UFRJ guarda acervo que relata o trabalho escravo hoje no país

O Brasil da barbárie


A UFRJ dispõe, hoje, do único acervo documental sobre a escravidão contemporânea no Brasil (séculos XX e XXI). São cerca de mil pastas com relatos de violência e de fugas de trabalhadores de fazendas e usinas, acompanhados por depoimentos chocantes das vítimas.


Este precioso arquivo é complementado por documentos oficiais, como inquéritos policiais e relatórios que descrevem ações do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, nos últimos dez anos, além de vá-rios recortes de publicações com reportagens sobre esta vergonhosa realidade brasileira, que atinge milhares de pessoas no campo e também nas regiões urbanas.


O responsável por tudo isso é o Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (Gepetec), coordenado pelo padre e antropólogo Ricardo Resende e pela professora da Escola de Serviço Social, Gelba Cavalcanti Cerqueira. O grupo chegou à UFRJ com o apoio da decana do Centro de Filosofia e Ciên-cias Humanas (CFCH) Suely Almeida, e está instalado numa sala do Centro, na Praia Vermelha. Com a ajuda financeira da Fundação Ford foi criado o banco de dados, mas falta dinheiro para levar adiante o projeto, que é alimentar o banco com as informações. Tarefa que para ser concluída em até seis anos exige reforço da atual equipe em pelo menos 20 pesquisadores e digitadores.


Tanto Gelba quanto Resende acreditam que a Universidade irá contribuir para a concretização do projeto do banco de dados. “O reitor Aloísio Teixeira também está nos apoiando, e como a nossa carência é de profissionais, a instituição pode custear essa despesa ou ceder pessoas da administração”, sugeriu padre Resende. A professora lembrou que a UFRJ tem um dos maiores núcleos de computação, o NCE, de onde poderiam vir os digitadores.


 


Escravo vem de longe


A escravidão por dívida e a emigração são as principais características do escravismo contemporâneo no Brasil, segundo padre Resende. E o escravo, disse, é sempre aquele que vem de longe. De acordo com o pesquisador, o surto da escravidão contemporânea se deu no final dos anos 60, quando o governo militar criou a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) com o objetivo de integrar a região ao restante do país com medo da internacionalização da Amazônia – na época o movimento ecológico internacional dizia que a Amazônia era o pulmão do mundo.


Em 1995, sob forte pressão da Comissão Pastoral da Terra (CPT) a partir do sul do Pará, o governo federal foi obrigado a criar o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, com pessoas indicadas por Brasília, o qual foi mantido pelo governo Lula. O país foi dividido em cinco regiões, e a maioria dos fiscais e coordenadores é contituída por mulheres. Para padre Resende, “houve mudanças que estão se tornando não só eficientes como eficazes”. E cita algumas: “Atualmente o Ministério do Trabalho publica e divulga na internet a Lista Suja, uma relação dos imóveis envolvidos com mão-de-obra escrava. Quem consta da lista não consegue empréstimos e outros financiamentos oficiais.”


 


25 mil sob trabalhos forçados


A Comissão Pastoral da Terra estima que 25 mil pessoas continuam submetidas a trabalhos forçados, no campo. E padre Resende diz que ninguém sabe ao certo os números da escravidão hoje no Brasil, principalmente se for contabilizada a escravidão urbana. “Seguramente atinge um maior número de pessoas”, garante. No caso da escravidão urbana, o único lugar do Brasil que está sendo pesquisado é São Paulo, pela Pastoral dos Imigrantes. Ele explica que há dois modelos desse tipo de escravidão: dentro das cidades e nos navios estrangeiros ancorados nos portos. No Rio de Janeiro os humilhados são africanos, asiáticos e latino-americanos em geral, e em São Paulo, bolivianos e asiáticos. Segundo o pesquisador, o Gepetec não tem como fazer esse levantamento. “Não queremos fazer tudo”, diz.


Durante 20 anos Ricardo Resende acompanhou bem de perto essa tragédia humana. Primeiro trabalhando na CPT e morando em Conceição do Araguaia; depois como pároco de Rio Maria — regiões do sul do Pará. “Nessas duas décadas acolhia na minha casa, recebia no escritório da CPT ou na igreja pessoas despejadas da terra ou que fugiam do trabalho escravo. Perdi muitos amigos assassinados. As mortes eram em conflitos na luta pela terra ou por tentarem fugir do trabalho escravo. A necessidade de salvar vidas impedia que estudássemos o problema sob outro ângulo que não fosse o da sobrevivência. Fazíamos anotações, e nos preocupávamos com quem fugisse, conseguisse escapar e em salvar os que estavam dentro da fazenda.” Enfrentar e desafiar as forças de repressão no campo significou ter a vida também por um fio. Resende foi jurado de morte inúmeras vezes. O padre documentou sua experiência no livro Pisando fora da própria sombra – A escravidão por dívida no Brasil contemporâneo, resultado da sua tese de doutorado no IFCS, e foi premiado duas vezes.


 

Fonte: Jornal do Sintufrj