Em debate realizado na noite da última segunda-feira no Rio de Janeiro o ex-ministro da Previdência Social, Carlos Gabas, e a economista e professora da UFRJ, Denise Lobato Gentil, demonstraram o risco que representa a proposta de reforma da previdência proposta pelo governo Temer. Nas duas falas ficou claro não só que a questão do déficit é discutível, mas que os brasileiros mais pobres e socialmente vulneráveis serão os mais duramente atingidos.
Gabas defende que, antes de discutir se a previdência é deficitária ou superavitária, precede uma discussão conceitual. “A reforma que o governo Temer mandou não tem relação com a sustentabilidade. Ela se aproveita de uma discussão — necessária e que nós já vínhamos fazendo – para mandar um conjunto de medidas que destroem a previdência social. Esta reforma acaba com a proteção ao trabalhador rural, às mulheres, aos professores, às pensões, às aposentadorias especiais e à própria aposentadoria em si. Foram décadas de muito trabalho para se construir o sistema que foi consolidado pela Constituição de 1988 num conjunto de políticas de proteção social”, analisou.
Mais do que cifras, o que norteia a atitude do governo Temer é uma questão ideológica. “Esta discussão é essencialmente política e é de concepção. Na nossa concepção o Estado serve para proteger as pessoas, para alcançar aqueles que mais precisam. O que está em jogo é a disputa pelo orçamento da União. Se ele vai continuar servindo para acumular, pagar os rendimentos do capital e engordar o caixa de poucas famílias ou para proteger a sociedade. Os governos Lula e Dilma puseram o pobre no orçamento da União e isso incomodou as elites”, apontou. Com os programas sociais criados nestas gestões, sobrou menos dinheiro para o capital e é isto que está em disputa. “À elite não interessa crescimento econômico com distribuição de renda. É muito melhor recessão, desemprego e o juro nas alturas porque não há risco de investir na atividade econômica e o lucro é garantido. É este projeto que queremos combater. Foi divulgado na última semana que seis famílias detêm o mesmo que 100 milhões de pessoas, metade da população. Isto é uma enorme concentração de renda. E o que defendemos é a distribuição de renda, e a seguridade social não é nada mais que isso”, analisou.
Desequilíbrio?
Funcionário de carreira do INSS e profundo conhecedor do tema, Gabas foi enfático em afirmar, sobre o tão anunciado déficit da previdência, que há um equivoco deliberado na apresentação dos números. As fontes de financiamento da Seguridade Social são muitas e existem para garantir a sustentação do modelo. “Um dos melhores sistemas de proteção social do mundo é o brasileiro. Temos uma ampla cobertura para uma população muito grande. Não se pode comparar o sistema do Brasil com o de um país como a Dinamarca, que é muito menor em extensão e em população”, defende. O ex-ministro afirmou, ainda, que o país tem uma dívida com negros e mulheres e que é preciso oferecer proteção principalmente aos mais pobres. Para Gabas, a proposta de reforma apresentada pelo governo do golpista Temer “atinge de forma frontal e cruel todos os segmentos da sociedade”.
Uma das alegações dos que combatem o atual modelo é que a aposentadoria do trabalhador do campo pesa no orçamento do sistema. “A aposentadoria rural é previdência, não é assistência. O que é diferente é a contribuição”. A aposentadoria do trabalhador rural foi implementada pela Constituição de 1988 e representou um enorme avanço para conter a miséria nas áreas mais remotas do país”, destacou.
Quanto ao equilíbrio das contas, Gabas afirmou que, nos anos em que a economia apresentou crescimento, as despesas ficaram estáveis e a receita aumentou. “As despesas não tiveram um descontrole, uma explosão. O déficit se dá pela queda de arrecadação, que é fundamentalmente baseada nas folhas de pagamento das empresas, nos salários. Foi com a crise e a recessão que a arrecadação diminuiu”, esclareceu. Para nós, o remédio não é a retirada de direitos, mas o crescimento econômico”, defende.
A falácia do déficit tem sido usada para escamotear o real motivo da reforma. “Há um interesse direto na privatização da proteção previdenciária”, afirmou. Segundo o ex-ministro, desde o anúncio da proposta está sendo estimulada a contratação de planos de previdência privada. “Também houve mudanças na legislação para permitir que os fundos de previdência públicos, criados para complementar a aposentadoria do servidor, sejam administrados por empresas privadas”, destacou Gabas.
Projeto
Todas estas mudanças fazem parte de um projeto político privatista que favorece os empresários, sobretudo os do sistema financeiro. “Há uma orientação velada para que as pessoas migrem para a previdência complementar aberta, privada. Isso é um pagamento para aqueles que fizeram o golpe. Dinheiro de volta para quem financiou o golpe”, destacou Gabas.
Na análise do ex-ministro, os segmentos mais afetados serão os trabalhadores rurais, que são segurados especiais, os pensionistas e os idosos e deficientes pobres. “A LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social – foi duramente atingida. Os idosos pobres terão que atingir 70 anos para receber o benefício, que não será mais vinculado ao salário-mínimo. E esta renda vai contar para a renda familiar per capita. Por exemplo, numa família que tenha um idoso e um deficiente, um deles vai ficar sem o benefício”, exemplificou.
A reforma da previdência faz parte do mesmo “pacote de maldades” em que estão a PEC do ajuste fiscal e a reforma trabalhista. Com estas três medidas, a população será duramente prejudicada e o capital será privilegiado, o que vai provocar uma concentração de renda ainda maior. “Estas reformas são para retirar direitos, precarizar as relações de trabalho e acabar com a proteção social. Nossa tarefa é levar isso ao conhecimento do trabalhador, mostrar que isso piora a vida das pessoas e que é desnecessário. Há outras maneiras de resolver os problemas. Todas estas reformas estão relacionadas e precisamos combater todas elas. Nenhuma pode passar”, defendeu.
Para Gabas, a luta contra todas estas reformas vai depender do empenho da sociedade civil organizada. Temos que falar para fora, ir até a base eleitoral dos que são favoráveis à reforma e mostrar aos trabalhadores que projeto aqueles parlamentares apoiam. Precisamos voltar a fazer o trabalho de militância que sempre fizemos. E, para voltar a fazê-lo, precisamos voltar a sonhar”, propõe o ex-ministro.
Números e injustiça
A professora Denise mostrou os números e os detalhes mais perversos da reforma. Ela apontou que a proposta é tão dura que até os organismos internacionais que, tradicionalmente, defendem medidas austeras se mostraram contrários ao modelo proposto. “A reforma proposta aqui é mais radical que as que estão sendo discutidas na Europa, e os nossos indicadores sociais são muito piores. É a que tem idade para aposentadoria maior, mas nossa expectativa de vida é, em média, de oito anos a menos”, aponta.
Apresentando os indicadores como índices de desenvolvimento, acesso à saúde, escolaridade e níveis salariais, entre outros, a professora Denise Gentil destacou o despropósito da proposta. O argumento de que a população está envelhecendo também não se sustenta, porque o ritmo não é tão acelerado quanto o governo alardeia. “O envelhecimento dos países europeus aconteceu na década de 80 e o do Brasil está começando agora. E, mesmo assim, não consta que os idosos tenham quebrado a Europa. O que quebrou a Europa foram os bancos”, destacou.
Pacote de maldades
Para Denise, o impacto da reforma sobre os segmentos mais pobres será não só amplo, como dramático. “Esta reforma vai fazer controle populacional. Se for aprovada, será um genocídio”, alertou a economista.
Uma das principais distorções é que, segundo a proposta, haverá somente um tipo de aposentadoria: por idade. A proposta iguala a condição para homens e mulheres e ainda prevê que, sempre que a expectativa de vida da população aumentar em um ano, a idade para aposentadoria também será aumentada em 12 meses. “A proposta também acaba com as aposentadorias especiais. Só vai haver aposentadoria especial para as profissões em que o trabalhador está exposto a agentes e condições que prejudiquem diretamente sua saúde. Quem tem riscos na atividade laboral não poderá mais se aposentar antes. Por exemplo, quem trabalha em mina terá que trabalhar, no mínimo, até os 65 anos”, destacou.
Denise mostrou que as estratégias dos defensores da reforma para convencer a sociedade de sua importância é apostar na desinformação e na rivalidade. “Primeiro, falam difícil e não mostram números. Aí, ninguém sabe exatamente o que está sendo proposto. Em segundo, dividir as pessoas. Colocar trabalhadores jovens contra os idosos. Mulheres contra os homens. O machismo desta reforma é ridículo! Ainda temos, no meio urbano, mulheres com escolaridade de 12 anos recebendo 60% do salário de um homem com os mesmos anos de estudo na mesma função”, destacou.
Plano bem engendrado
A perversidade não está somente nas novas regras, mas nos motivos. “Por um lado, se diz que é necessário fazer reforma na previdência porque a despesa aumentou. Por outro, se faz renúncia fiscal, reduzindo a arrecadação. A DRU – Desvinculação das Receitas da União – prevê que 20% das receitas de seguridade social podem ser usadas em outras despesas”, criticou a professora.
Para Denise Gentil, a previdência, em si, não tem problemas. “O que causa crise na previdência é a política macroeconômica do governo. O que provoca os desajustes fiscais são os juros, defende a economista. E aponta como o governo está operando para empurrar o país para o aumento da concentração de renda, também citada pelo ex-ministro Gabas. “O que está sendo feito é promover recessão para provocar desemprego e diminuir os salários. É preciso que o governo faça política monetária para equilibrar a economia”, propõe a professora.
O evento foi promovido pela Frente Brasil Popular-RJ e transmitido ao vivo pela Internet, através da página da FBP no Facebook. O vídeo da palestra pode ser visualizado abaixo.
Fonte: Fetraf-RJ/ES