A dirigente sindical Jô Portilho, diretora do Sindicato dos Bancários do Rio, acaba de obter o grau de Doutora em Serviço Social pela UERJ, com a tese Metamorfoses do Trabalho Doméstico Remunerado no Contexto Globalizado – O Caso Brasileiro.
Depois de obter grau de mestra ao se debruçar sobre a formação sindical dos bancários do Rio de Janeiro na década de 90, Jô decidiu estudar aquelas trabalhadoras que oferecem o suporte para bancárias e bancários – assim como trabalhadores de classe média das demais categorias – para poderem se dedicar ao trabalho remunerado fora de casa.
Para desenvolver a tese, Jô estudou, além de documentos e registros sobre o trabalho doméstico no Brasil, a questão do subdesenvolvimento: as teorias que discutem a dependência do Brasil em relação ao capital internacional e aos países mais desenvolvidos e as propostas para superar a defasagem.
A bancária, então, se debruçou sobre o período compreendido entre o início do século XX e pouco após a aprovação da Emenda Constitucional 72, de 2013, que instituiu plenos direitos trabalhistas às trabalhadoras domésticas.
Lenta evolução
O trabalho doméstico no Brasil mantém ainda características escravocratas. Depois da abolição da escravatura, em 1889, os negros e negras libertos foram deixados à própria sorte e alguns preferiram permanecer vivendo e trabalhando nas casas de seus antigos proprietários em troca do necessário pela sobrevivência. Isto foi ainda mais significativo entre os escravos domésticos, que serviam dentro das casas de seus senhores e tinham uma vida um pouco menos sacrificada que aqueles que trabalhavam na lavoura ou em outra atividade produtiva mais pesada. Mas o que aconteceu foi que os escravos libertos que continuaram vivendo com seus senhores nunca chegaram a ser reconhecidos como trabalhadores. Com o passar dos anos, as pessoas mais pobres e menos qualificadas – principalmente mulheres negras – passaram a ter no serviço doméstico a única opção de sustento.
A criação da CLT, em 1943, deixou de fora servidores públicos, que já tinham seu próprio estatuto, os trabalhadores rurais e as empregadas domésticas. Os rurais tiveram alguns direitos regulamentados mais tarde, mas as domésticas só passaram a ser reconhecidas como trabalhadoras em 1972, com a lei 5.859, que lhes garantiu o direito à carteira assinada.
Na época da instalação da Constituinte, no final dos anos 80, o movimento feminista era muito próximo da nascente organização das domésticas. O movimento negro, que já amparava as domésticas destacando e valorizando sua identidade étnica e cultural, foi politizando cada vez mais as discussões com o passar dos anos. “O movimento sindical dava suporte também, mas não de maneira sistemática, porque, naquela época, havia uma preocupação em criar garantias para a classe trabalhadora como um todo, não para esta ou aquela categoria”, lembra Jô Portilho.
Com a aprovação da Constituição de 1988 houve a extensão de alguns direitos às domésticas, mas ainda faltava muito. Em 1989 a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) propôs uma lei para a categoria, mas não foi aprovada.
Somente já na segunda década dos anos 2000 – e 70 anos depois da CLT – foi aprovada a Emenda Constitucional 72, em 2013, regulamentada em 2015. “Foi preciso um amadurecimento da sociedade para que se percebesse que todos os trabalhadores têm que ter direitos. Houve necessidade de um acúmulo de forças para que isto fosse possível”, esclarece a bancária.
Em 2006 houve uma proposta de ampliar alguns direitos, como a obrigatoriedade do depósito de FGTS, licença-maternidade e férias de 30 dias – as domésticas tinham direito somente a 20. Mas a proposta foi descartada pelo Congresso. “Como as domésticas estavam fora da CLT, foram conquistando os direitos muito lentamente, a conta-gotas”, esclarece a sindicalista.
A PEC das Domésticas, originalmente, era uma proposta muito avançada e, mesmo com os retrocessos que vieram no processo de regulamentação, ainda está além de um importante instrumento internacional: a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho, que trata do tema.
O texto original da PEC propunha mudanças no artigo da CLT e para dar às domésticas todos os direitos trabalhistas concedidos aos demais trabalhadores, como jornada de trabalho definida, hora-extra, repouso remunerado, entre outros que ainda faltavam. Mas a lei complementar que veio dar os pormenores da Emenda, prejudicou as domésticas. “O projeto de lei, relatado pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR), criou normas que prejudicam o usufruto dos direitos garantidos pela alteração do texto constitucional”, critica Jô Portilho.
Lá fora
Com a criação da Secretaria de Promoção de Políticas para as Mulheres e da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, no governo de Lula, a organização das trabalhadoras domésticas ganhou um impulso. Os órgãos foram uma resposta do então presidente às demandas dos movimentos feminista e negro, que já vinham colaborando com as empregadas domésticas há algumas décadas. Na gestão de Dilma, os órgãos foram empoderados e passaram a ter uma atuação ainda mais destacada. “As duas secretarias forneceram a base técnica até para a redação da Convenção 189’, ressalta Jô Portilho.
A pesquisadora acredita que a discussão sobre trabalho doméstico na OIT tenha nascido como consequência da criação da Agenda do Trabalho Decente, de 1999. Criada na tentativa de frear a drástica redução de postos de trabalho que vinha ocorrendo por ocasião da primeira grande onda neoliberal que varreu o mundo, a Agenda tinha avanços importantes para garantir trabalho digno.
Durante os trabalhos para a montagem da agenda, o trabalho doméstico surgiu como questão urgente. “No âmbito internacional, esta discussão passa pela questão da imigração. Dos cerca de 50 milhões de pessoas que prestam serviços domésticos no mundo todo, aproximadamente 11 milhões são imigrantes, sendo a grande maioria ilegal. São pessoas que sequer saem das casas dos patrões, não têm documentos, não falam a língua”, destaca a pesquisadora. Mas, mesmo invisibilizadas na sociedade, estas pessoas enviam dinheiro para suas famílias, nos seus países de origem. “Então, temos, por um lado, os países para onde os imigrantes vão, que querem limitar a entrada de estrangeiros e, por outro, seus países de origem, interessados em receber uma injeção de dinheiro na economia”, esclarece a bancária.
Mas, como a OIT teve muita preocupação com a questão da imigração e também por, como órgão internacional, não poder interferir na soberania dos países-membros, alguns detalhes não foram discutidos. De todo modo, nem todos os países têm legislação trabalhista tão detalhada como a nossa. Com a soma destes dois fatores, a Emenda Constitucional 72/2013 saiu melhor que Convenção 189.
Mas a convenção da OIT tem a enorme vantagem de abranger as diaristas, que ficaram de fora da EC 72 quando foi aprovada a lei regulamentadora. “Devemos ratificar, sim, esta convenção, e há um peso internacional enorme nesta ratificação pelo Brasil. A presidenta Dilma chegou a mandar o pedido, antes de ser retirada do cargo, mas, infelizmente, nosso Congresso não deve aprová-la. E acho que a dificuldade está justamente no fato de que, graças a vários políticos, principalmente ao relator Jucá, as diaristas não foram incluídas”, entende Jô Portilho.
As excluídas
Segundo dados oficiais, em 2015 havia cerca de 7 milhões de trabalhadores domésticos no Brasil. Deste total, 93% são mulheres, sendo que mais de 60% são negras, de acordo com a autoidentificação registrada nas pesquisas. Mas estas trabalhadoras ainda lutam pela formalização.
Como a classe média entende que “ficou muito caro” contratar empregada, as famílias preferem dispensar as mensalistas e contratar trabalhadoras que façam serviços em um ou dois dias na semana. Muitas vezes, o valor pago pela diária de trabalho é bem mais alto que o correspondente a um dia de serviço de uma mensalista, mas a diarista não tem direitos trabalhistas. Em razão da remuneração aparentemente melhor, muitas trabalhadoras ficam satisfeitas com o arranjo. Mas, em tempos de reforma da previdência, com regras cada vez mais duras para a aposentadoria e para a concessão de benefícios por doença ou acidente, estas trabalhadoras correm o risco de ficar na miséria no fim da vida ou caso se vejam impossibilitadas de trabalhar.
Por quê?
Jô Portilho decidiu se debruçar sobre este tema depois de conversar com uma bancária durante um piquete na greve da categoria. “A mulher, que era casada com um bancário e tinha filhos, e ainda cuidava da sogra idosa, reclamou que o reajuste proposto pelos patrões não cobriria nem o aumento do salário-mínimo, que estava sempre acima da inflação – o que, aliás, foi, a meu ver, a melhor política de redução de desigualdade praticada pelos governos do PT. Esta família era completamente dependente da empregada, que era quem fazia todo o trabalho da casa. E isso porque o casal estava sempre trabalhando, inclusive fora do seu horário regular, para produzir lucro para o patrão”, relata a pesquisadora.
O que chama atenção é o fato de que o trabalho doméstico é necessário para que a classe média possa trabalhar para o capital. “Quem tem que dedicar um tempo cada vez maior ao trabalho produtivo, que gera lucro para as empresas, precisa contratar alguém para dar conta de tarefas que deveriam ser desempenhadas por todas as pessoas da família”, destaca a sindicalista-doutora.
Veio, então, outra constatação: além da exclusão das diaristas, a EC 72 acaba também não alcançando a empregada da empregada. Para que possam estar nas casas de seus patrões a semana toda, as empregadas domésticas também precisam contratar pessoas para cuidar de sua casa e seus filhos. “Mas essa mulher não vai ter condição de registrar sua funcionária, nem de pagar todos os direitos. A informalidade vai continuar, porque há uma cadeia”, observa Jô.
O grande problema desta situação é que, por pressão social, a lei pode acabar caindo em desuso. “Corremos o risco de, mais à frente, verificarmos que a formalização não cresceu e, aí, vão dizer que a lei não deu em nada. Esta é uma característica de vários setores da nossa sociedade que surge com muita força na questão do trabalho doméstico: o moderno vem, mas o arcaico permanece”, conclui Jô Portilho.