adorou a “brincadeira” e preparou um bolo de fubá para o dia do encontro. Arrumou a mesa com uma toalha de crochê que havia feito, aos 14 anos, para seu enxoval e cobriu a iguaria com um guardanapo de linho bordado com as iniciais de seu falecido marido. Enquanto Esmeralda, empregada da família há 30 anos, completava a mesa com outras tantas gostosuras, Maria Leucádia arranjava as flores do campo em um vaso de cristal, presente de bodas de ouro.
Quando Ana Cecília chegou com seu tablete, a avó foi logo buscar seu diário de recordações e um bloco de papel e lápis para que a adolescente tomasse nota das respostas. Mas Ana preferiu gravar o diálogo com seu celular para não perder nenhuma informação, enquanto se ocupava em fazer um vídeo da avó, servindo o lanche, para colocar no Youtube.
Maria Leucádia contou para neta que aos 16 já estava casada e aos 17 já era mãe. Disse que, na época, se sentia ainda uma menina brincando de boneca…
“Aninha, nem eu nem minhas amigas de escola sabíamos o que era adolescência e muito menos sexo. O sutiã era uma espécie de cinto de castidade que não tirávamos nunca, nem para dormir. Por isso que, nos anos 60, quando umas mulheres fizeram uma manifestação em praça pública e jogaram cílios postiços, revistas femininas, produtos de limpeza, sapatos de salto e sutiãs num latão de lixo para queimar eu vibrei sozinha em casa…”.
Ana Cecília então perguntou à avó se ela era feminista e teve uma resposta surpreendente: “Aninha, eu fui criada para ser uma dona de casa de classe média alta; estudei piano, boas maneiras, bordado e Francês e nunca refleti sobre se era ou não aquilo que queria para minha vida. Até que um dia a Esmeralda chegou aqui para trabalhar com as mãos queimadas pelo marido ciumento. Ele estava desempregado e achava que ela devia dar a ele todo o salário que ela havia recebido naquele dia. Acontece que ela já tinha gasto quase tudo para pagar o aluguel e comprar comida para os filhos. Aí ele usou o ferro que ela estava passando roupas e deixou na Esmeralda o “selo do seu autoritarismo”.
“Nossa vó, que horror!”, comentou a neta indignada.
A avó continuou: “Fui falar com seu avô e decidimos trazer a Esmeralda e os filhos aqui pra casa para protegê-los daquele monstro. Depois de levá-la ao hospital, fomos juntos à delegacia de polícia. Depois disso, o marido dela sumiu na vida! Naquele momento eu comecei a pensar em como as mulheres deviam lutar juntas contra as injustiças de sua condição feminina na sociedade. Mas embora seu avô fosse um homem muito íntegro, ele achava que aquelas coisas só aconteciam a mulheres pobres e que eu não devia me envolver com o problema dos outros.”
A neta foi logo chamando o avô de machista mas a avó logo a interrompeu: “Minha filha, se ele foi machista, eu fui covarde de não ter insistido… todos temos responsabilidades sobre as injustiças! Acontece que quando ele adoeceu e eu tive de tomar as rédeas da casa, das finanças da família e de todas as decisões que nunca lutei para compartilhar com ele, eu descobri um mundo de possibilidades… e medos também. E novamente foi Esmeralda quem me ensinou a lidar com a vida real!
Ana Cecília perguntou para a avó se então ela passou a ser feminista e Maria Leucádia sorriu um pouquinho encabulada: “Meu docinho, na minha geração se pensava que feministas eram mulheres más ou que preferiam ser homens. E toda vez que eu concordava com os protestos que elas faziam, defendendo direitos iguais, eu temia que me achassem masculina e ia logo passar um batom!”
Depois de um gole de chá, Maria Leucádia suspirou profundamente e admitiu: “Quando Esmeralda apareceu queimada, eu soube que a luta das feministas era nossa também! Naquela noite eu comecei a romper lentamente meus preconceitos e decidi que até passar batom seria algo que eu faria quando eu bem entendesse e não só para “disfarçar” o feminismo que pulsava dentro de mim. Fui firme para que seu avô registrasse a carteira de trabalho da Esmeralda, assim como ele fazia com os trabalhadores da fábrica e nunca permiti que sua mãe e suas tias não tivessem os mesmos direitos e deveres dos seus tios. Continuei passando batom todos os dias que tive vontade, sabendo que eu era feminista!
* Jô Portilho é Sindicalista, Mestra em Políticas Trab. e Globalização (GLU) e em Serviço Social (UERJ). Atualmente é doutoranda do PPGSS/UERJ, Feminista e gosta muito de batom! [email protected]
Fonte: Jô Portilho