Queermuseu: O dia em que a intolerância pegou uma exposição para Cristo

Após protestos nas redes sociais, banco Santander encerra mostra que abordava questões de gênero e de diversidade sexual

Nos últimos dias, a intolerância voltou a assombrar a arte. A exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, em cartaz há quase um mês no Santander Cultural, em Porto Alegre, foi cancelada neste domingo após uma onda de protestos nas redes sociais. A maioria se queixava de que algumas das obras promoviam blasfêmia contra símbolos religiosos e também apologia à zoofilia e pedofilia.

A mostra, com curadoria de Gaudêncio Fidelis, reunia 270 trabalhos de 85 artistas que abordavam a temática LGBT, questões de gênero e de diversidade sexual. As obras – que percorrem o período histórico de meados do século XX até os dias de hoje – são assinadas por grandes nomes como Adriana Varejão, Cândido Portinari, Fernando Baril, Hudinilson Jr., Lygia Clark, Leonilson e Yuri Firmesa.

Nas redes, as mensagens e vídeos mais compartilhados pelos críticos e movimentos religiosos mostravam a pintura de um Jesus Cristo com vários braços (a obra Cruzando Jesus Cristo Deusa Schiva, de Fernando Baril) e imagens de crianças com as inscrições Criança viada travesti da lambada e Criança viada deusa das águas, da artista Bia Leite. As manifestações foram lideradas principalmente pelo Movimento Brasil Livre (MBL), que pediu o encerramento da exposição e pregou ainda um boicote ao banco Santander. O prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Jr. (PSDB) também se manifestou contra a mostra dizendo que elas exibiam “imagens de zoofilia e pedofilia”.

Diante da forte repercussão repentina, o Santander esclareceu, por meio de nota, em um primeiro momento, que algumas imagens da mostra poderiam provocar um sentimento contrário daquilo que discutem. No entanto, elas tinham sido criadas “justamente para nos fazer refletir sobre os desafios que devemos enfrentar em relação a questões de gênero, diversidade, violência entre outros”. Dois dias depois, entretanto, o banco voltou atrás e cedeu às pressões dos críticos com medo de um forte boicote contra o Santander e de manchar a imagem da instituição financeira.

Em nova nota, neste domingo, o Santander Cultural pediu desculpas a todos os que se sentiram ofendidos por alguma obra que fazia parte da mostra. “Ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana”. O banco resolveu então encerrar a mostra que ficaria em cartaz até o dia 8 de outubro. A exposição foi viabilizada pela captação de 800 mil reais por meio da Lei Rouanet.

A decisão gerou, no entanto, outra polêmica no meio artístico e entre internautas, que acusaram o banco de promover censura. Os termos “MBL” e “Santander” estavam entre os mais comentados do Twitter no Brasil nesta segunda-feira, com comentários contra e a favor do fechamento prematuro da mostra. Muitos reclamavam também da falta de uma classificação de idade mínima para visitar o local.
O curador da exposição diz ter sido pego de surpresa com a notícia. “Já fiz duas bienais do Mercosul, nunca tinha visto algo parecido. As manifestações foram muito organizadas e se debruçaram sobre algumas obras muito específicas, que não dão a verdadeira dimensão da exposição. Esses grupos [de críticos] mostraram uma rapidez em distorcer o conteúdo, que não é ofensivo”, disse Gaudêncio Fidelis ao jornal O Globo.

Antonio Grassi, ex-presidente da Fundação Nacional de Artes e atual diretor executivo do Inhotim, acha lamentável que uma exposição seja interrompida dessa forma. “A arte é o melhor lugar para debater. Eu vejo como preocupante esse tipo de movimento que impulsiona esse tipo de intransigência com o debate. Essas ideias de intolerância são incompatíveis com a arte. É uma censura”, disse ao EL PAÍS.
O crítico de arte Moacir Dos Anjos, que já foi curador da Bienal de São Paulo, também criticou a decisão. “Rumo ao passado. E que vergonhosa a nota do Santander, querendo justificar, valendo-se de hipócrita retórica corporativa, o ato de censura que cometeu. Viva a diversidade!”, escreveu no seu Facebook.

Nas redes sociais, Kim Kataguiri, um dos líderes do MBL, rebateu as críticas e disse que a sociedade brasileira se mobilizou para repudiar a exposição e o banco, com medo de perder clientes, cancelou a mostra. “Isso é um boicote que deu certo, não uma censura”, escreveu. Kataguiri também publicou uma foto da obra Cena de Interior II, da artista Adriana Varejão para alegar que 800 mil reais de dinheiro público foram investidos em exposição para crianças verem pedofilia e zoofilia.

Ao EL PAÍS, a artista afirmou que a obra em questão é adulta, feita para adultos. “A pintura é uma compilação de práticas sexuais existentes, algumas históricas (como as Chungas, clássicas imagens eróticas da arte popular japonesa) e outras baseadas em narrativas literárias ou coletadas em viagens pelo Brasil. O trabalho não visa julgar essas práticas”, explicou. Adriana, que tem peças nas coleções do Tate Modern, de Londres, no Museu Guggenheim, em Nova York, e na Fundação La Caixa, em Barcelona, disse ainda que, como artista, apenas busca jogar luz sobre coisas que muitas vezes existem escondidas.

Não é a primeira vez que obras causam uma chuva de reclamações e são censuradas. Em 2006, o Banco do Brasil retirou do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro a obra Desenhando em Terços, da artista plástica Mácia X, que mostrava a foto de dois terços que desenhavam dois pênis e formavam também uma cruz.

Em protesto contra o encerramento da mostra Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, o Nuances – Grupo Pela Livre Expressão Sexual organiza nesta terça-feira  à tarde, em frente ao Santander Cultural, o Ato pela Liberdade de Expressão Artística e Contra a LGBTTFobia, “em defesa da liberdade de expressão artística e das liberdades democráticas”.

 

Fonte: El Pais Brasil