Pobreza e concentração de renda não podem ser separadas da ordem mundial que as produz. Elas estão tanto na periferia como nos países ricos; nos EUA e na Grã-Bretanha a disparidade de renda é maior do que na Índia. Ao contrário do que pregam os neoliberais, a desigualdade prosperou enquanto avançava o livre comércio. Nos “anos dourados” do capitalismo (1950 a 1973), um crescimento médio de 5% ao ano era suficiente para garantir uma melhora na distribuição de renda entre os países e dentro deles. Isso acabou, inclusive durante o milagre asiático dos últimos 15 anos.
O capitalismo mais uma vez mostra capacidade de adaptação. E explora o que talvez seja sua última fronteira de acumulação
Esse quadro não é salutar para o capitalismo global, que exige mercados periféricos em expansão. Com rendas em queda, há necessidade de baixar preços; e as redes de varejo se aproximam cada vez mais das classes pobres do mundo, convertendo-as na nova fronteira de acumulação. O Wal-Mart, síntese emblemática desse modelo de alta tecnologia e baixos salários, já é loja de classe média; e redes superbarateiras estão transformando o cenário do varejo no mundo. A Save-A-Lot faz o maior sucesso nos EUA por atender aos mais pobres com produtos simplificados, um mercado que muitos ignoravam; ela tem 1.230 lojas em 39 Estados, preços baixos e marcas próprias e aumenta seu lucro operacional em 15% ao ano. Na Alemanha, o Aldi Group usa a mesma estratégia. No Brasil, além do próprio Wal-Mart -que agora reinicia sua escalada-, o dono das Casas Bahia já explicou o segredo do seu sucesso: crédito aos pobres que trabalham no informal e compram até 500 reais.
Utilizar sofisticada tecnologia e logística de ponta empregando pessoal muito mal remunerado é um dos principais fatores da alta taxa de acumulação de muitos setores do capitalismo global. O sistema depende cada vez mais de consumidores mantidos ávidos por novidades, ainda que cada vez mais pobres. O Brasil tem 81 milhões de jovens, 70% deles já com celular. O jovem pobre sem um celular, ainda que pré-pago, é induzido pela propaganda maciça e global a se sentir um pária infeliz, um “outgroup”. Basta verificar a intensidade e o conteúdo das imensas campanhas publicitárias do produto na mídia local. Para cada criança brasileira da classe A, existem dez das D e E. O computador é o objeto de desejo principal dos 12 aos 14 anos. Dos 15 aos 20 anos, é o automóvel. Como bem poucos conseguem um carro, resolvem com um celular novo, o item seguinte na ordem dos desejos. O mercado dos pobres também aparece com clareza nas sutis reduções de conteúdo de embalagens no setor de alimentos, mantendo tamanho e aparência anteriores. O nosso Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor aplicou multas a 34 empresas, em 2005, a maioria para grandes corporações globais, por “maquiarem” irregularmente seus produtos. No mais das vezes o procedimento é um mero estratagema para aumento “real” de preço, reduzindo o peso do produto. A Nestlé descobriu que lata de leite condensado, em regiões pobres do Brasil, virou presente de aniversário. E diz ter como meta atrair os que ganham entre um e dois salários mínimos e gastam 25% do orçamento com alimentação.
Grandes gurus internacionais em estratégia também estão atentos. Stuart Hart fala que não haverá futuro para o capitalismo nem para suas empresas sem incluir os bilhões de pobres; desembainha sua espada salvadora e conclama as elites a mirar os 4 bilhões da base da pirâmide, que vivem com menos de 1.500 dólares por ano e poderiam salvar o capitalismo. Como parece esquecer de que foi o sistema atual que desistiu de aumentar a renda do grosso da população, talvez também acredite no caminho de praticar a inclusão social via produtos tornados “mais baratos” com redução de peso nas embalagens ou por meio de latas especiais de leite condensado, vindas de fábrica com laços de fita para presente! Um bom exemplo de inclusão dos miseráveis ao estilo Hart é a telefonia celular. Na África, em regiões sem água e sem iluminação, parte expressiva da população está sendo induzida pela propaganda a comprar celulares usados e pequenos créditos de minutos mensais. Mesmo com a maioria dos africanos vivendo com menos de US$ 2 por dia, as operadoras já convenceram muitas dezenas de milhares deles que têm direito “ao progresso e à felicidade” do telefone móvel. Aldeões da serra do Congo improvisaram antenas de 15 metros em topos de árvore; e baterias de automóvel são carregadas em postos de gasolina por indivíduos que nunca terão um carro e cobram US$ 0,80 para dar energia a um celular. Por essas e outras, o capitalismo global mostra mais uma vez sua imensa capacidade de adaptação. E consegue explorar aquela que talvez seja sua última fronteira de acumulação. Os pobres comerão ainda pior, mas estarão ligados ao mundo global em tempo real.
Gilberto Dupas, 62, é coordenador-geral do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP) e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais. É autor, entre outros livros, de “Atores e Poderes na Nova Ordem Global” (Unesp).
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