Em um intervalo de uma semana, em dezembro de 2005, três livros foram lançados no Rio de Janeiro sobre o mesmo tema – as favelas cariocas. De autores e editoras diferentes, a semelhança dos lançamentos não foi apenas a proximidade de datas. Apesar de cada uma das obras ter objetivos e abordagens distintas, estão presentes em suas páginas estudos que analisam a história da formação e da expansão dos núcleos favelados que se tornaram cada vez mais marcantes na paisagem da ex-capital federal ao longo do século XX. A partir daí, é possível compreender melhor a realidade atual e buscar soluções para melhorar a qualidade de vida de uma população que, além dos problemas habitacionais e da violência provocada pelas disputas entre traficantes e polícia, convivem com estigmas, preconceitos e exclusões na sociedade do asfalto.
As três obras coincidem também ao ampliar as visões amplamente difundidas que apontam o surgimento das favelas como conseqüência de fatos isolados e pontuais. Após a leitura dos estudos, descobre-se que as favelas não surgiram apenas porque os soldados que voltaram da Guerra do Paraguai não tinham lugar para morar e foram instalados em habitações precárias em um morro no centro da cidade. Nem apareceram apenas porque os soldados que combateram Canudos também não tinham onde morar após a derrota de Antonio Conselheiro. Ou não são apenas conseqüência da política higienista e modernizante que destruiu os cortiços do centro do Rio no final do século XIX e no começo do século XX para criar uma cidade supostamente mais saudável e bela. A formação das favelas faz parte de um processo mais abrangente, de um projeto de desenvolvimento do país excludente e voltado para os interesses dos mais ricos.
Descobre-se também que o êxodo rural, a industrialização e a migração para as grandes metrópoles foram sim importantes para o processo de expansão das favelas. Mas não são suficientes para explicar a explosão populacional dessas comunidades a partir da década de 1930. Percebe-se que a favelização no Rio de Janeiro faz parte de um grande descaso do Estado – imperial ou republicano, democrático ou autoritário – com políticas voltadas para as camadas mais pobres da população, em particular com políticas de habitação popular. Compreende-se que a principal preocupação dos governos nas questões urbanas, ao longo de mais de um século, foi de tornar o Rio uma cidade mais agradável para quem tivesse dinheiro. As favelas sempre foram vistas como um problema a ser eliminado e só não foram, de fato, pela incompetência de se achar soluções de moradia adequadas para comunidades, cada vez mais numerosas, que tinham direito a voto e mobilizavam-se para defender seus direitos.
Analisados a seguir, os livros ajudam a construir uma visão sobre as favelas sem estereótipos e visões pré-concebidas e, unidas, permitem que se pense em saídas para se resolver os problemas de uma população constantemente excluída das discussões sobre políticas públicas.
“Do quilombo à favela – A produção do ‘espaço criminalizado’ no Rio de Janeiro”, de Andrelino Campos (Ed. Bertrand Brasil, 208 páginas)
A obra traz uma visão inovadora para a análise histórica do tema. O autor, geógrafo e professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), olha para a formação das favelas como uma continuidade do processo de marginalização dos escravos antes da Abolição, quando se juntavam em comunidades de quilombos para escapar da perseguição das forças imperiais. Em seu estudo, aponta, inclusive, que algumas das áreas das atuais favelas do município do Rio de Janeiro, formaram-se em locais em que há registros da existência de quilombos.
Campos mostra que o fim da escravidão criou novos problemas. Os negros, mesmo livres, tiveram pouca oportunidade de emprego nas zonas rurais onde viviam, foram proibidos por lei de ter propriedades rurais. Restava a ida para centros urbanos, onde também eram proibidos de terem cargos públicos e não tinham acesso à educação. Excluídos na sociedade, não podiam morar nos espaços formais da cidade e buscavam abrigo em zonas marginais em busca de sua sobrevivência. O livro indica que a formação das favelas foi conseqüência não apenas da exclusão social, mas de uma exclusão étnica que jogou os descendentes de escravos para habitações ilegais em áreas que não eram reconhecidas pelo Estado e sempre foram objeto de combate, freqüentemente com o uso da força policial.
“Do quilombo à favela” aponta que, muito antes do tráfico de drogas dominar algumas favelas, elas sempre foram vistas pela sociedade rica como locais perigosos e ameaçadores, tanto por serem associadas a locais de concentração de criminosos, quanto por serem focos de doenças e epidemias que se espalhavam pela cidade. Visão que sempre foi difundida tanto por governantes quanto pelos meios de comunicação, mais preocupados em defender os interesses das classes mais privilegiadas do que em buscar soluções para minimizar os problemas sociais da população pobre.
O autor acredita que o processo de exclusão que ele apresenta é muito importante para se compreender a atual situação de violência e conflito nas áreas faveladas do Rio. Mostra também que a ilegalidade e os combates travados contra a população favelada criou redes de solidariedade internas e externas, que também existiam nos tempos dos quilombos, que foram fundamentais para a sobrevivência das favelas no cenário carioca. A partir de entrevistas com líderes de algumas das principais comunidades da cidade, Campos avalia como se comportam hoje essas redes, que são fundamentais para se buscar soluções adequadas para melhorar a qualidade de vida dos moradores.
“Favelas cariocas – 1930-1964”, de Maria Lais Pereira da Silva (Ed. Contraponto, 239 páginas)
O livro foca o período de maior crescimento da população favelada no Rio de Janeiro. A autora, socióloga e professora da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, mostra que o crescimento das favelas está diretamente ligado ao desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro, em uma cidade que cresceu sem um planejamento adequado e sem uma política habitacional que fosse capaz de suprir as necessidades do aumento populacional.
Ao contrário de Andrelino Campos, a socióloga acredita que o crescimento das favelas não pode ser visto apenas como um processo de exclusão, mas deve ser analisado como um fenômeno incluído no desenvolvimento do Rio de Janeiro. Mostra, por exemplo, que as favelas fazem parte do processo de consolidação do mercado imobiliário da cidade. Parte das áreas faveladas nasceu e se expandiu em áreas particulares e tinha o consentimento de proprietários, que cobravam aluguel pelos barracos, ou eram exploradas por grileiros. O surgimento e a destruição de favelas nessas áreas faziam parte da dinâmica do mercado imobiliário. Em áreas pouco valorizadas para o mercado imobiliário “nobre”, permitia-se a construção de barracos. Algumas delas, depois, tornavam-se mais rentáveis e surgia a necessidade de remoção dos moradores.
O crescimento das favelas também seria conseqüência da Lei do Inquilinato, criada no primeiro governo de Getúlio Vargas. A lei foi criada para proteger a maioria dos habitantes da cidade, que morava em casas alugadas. Mas desestimulou a construção de novas moradias pela iniciativa privada. Com a crescente chegada de migrantes, o mercado imobiliário foi incapaz de atender às necessidades dos novos moradores que, sem opção para alugarem casas, contribuíram para o inchamento das favelas.
A autora também relaciona as favelas com a industrialização no Rio de Janeiro. Até a década de 1930, as indústrias geralmente eram responsáveis por dar moradia a seus operários. Com as leis trabalhistas, que também surgiram na era Getúlio, a habitação para os operários passou a ser responsabilidade do Estado, que não conseguiu implantar uma política habitacional eficiente. O crescimento industrial e a chegada de novos operários também foram importantes para o crescimento da população nas favelas.
A obra também tenta entender como as favelas conseguiram sobreviver no cenário carioca, apesar de terem sido sempre combatidas pelo poder público e, constantemente, consideradas inadequadas e passíveis de remoção pelos governantes. Em parte, a sobrevivência aconteceu pelo fato de parte dos moradores estarem incluídos no mercado imobiliário e no mercado formal de trabalho. Mas a autora traça um interessante histórico da mobilização interna dos habitantes das favelas, com associações comunitárias mais ou menos fortes, dependendo do período. Descreve também a complexa relação com os políticos e a dificuldade de colocarem em prática planos de remoção dos moradores que atendessem às necessidades e aos interesses de uma população que tinha direito a voto. Por fim, mostra a crescente interferência de atores externos, como a Igreja e organismos internacionais, na defesa dos interesses dos moradores.
A obra de Maria Lais Pereira da Silva amplia a compreensão de que as favelas fazem parte da cidade tanto quanto qualquer bairro nobre do Rio de Janeiro. Que têm uma dinâmica econômica entrelaçada com o desenvolvimento urbano ecom a economia formal. Por fim, que, apesar de segregadas e incompreendidas pelas políticas públicas, conseguem sobreviver e conquistar algumas reivindicações graças a redes de mobilização internas, unidas com instituições externas, e à complexa relação de interesses eleitorais, presentes até mesmo em períodos autoritários da história brasileira.
“Favela – Alegria e dor na cidade”, de Jailson de Souza e Silva e Jorge Luiz Barbosa (Ed. Senac Rio, 232 páginas)
Dos três lançamentos aqui analisados, este é o que tem a maior preocupação em apontar soluções para as questões relacionadas às favelas cariocas. O ponto de partida também é um levantamento histórico do surgimento e da expansão das comunidades presentes no cotidiano do município. O foco principal do estudo é compreender como se construiu no imaginário da sociedade brasileira a visão estereotipada e preconceituosa de que a favela seria um caos, um lugar sem ordem, sem lei, sem infra-estrutura e habitada apenas por pessoas miseráveis. Mostram que a realidade é muito mais complexa e heterogênea, que as favelas não são um problema, mas também não são a solução que algumas visões românticas tentam vender para combater os preconceitos. São apenas um retrato das desigualdades sociais que sempre estiveram presentes no desenvolvimento do Brasil.
A primeira parte do livro é dedicada à pesquisa histórica. Com farto material publicado na imprensa, os autores acompanham o surgimento e o crescimento das favelas e ilustram a preocupação que elas vêm causando na sociedade desde o início do século XX. Fica evidente que a mídia e a sociedade, assim como as políticas públicas, nunca estiveram realmente interessadas em entender as razões do surgimento das favelas, nunca tiveram vontade de compreender a realidade, os interesses e os objetivos dos moradores de favelas e sempre clamaram por soluções que pudessem eliminar, ou pelo menos esconder, aquelas manchas na paisagem carioca.
Em seguida, os autores, geógrafos e professores da UFF, analisam a importância de se buscar soluções para os jovens favelados e ilustram as contradições de alegria e dor no cotidiano das comunidades com uma poesia e um ensaio fotográfico produzido pela Escola de Fotógrafos Populares Imagens do Povo.
No capítulo final, intitulado “Caminhos para uma nova cidade”, a obra analisa algumas soluções para a questão das favelas. Os autores defendem uma política habitacional que ouça e leve em conta os desejos dos moradores. Cita, por exemplo, a importância da laje em um planejamento de urbanização de favelas, pois, além de ser o espaço de socialização e lazer das famílias, também seria a principal herança que os pais deixariam para os filhos, com a possibilidade de ampliar a construção para acomodar o crescimento da família.
Os autores destacam que é fundamental que os moradores sejam proprietários dos terrenos em que moram e que é preciso oferecer uma política eficiente de saúde e, sobretudo, de educação, para que os jovens possam ter uma nova perspectiva de vida. Criticam políticas meramente assistencialistas e destacam a importância de ações culturais, que podem ser extremamente importantes para a transformação social. Por último, apontam a importância da valorização da vida na política de segurança pública.
O livro, fruto do trabalho do Observatório de Favelas, programa que desenvolve ações e estudos sobre o tema, inclui ainda o prefácio escrito por Paulo Lins, autor de “Cidade de Deus”, a íntegra de palestras proferidas em um seminário organizado pelo Observatório e um amplo e detalhado levantamento de teses, dissertações e livros que tenham abordado a questão.
A importância do livro, além de destruir alguns estereótipos, é mostrar que a questão tem soluções viáveis. E ganha ainda mais valor, pois um dos autores, Jailson de Souza e Silva, conhece as favelas não apenas por estudar o assunto, mas também por ser um ex-morador da Favela da Maré, uma das mais importantes do Rio de Janeiro. Fica clara a importância de ouvir a voz de quem convive ou já conviveu com a realidade na implementação de programas que atendam às reais necessidades dos beneficiados.
(Por Flávio Amaral – em Repórter Social)
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