Não é mais possível não vermos o papel dos atravessadores que travam a
economia. Não há PIB que possa avançar com tantos recursos desviados
Ladislau Dowbor*
A conta é simples.
O crédito no país representa cerca de 60 % do PIB. Sobre este estoque incidem juros, apropriados por intermediários financeiros. Analisar esta massa de recursos, na sua origem e destino, é por tanto fundamental.
É bom lembrar que o banco é uma atividade “meio”, a sua produtividade depende de quanto repassa para o ciclo econômico real, não de quanto dele retira sob forma de lucro e aplicações financeiras. Aqui simplesmente foram juntadas as peças, conhecidas, pare evidenciar a engrenagem, pois em geral não se cruza o crediário comercial com as atividades bancárias formais e os ganhos sobre a dívida pública, e muito menos ainda com os fluxos de evasão para fora do país.
O principal entrave ao desenvolvimento do país aparece com força.
O reajuste financeiro é vital, não o reajuste fiscal proposto, compreensível este último mais por razões de equilíbrios políticos do que por razões econômicas.
(Aqui vai o esqueleto do artigo de 14 páginas sobre o sistema, veja o artigo completo aqui.)
Pense que o crediário cobra por exemplo 104 % para “artigos do lar” comprados a prazo. Acrescente os 238 % do rotativo no cartão, os mais de 160 % no cheque especial, e você tem neste caso mais da metade da capacidade de compra dos novos consumidores drenada para intermediários financeiros, esterilizando grande parte da dinamização da economia pelo lado da demanda. O juro bancário para pessoa física, em que pese o crédito consignado, que na faixa de 25 a 30 % ainda é escorchante, mas utilizado em menos de um terço dos créditos, é da ordem de 103 % segundo a Anefac.
A população se endivida muito para comprar pouco no volume final. A prestação que cabe no bolso pesa no bolso durante muito tempo. O efeito demanda é travado.
Os bancos e outros intermediários financeiros demoraram pouco para aprender a drenar o aumento da capacidade de compra do andar de baixo da economia, esterilizando em grande parte o processo redistributivo e a dinâmica de crescimento.
Efeito semelhante é encontrado no lado do investimento, da expansão da máquina produtiva, pois se no ciclo de reprodução o grosso do lucro vai para intermediários financeiros, a capacidade do produtor expandir a produção é pequena, acumulando-se os efeitos do travamentos da demanda e da fragilização da capacidade de reinvestimento.
Quanto ao financiamento bancário, os juros para pessoa jurídica são proibitivos, da ordem de 40 a 50 % , e criar uma empresa nestas condições não é viável. Existem linhas de crédito oficiais, mas compensam em parte apenas a apropriação dos resultados pelos intermediários financeiros.
Terceiro item da engrenagem, a taxa Selic. Com um PIB de 5 trilhões, um por cento do PIB representa 50 bi. Se o superávit primário está fixado em 4 % do PIB, por exemplo, são cerca 200 bi dos nossos impostos transferidos essencialmente para os grupos financeiros, a cada ano. Com isso se esteriliza parte muito significativa da capacidade do governo de financiar mais infraestruturas e políticas sociais. Além disso, a Selic elevada desestimula o investimento produtivo nas empresas pois é mais fácil – risco zero, liquidez total – ganhar com títulos da dívida pública.
E para os bancos e outros intermediários, é mais simples ganhar com a dívida do que fomentar a economia buscando bons projetos produtivos, o que exige identificar clientes, analisar e seguir as linhas de crédito, ou seja, fazer a lição de casa. Os fortes lucros gerados na intermediação financeira terminam contaminando o conjunto dos agentes econômicos.
Assim entende-se que os lucros dos intermediários financeiros avancem de 10 % quando o PIB permanece em torno de 1 % , e o desemprego seja tão pequeno: o país trabalha, mas os resultados são drenados pelos crediários, pelos juros bancários para pessoa física, pelos juros para pessoa jurídica e pela alta taxa Selic. É a dimensão brasileira da financeirização mundial.
Fechando a ciranda, temos a evasão fiscal. Com a crise mundial surgem os dados dos paraísos fiscais, na faixa de 20 trilhões de dólares segundo o Economist, para um PIB mundial de 70 trilhões. O Brasil participa com um estoque da ordem de 520 bilhões de dólares, cerca de 25 % do nosso PIB. Ou seja, estes recursos que deveriam ser reinvestidos no fomento da economia, não só são desviados para a especulação financeira, como sequer pagam os impostos no nível devido.
Já saíram, por exemplo, os dados do Itaú e do Bradesco no Luxemburgo, bem como do mispricing (fraude nas notas fiscais) que nos custa 100 bi/ano, enviados ilegalmente para o exterior, segundo pesquisa do Global Financial Integrity, além dos fluxos canalizados pelos HSBC e outros bancos.
Junte-se a isto o fato dos nossos impostos serem centrados nos tributos indiretos, com os pobres pagando proporcionalmente mais tributos do que os ricos, e temos o tamanho do desajuste. De certa forma, temos aqui o espelho do que o Piketty analisa para os países desenvolvidos. O artigo completo abaixo constitui uma sistematização do mecanismo, apresentado de uma forma que qualquer não economista possa entender. E se trata do bolso de todos nós. As contas batem. Os dados são conhecidos, aqui se mostra como se articulam.
O texto anexo não é um “artigo” de opinião acadêmica, e sim um relatório sobre como a engrenagem foi montada. Uma ferramenta que espero seja útil para nos direcionarmos, pois precisamos de muito mais gente que se dê conta de como funciona o nosso principal entrave.
Não há PIB que possa avançar com tantos recursos desviados.
O problema não é só de um “ajuste fiscal”, e sim de um ajuste fiscal-financeiro mais amplo.
Tanto o consumidor, como o empresário-produtor e o Estado na sua qualidade de provedor de infraestruturas e de políticas sociais têm tudo a ganhar com isto. Um empresário com quem discuti este texto me disse que estava gastando mais com juros do que com a folha de pagamento. Aqui temos até interesses comuns entre empresários efetivamente produtivos, situados na economia real, e os trabalhadores que querem se tornar mais produtivos e ganhar melhor.
Não é mais possível não vermos o papel dos atravessadores que travam a economia.
* Ladislau Dowbor é Doutor em Economia e professor do departamento de Pós-Graduação da PUC-SP e colunista de Carta Maior.
Fonte: Ladislau Dowbor