Vinte anos de atuação de uma força-tarefa federal não foram suficientes para erradicar o trabalho análogo à escravidão no Brasil. Mesmo com muitas autuações de empresários e libertação de trabalhadores, a prática ainda permanece.
O mais surpreendente é que o perfil mudou: se, antes, a maior parte das pessoas encontradas nesta situação estavam em regiões rurais, hoje o maior número de trabalhadores libertados está nas grandes cidades. Os dados foram reunidos pela Comissão Pastoral da Terra, que constatou que, das 2.208 pessoas resgatadas no ano de 2013, 1.228 – ou 56% – eram trabalhadores urbanos.
Entre as atividades urbanas que empregam trabalhadores escravizados, uma boa parte se encontra nas cadeias produtivas da indústria do vestuário e na construção civil. Chamaram atenção os casos das cadeias de lojas C&A, Marisa e Zara, que envolviam principalmente oficinas na cidade de São Paulo, onde trabalhavam imigrantes bolivianos, a maioria ilegais.
Mas são as construtoras que mais se esforçam para impedir os esforços de combate ao trabalho semelhante ao escravo. A Lista Suja do Trabalho Escravo, publicada desde 2003 – e estabelecida por decreto ministerial no primeiro governo Lula – foi proibida em dezembro de 2014. A decisão liminar do Superior Tribunal de Justiça foi dada em favor de uma associação de construtoras. Antes, a MRV – empresa responsável por boa parte dos empreendimentos comerciais do Minha Casa, Minha Vida – já havia conseguido sua exclusão da lista, também por ordem judicial.
A Construção Civil registra precarização do trabalho desde sempre, mas nos últimos anos os flagrantes de trabalho escravo têm se sucedido – em parte por causa da intensificação das ações de fiscalização. No último fim de semana foi flagrado numa obra em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio de Janeiro, um grupo de 11 trabalhadores em regime análogo à escravidão. Eles estavam num alojamento de empresas que prestavam serviços para a construtora Living, ligada ao grupo Cyrella. As empresas TNO Engenharia em Revestimentos e sua subcontratada, a AGL Construtora, eram os empregadores responsáveis pelos trabalhadores.
Em muitos casos, os trabalhadores mantidos em regime análogo à escravidão eram contratados de terceirizadas ou quarterizadas, como foi o caso constatado das subcontratadas da Living-Cyrella. Isto acontece em diversos setores, como fica comprovado nas cadeias produtivas da indústria de vestuário, da construção civil e do agronegócio, entre outros segmentos. Na maioria das vezes, o tomador do serviço se exime da responsabilidade, alegando que exigia respeito à legislação e fiscalizava a atuação de suas subcontratadas.
Se as empresas realmente exigissem correção e respeito à legislação por parte das subcontratadas, a publicação lista suja não teria sido suspensa.
Crime
Um caso que ficou famoso envolvendo fiscalização do trabalho escravo foi a chamada Chacina de Unaí, que aconteceu em janeiro de 2004. Três fiscais do trabalho, mais o motorista da equipe, foram assassinados a mando dos irmãos Antério e Norberto Mânica, fazendeiros da região de Unaí, no noroeste de Minas Gerais.
O julgamento de intermediários e pistoleiros contratados para matar a equipe de fiscalização aconteceu em 2013. Os irmãos Mânica só foram a júri no final de outubro deste ano. Os mandantes poderão recorrer da sentença – de cerca de 100 anos, descontados os dias já cumpridos – em liberdade.
A data do assassinato dos fiscais e do motorista, 28 de janeiro, foi instituída, em 2009, como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.