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Aprender a pensar

Frei Betto*


 


 


Nosso olhar está impregnado de preconceitos. Uma das miopias que carregamos é considerar criança ignorante. Nós, adultos, sabemos; as crianças não sabem.


 


O educador e cientista Glenn Doman se colocou a pergunta: em que fase da vida aprendemos as coisas mais importante que sabemos?


 


As coisas mais importantes que todos sabemos é falar, andar, movimentar-se, distinguir olfatos, cores, fatores que representam perigo, diferentes sabores etc. Quando aprendemos isso? Ora, 90 % de tudo que é importante para fazer de nós seres humanos, aprendemos entre zero e seis anos, período que Doman considera “a idade do gênio”.


 


Ocorre que a educação não investe nessa idade. Nascemos com 86 bilhões de neurônios em nosso cérebro. As sinapses, as conexões cerebrais, se dão de maneira acelerada nos primeiros anos da vida.


 


Glenn Doman tratou crianças com deformações esqueléticas incorrigíveis, porém de cérebro sadio. Hoje são adultos que falam diversos idiomas, dominam música, computação etc. São pessoas felizes, com boa  autoestima. Ao conhecer no Japão um professor que adotou o método dele, foi recebido por uma orquestra de crianças; todas tocavam violino. A mais velha tinha quatro anos…


 


Ele ensina em seus livros como se faz uma criança, de três ou quatro anos, aprender um instrumento musical ou se autoalfabetizar sem curso específico de alfabetização. Isso foi testado na minha família e deu certo. Tenho um sobrinho-neto alfabetizado através de fichas. A mãe lia para ele histórias infantis e, em seguida, fazia fichas de palavras e as repetia. De repente, o menino começou a ler antes de ir para a escola.


 


Se me perguntassem: para o Brasil dar certo, que reformas precisariam ser feitas? Eu diria: uma objetiva, e outra subjetiva. A objetiva é a reforma agrária. Brasil e Argentina são os únicos países das três Américas que nunca passaram por uma reforma agrária. O detalhe é que somos o único país das Américas com área cultivável de 600 milhões de hectares, e com enorme potencial de produção extrativa, como é o caso da Amazônia. No Continente, nenhum outro país se iguala ao nosso em possibilidade produtiva.


 


A reforma subjetiva seria a da educação. Todo o potencial da nossa vida depende da educação recebida. A educação no Brasil nunca foi suficientemente valorizada. E sofreu um trauma durante a ditadura militar, ao adotar o método usamericano de não qualificação dos conteúdos, e sim de quantificação.


 


Sobretudo suprimiu do currículo disciplinas que nos ajudam a pensar, como filosofia e sociologia, agora reintroduzidas em algumas escolas de ensino médio. Durante décadas foram proibidas, tanto que em Belo Horizonte um professor, aos sábados, resolveu, por conta própria, dar aula de filosofia para alunos que se interessassem. O êxito foi tamanho, que a escola teve que introduzi-la no currículo.


 


 


 


* Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – Autobiografia Escolar” (Ática), entre outros livros.
www.freibetto.org/     twitter: @freibetto


 


 






Copyright 2015 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (
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Fonte: Frei Betto

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Três Papas em Cuba

Frei Betto*

O Vaticano acaba de anunciar que, a caminho dos EUA, no final de setembro, o papa Francisco visitará Cuba. O único país socialista da história do Ocidente divide com o Brasil o privilégio de merecer a visita dos três últimos pontífices.

Assessorei o governo cubano no decorrer das viagens de João Paulo II (janeiro de 1998) e Bento XVI (março de 2012), e testemunhei o entusiasmo com que foram acolhidos pela população.

Quando Bento XVI anunciou que iria à ilha, os bispos da América Latina se queixaram, pois ele havia visitado, no Continente, apenas o Brasil, e não reservara agenda para outros países majoritariamente católicos, como México, Colômbia e Argentina. A queixa obrigou Bento XVI a fazer escala no México, onde recebeu os bispos do Conselho Episcopal Latino-Americano.

Em Cuba, apenas 5 % da população de quase 12 milhões de habitantes se declaram católicos.

A Casa Branca (George W. Bush) pressionou João Paulo II, de todas as formas, para que ele não fosse a Cuba. Se fosse, condenasse o regime revolucionário. Wojtyla foi, permaneceu ali cinco dias, mais do que o tempo habitual dedicado a outros países, estreitou seus laços de amizade com Fidel, e ainda elogiou os avanços sociais da Revolução, como a saúde e a educação.

Bento XVI esteve em Cuba por apenas três dias, e também nada expressou que contrariasse as autoridades do país.

Na visita de João Paulo II, Fidel quebrou o protocolo e, todas as noites, esteve na nunciatura, onde o pontífice se hospedou. Mantiveram longas conversas regadas a sucos tropicais.

Raúl, em 2012, teve a sorte de um forte temporal impedir que a aeronave de Bento XVI decolasse na hora prevista, o que possibilitou longa conversa entre os dois.

Tanto Fidel quanto Raúl foram alunos internos de colégios jesuítas por longos anos, e consideram muito positivo esse período de suas vidas. Aliás, para entender suas personalidades há que conhecer como os jesuítas forjavam o caráter de seus alunos na primeira metade do século XX.

Após a visita de João Paulo II, o teólogo italiano Giulio Girardi, em almoço com Fidel, comentou considerar exorbitante o papa presentear a Virgem da Caridade, a Aparecida de Cuba, com uma coroa de ouro. Fidel reagiu bravo: “A Virgem da Caridade não é apenas padroeira dos católicos. É padroeira de Cuba.”

O papa Francisco fez a ponte (daí pontífice) para Cuba e EUA se reaproximarem, como admitiram Raúl e Obama nos discursos de retomada da boa vizinhança, a 17 de dezembro de 2014.

Em 1959, a vitória da Revolução contou com a reação contrária da Igreja Católica, marcada pelo franquismo espanhol. Embora nenhum sacerdote tenha sido perseguido e nenhum templo fechado, o diálogo entre Estado e Igreja na ilha se resumia à amizade de Fidel com os núncios papais. A relação com o Vaticano jamais se rompeu.

Em 1981, por solicitação de Fidel, e anuência dos bispos cubanos, iniciei no país o trabalho de reaproximação entre Igreja Católica e Estado. A publicação do livro “Fidel e a Religião”, em 1985, reduziu significativamente o preconceito comunista à religião e o temor dos católicos frente à Revolução.

Fidel retomou o diálogo com os bispos. Suprimiu-se o caráter ateu do Estado e do Partido Comunista de Cuba, hoje oficialmente laicos. Agora, são excelentes as relações do governo cubano com a Igreja Católica, para tristeza dos anticastristas de Miami, que insistem em demonizar a Revolução.

Ao desembarcar em Havana, o papa Francisco não encontrará uma nação católica. E muito menos ateia. Será acolhido calorosamente por um povo imbuído de religiosidade sincrética, na qual se mesclam, como na Bahia, espiritualidade animista de origem africana e tradições cristãs. Um povo que, como nenhum outro do Continente americano, reparte entre si e com outros povos o pão da vida. 

* Frei Betto é escritor, autor de “Oito vias para ser feliz” (Planeta), entre outros livros.
www.freibetto.org/     twitter: @freibetto


 





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Fonte: Frei Betto

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Governo Dilma. E agora, José?

Frei Betto*


 


A situação política brasileira está muito complicada. Em nome do “ajuste fiscal”, Dilma implantou severo arrocho sobre os mais pobres e preservou as benesses das elites. Nem um dedinho para cortar pensões de filhas de militares, taxar heranças e adotar o imposto progressivo – quem ganha mais paga mais.



É como as torneiras das mansões dos Jardins, bairros nobres da capital paulista. Eram abastecidas de água pelo sistema Cantareira. Na hora em que este atingiu o volume morto, o governo de São Paulo fez com que os Jardins passassem a ser regados pela represa de Guarapiranga. Enquanto isso, as torneiras dos pobres andam rachando de tão ressecadas…



Dilma prometeu, na campanha, não mexer nos direitos dos pobres “nem que a vaca tussa”. A vaca anda afônica de tanto tossir…



Acrescem-se a isso a crise hídrica, que resulta na energética (por mera falta de planejamento), e a ofensiva da banda podre do PMDB e o recuo do PT.



A banda pôs em movimento o rolo compressor. Ocupou as presidências do Senado e da Câmara e, agora, almeja a da República. Por isso, submete o Planalto a derrotas sucessivas no Congresso e respalda a proposta de impeachment de Dilma.



Se a manobra do impeachment não der certo, não será surpresa se, nas eleições de 2018, o PMDB aparecer com candidato próprio ao Planalto.



O certo é que, hoje, o PMDB não quer governar o Brasil com Michel Temer. Quer com Eduardo Cunha, apoiado tacitamente pela oposição.



O PT, acuado pelo petrolão e as medidas impopulares tomadas por Dilma na economia, finge de morto, enquanto o rolo compressor avança. Uma ou outra voz, como a do deputado Vicentinho, ousa vir a público e denunciar que o rei está nu. (No caso, a rainha).



Qual a saída? Assistir ao circo pegar fogo? Só há duas alternativas: reforçar o coro dos descontentes e permitir que o comando do país seja assumido pela banda podre da política brasileira ou botar o bloco na rua, no caso os movimentos sociais.



Na primeira hipótese, colocar quem no lugar de Dilma? Ganha uma viagem de primeira classe para Maracangalha quem apontar  um líder brasileiro (não vale Lula, que já atua, não como governo, mas como presidente paralelo) capaz de conduzir o país a dias melhores.



Em junho de 2013, os movimentos sociais promoveram manifestações que obrigaram o governo a rever suas posições. Em outubro de 2014, os movimentos sociais asseguraram a vitória apertada de Dilma no segundo turno.



Agora, José, só eles podem salvar as políticas sociais, os direitos dos pobres, e provocar a reforma política e a mudança da atual – e nefasta – política econômica.



Resta saber se vão passar da inércia aos protestos e dos protestos às propostas.


 


 



* Frei Betto é escritor, autor de “Oito vias para ser feliz” (Planeta), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto.


 


 


 





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Fonte: Frei Betto

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Para que serve a educação?

Frei Betto*


 


Uma educação crítica e cooperativa é capaz de reproduzir as bases materiais e espirituais de uma sociedade baseada na solidariedade.



A educação detém o poder de destronar uma racionalidade dominante para introduzir outra, desde que não seja meramente teórica e se vincule a processos efetivos de produção material da existência.



Não diferimos dos animais por nossa capacidade de pensar, e sim de reproduzir nossos meios de sobrevivência.



Uma educação libertadora é a que almeja conquistar hegemonia por consenso, por práticas efetivas, e não por coerção ideológica. Deve abranger todas as disciplinas escolares, das ciências exatas à educação física, superando relações fundadas na economia de trocas para a economia solidária, baseada na cooperação.



As relações mercantilistas influem nas concepções daqueles que as adotam ou se deixam reger por elas, pois  acentuam o individualismo e induzem os educandos a acreditar que o mercado obedece a uma “lei natural”, e que fora dele não há alternativa… É isso que nos leva a, literalmente, torturar a natureza para que ela nos forneça seus frutos o quanto antes.



Há que perguntar: para que serve a educação? Para adaptar os educandos ao status quo? Para transmitir o patrimônio cultural da humanidade como se ele resultasse da ação destemida de heróis e gênios? Para formar mão de obra qualificada ao mercado de trabalho? Para adestrar indivíduos competitivos?



Um educação crítica e solidária engloba todos os atores da instituição escolar: alunos, professores, funcionários e suas respectivas famílias. E ultrapassa os muros da escola para se vincular participativamente ao bairro, à cidade, ao país e ao mundo.



As portas da escola permanecem abertas a movimentos sociais, atores políticos, artistas, trabalhadores. E a ótica de seu processo pedagógico enfatiza esta verdade que a lógica mercantilista tenta encobrir: tanto a evolução da natureza quanto a história da humanidade têm seus fundamentos muito mais centrados na cooperação, na solidariedade, que na seleção natural, na competitividade e na exclusão.



O valor da escola se avalia por sua capacidade de inserir educandos e educadores em práticas sociais cooperativas e libertadoras. Por isso é indispensável que a escola tenha clareza de seu projeto político pedagógico, em torno do qual deve prevalecer o consenso de seus educadores. Sem essa perspectiva, a escola corre o risco de ficar refém da camisa de força de sua grade curricular, como mero aparelho burocrático de reprodução bancária do saber.



Reinventar o futuro é começar por revolucionar a escola, transformando-a em um espaço cooperativo no qual se intercalem a formação intelectual (consciência crítica), científica e artística de protagonistas sociais comprometidos eticamente com os desafios de construir outros mundos possíveis, fundados na partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano.


 



* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Mário Sérgio Cortella, de “Sobre a esperança” (Papirus), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto.


 


 


 





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Fonte: Frei Betto

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Eufemismo, a arte de enganar

Frei Betto*

Em seu livro Pernas pro ar (L&PM), Eduardo Galeano recorda que, na era vitoriana, era proibido mencionar calças na presença de uma jovem.

Hoje em dia, diz ele, não cai bem utilizar certas expressões perante a opinião pública: “O capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado; imperialismo se chama globalização; suas vítimas se chamam países em via de desenvolvimento; oportunismo se chama pragmatismo; despedir sem indenização nem explicação se chama flexibilização laboral” etc.

A lista é longa. Acrescento os inúmeros preconceitos que carregamos: negro é chamado de afrodescendente (embora ninguém nunca tenha dito que sou iberodescendente ou eurodescendente); ladrão é sonegador; lobista é consultor; fracasso é crise; especulação é derivativo; latifúndio é agronegócio; desmatamento é investimento rural; lavanderia de dinheiro escuso é paraíso fiscal; acumulação privada de riqueza é democracia; socialização de bens é ditadura; governar a favor da maioria é populismo; tortura é constrangimento ilegal; invasão é intervenção; peste é pandemia; magricela é anoréxica. 

Nessa crise política e econômica que o Brasil atravessa, aumento de conta de luz virou realinhamento dos preços de energia; recessão, retração; sonegação, evasão fiscal; cortes e aumento de impostos, ajuste fiscal ou reversão de ações anticíclicas…

Eufemismo é a arte de dizer uma coisa e acreditar que o público escuta ou lê outra. É um jeitinho de escamotear significados. De tentar encobrir verdades e realidades.

Posso admitir, por exemplo, que pertenço à terceira idade, embora esteja na cara: sou velho. Velho e assumido, pois não tinjo e cabelo nem fiz plástica. Há quem prefira outros eufemismos: melhor idade, dign/idade etc.

Ora, poderia dizer que sou seminovo! Como carros em revendedoras de veículos. Todos velhos! Mas o adjetivo seminovo os torna mais vendáveis. Ainda mais quando o comprador ignora que, hoje em dia, não é difícil adulterar o marcador de quilometragem. Como tantos velhos que se empenham, ridiculamente, em disfarçar a idade.

Em São Paulo há notório racionamento de água. O governador Alckmin não gosta da expressão, embora lhe tenha escapado da boca. Prefere “contenção hídrica”.

No dia 20 de janeiro deste ano, uma segunda-feira, houve apagão em onze estados e no Distrito Federal. O Planalto veio a público tentar negar o óbvio – milhões de pessoas privadas de energia. Falou em “desligamento técnico”.

Coitadas das palavras! Parafraseando Lampedusa, são distorcidas para que a realidade, escamoteada, permaneça como está. Não conseguem, contudo, escapar da luta de classes: pobre é ladrão, rico é corrupto. Pobre é puta, rica é modelo. Pobre é viciado, rico é dependente químico.

Em suma, eufemismo é um truque semântico para tentar amenizar os fatos.


 


 


* Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
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Fonte: Da Redação – Fetraf-RJ/ES

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Crise Brasil: a farra acabou

Frei Betto*

Na noite de domingo, 8/3, a presidente Dilma, em rede nacional de mídia, anunciou que a crise brasileira é grave.

O país não apresenta perspectivas de crescimento em 2015. A inflação aumenta a cada mês e, o dólar, a cada dia. Não há investimentos à vista. Direitos sociais, como abono desemprego e pensão viuvez, sofreram cortes. Os juros voltam a subir. E a corrupção na maior empresa brasileira, a Petrobras, administrada pelo governo, deixa o PT acuado e aprofunda a crise política.

A farra acabou. Foram 11 anos (2003-2014) de bonança: crescimento econômico; investimentos estrangeiros; inflação e câmbio sob controle; crédito facilitado; aumento real do salário mínimo; desemprego baixo.

Graças aos programas sociais, 36 milhões de brasileiros saíram da miséria. As ruas se entupiram de veículos novos. Qualquer barraco de favela está equipado com TV em cores, geladeira, fogão, máquina de lavar (graças à desoneração da linha branca) e telefones celulares. E Dilma, na campanha presidencial de 2014, prometeu que nada disso mudaria.

Agora, tudo muda. O novo lema do governo – “Brasil, Pátria Educadora” – foi anunciado em um dia e, no outro, R$ 14 bilhões foram cortados do orçamento da educação.

Onde o governo errou? Errou ao adotar um populismo cosmético. Se você tem renda suficiente para pagar aluguel e sustentar a família, não pode oferecer aos filhos motos, carros e férias no exterior. A conta não fecha. Um dia a casa cai e o rombo terá que ser coberto, ainda que a família perca quase todos os bens.

Quem não semeia não colhe. O governo quis colher onde não semeou. Em 12 anos, não promoveu nenhuma reforma de estrutura. Nem agrária, nem tributária, nem política.

Isso me lembra o velho Araújo. Vargas, presidente, todo ano, a 21 de abril, mudava simbolicamente a capital do país para Ouro Preto. Araújo, que residia em casa maior que a sua conta bancária, ofereceu ao presidente, em sua passagem por Belo Horizonte, um banquete. Na mesa, tudo do bom e do melhor. O que não havia em Minas, veio do Rio e de São Paulo. Do banquete, a família guarda duas recordações: a feliz, a comilança regada a champanha francesa. A triste, a falência do velho Araújo.

Havia alternativa para o PT? Sim, se não houvesse jogado a sua garantia de governabilidade nos braços do mercado e do Congresso; se tivesse promovido a reforma agrária, de modo a tornar o Brasil menos dependente da exportação de commodities e mais favorecido pelo mercado interno; se ousasse fazer a reforma tributária recomendada por Piketty, priorizando a produção e não a especulação; se houvesse, enfim, assegurado a governabilidade, prioritariamente, pelo apoio dos movimentos sociais, como fez Evo Morales na Bolívia.

A crise econômica tende a se aprofundar. Já a política se arrastará até 2018, ano de eleições presidenciais. Se o governo não voltar a beber na sua fonte de origem – os movimentos sociais e as propostas originárias do PT – as forças conservadoras voltarão a ocupar o Planalto.


 


 


 


* Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
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Fonte: Frei Betto

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Regulação da mídia: liberdade de expressão, liberdade de um povo

Almir Aguiar*

O Brasil tem diante de si, neste segundo governo da presidente Dilma, a rara oportunidade de eliminar e de passar a limpo erros do passado, cometidos contra a liberdade de expressão pela ditadura civil-militar e pelos governos eleitos que se seguiram, antes do mandato do presidente Lula. Precisamos regular a distribuição e a utilização das concessões de emissoras de rádio e de televisão, feitas mafiosamente em grande número, para beneficiar os aliados políticos dos poderosos de plantão. Imperava a velha política de favores, do tipo: “Você me dá apoio político e eleitoral e eu lhe concedo o direito de implantar uma emissora de rádio e de TV”. Um comportamento nada republicano. A liberdade de expressão vivia e vive abafada até hoje, porque os artigos da Constituição Federal de 1988 sobre a mídia, misteriosamente ainda não foram regulamentados. Vamos acabar com este mistério.

São centenas as emissoras de rádio e televisão distribuídas pelos antigos governos aos seus aliados políticos, e que se multiplicaram ao longo de décadas, com o acréscimo de emissoras repetidoras por todo o país, que foram se juntando às já existentes, até se transformarem em redes, em verdadeiros impérios, em um poder paralelo na República. Em vez do compromisso com a verdade dos fatos, TVs e rádios começavam a formar conglomerados para divulgar notícias cujo foco são os interesses de grupos beneficiados nas transações a que elas representam. Cresceu o oligopólio da comunicação, cujos lucros sustentam também veículos da mídia impressa, porque a vendagem destes vem caindo muito, por causa da internet. Seus proprietários querem manter negócios privilegiados sem a contrapartida de dedicarem, por exemplo, espaços a programações culturais e a debates de idéias que possam apontar caminhos novos para o Brasil. Comportam-se como se tivessem recebido títulos de nobreza do Brasil Império. Nós defendemos que haja critérios claros para as concessões serem feitas. Para impedir a abertura democrática da mídia, usam parlamentares testas-de-ferro dos seus interesses, como o novo presidente da Câmara dos Deputados, para não levar ao plenário do Congresso Nacional, a discussão e a votação da regulação da mídia.

Com os governos do PT, a sociedade organizada – movimentos sociais, forças progressistas, sindicatos, meio acadêmico, centrais sindicais, etc. – começaram a propor a regulamentação dos artigos 220, 221, 222, 223 e 224 do Capítulo 5, do Título VIII da Constituição Federal, que tratam dos meios de comunicação. Uma discussão sempre adiada para depois. Ao aspecto democrático da questão, soma-se agora a regulação econômica da mídia, que se transforma em uma das prioridades deste governo, comprometido com a verdadeira Liberdade de Expressão e com a soberania nacional. Do outro lado, os donos da mídia demonizam a sua democratização, amedrontam a opinião pública com o apoio de parlamentares-marionetes por eles eleitos, mentindo que nós, defensores da Democracia, queremos a censura.

A regulação da mídia é medida saneadora e já é realidade há muitos anos na maioria dos países democráticos. Ela impede que grandes grupos, representantes de determinados interesses, abocanhem os meios de comunicação para impor seu pensamento econômico e político, pois quando isto ocorre, a sociedade transforma cidadãos em súditos. No Brasil, onde não existe regulação, esses grupos se expandem e, nas eleições, elegem cada vez mais parlamentares que representam corporações e grupo financeiros, ao invés de representarem os interesses do povo. Isto é um dos processos de dominação das elites. É o coronelismo midiático. Por causa disto, os movimentos populares de Junho de 2013 mostraram nas ruas, às forças do atraso, que estamos vivendo o fenômeno da irrepresentatividade política. Cresce, cada vez mais, o distanciamento entre o povo e seus eleitos, entre o povo e as instituições.

A regulação econômica pode propiciar, por exemplo, como acontece na França, a obrigação das concessionárias de programar uma grade de produtos da indústria audiovisual nacional e o direito de todas as correntes de opinião terem seu espaço em rádio e TV para se expressar. Esta é a verdadeira liberdade de expressão. Não pregamos a censura, nem queremos que os veículos conservadores acabem. Jamais! Queremos que a Constituição assegure que a pluralidade de opiniões seja respeitada e tenha seu espaço garantido na mídia concedida.

Hoje, 70 % da mídia brasileira pertencem a seis impérios familiares, verdadeiras nobrezas coroadas, criadas à sombra de tenebrosas transações. A Constituição democrática de 1988, promulgada após 21 anos de ditadura civil-militar, precisa ser respeitada, garantindo que a pluralidade de pensamentos tenha seu espaço garantido. Todas as propostas apresentadas de regulamentação, pelos partidos políticos, serão discutidas com transparência e votadas abertamente no plenário do Congresso Nacional. Qual é o problema?.

É ridículo a grande mídia, seus protegidos e seus financiadores afirmarem que regulamentar suas atividades seja um golpe do PT. Trata-se de desculpa esfarrapada. É uma vontade de todos os democratas. As redes brasileiras produzem livremente, por exemplo, lixo televisivo para o povo consumir nas tardes de domingo e nos horários nobres. Querem ‘emburrecer’ o povão e impedir que este ouse pensar. Há espaço para todos e pensar faz bem.

Estados Unidos, Reino Unido, França, que são padrões de liberdade de expressão, têm há muitos anos modelos elogiados de regulação da mídia. Será que só nós, a sexta economia do mundo, é que ficaremos reféns do medo alardeado pelos grupos milionários, que querem controlar o nosso pensamento e a nossa opinião?

* Almir Aguiar é presidente do Sindicato dos Bancários do Rio

Fonte: Almir Aguiar

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Reforma política, uma necessidade urgente

Adriana Nalesso*

Nós, trabalhadores e trabalhadoras, precisamos estar atentos ao que acontece no Congresso. É lá que se decidem questões importantes e que têm reflexos em nossas vidas. No momento, temos uma grande ameaça: o Projeto de Lei 4330, que libera a terceirização para qualquer atividade. Se isso for aprovado, é quase a extinção da categoria bancária: os bancos poderiam terceirizar gerentes, caixas, analistas. Todos com salários menores e sem os direitos que conquistamos em anos e anos de lutas.

Esse projeto estava arquivado. Mas o novo presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, o colocou de novo em pauta e quer fazer a votação a qualquer custo.Por que esse interesse todo?

A campanha de Eduardo Cunha arrecadou 6,8 milhões de reais de empresas de vários ramos da conomia: mineração, bebidas, telefonia… e bancos! Bradesco, Pactual, Santander e Safra deram 1,3 milhão de reais para o deputado. Agora estão cobrando a fatura.

“Doações” de empresas para campanhas eleitorais acabam custando muito caro para o país. Os números são assustadores. O Bradesco financiou, além do Sr. Cunha, mais 113 deputados eleitos, num total de 20,3 milhões de reais. O Itaú contribuiu para a eleição de 84 deputados, investindo 6,5 milhões. Outros 42 deputados foram financiados pelos dois bancos.

Os banqueiros não gastam essa dinheirama por espírito cívico. Nem empresários de outros ramos. Eles querem congressistas que atendam a seus interesses. Por isso, somos contra o financiamento empresarial. O Sr. Cunha, evidentemente, não. Ele defendeu a admissibilidade da Proposta de Emenda Constitucional – PEC – 352/13, que consagra esse modelo.

Se a PEC não passar, a decisão ficará para o Supremo Tribunal Federal. Lá já existe maioria contra o financiamento de campanhas pelas empresas. Mas o ministro Gilmar Mendes pediu vistas do processo há quase um ano, paralisando o seu andamento. A manobra dá tempo para a maioria conservadora do Congresso. Devolve, Gilmar!

A reforma política não é um tema abstrato, que só interessa aos partidos e aos detentores de mandatos. Tem tudo a ver com a gente. Reduzir a influência do poder econômico. Atacar a corrupção eleitoral. Garantir que a vontade do eleitor se expresse da melhor maneira. Isso leva a um Congresso melhor e a governantes mais próximos do povo.

* Adriana Nalesso é Vice-presidenta do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro

Fonte: Adriana Nalesso

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Impeachment S.A.: como o lucrativo negócio de abrir fogo contra Dilma ajuda a varrer a corrupção para debaixo do tapete

Quem for às ruas no dia 15 vai estar vomitando seu ódio com o patrocínio de
empresas e políticos que querem tirar o foco da lista de políticos da Lava Jato

Antonio Lassance *

Impeachment S.A.: uma empresa de capital aberto e mente fechada.

Que ninguém se engane ou se faça de desavisado. As organizações Impeachment S.A. – uma sociedade mais ou menos anônima – está aí não só para promover eventos, mas, sobretudo, para se capitalizar.

Quem quiser ir às ruas no dia 15, com nariz de palhaço e cartazes pró-impeachment, vai estar batendo o bumbo e vomitando seu ódio com o patrocínio de empresas e políticos que querem bombar o desgaste de um governo por razões nada republicanas.

Algumas das organizações mais ativas na mobilização das manifestações do dia 15 de março são um negócio patrocinado pela oposição partidária e empresarial, com os préstimos sempre valiosos do cartel midiático, que dá uma boa força para a sua divulgação.

Tal e qual nos bons tempos do golpismo dos anos 1950 e 1960, trabalhar pela derrubada de um governo é, em parte, ideologia, mas tem seu lado “business”. Dá dinheiro.

Os grupos que organizam os protestos e clamam pelo impeachment começam como rede social, mas crescem com apoio partidário e empresarial.

Nenhum desses grupos deixa de pedir, publicamente, recursos para financiar seu “trabalho” – seria melhor dizerem “seu negócio”. Até aí, nada de mais.

Porém, o grosso das contribuições que algumas dessas pessoas recebem não são públicas e nem de pessoas que dão 5, 10, 100 reais. Hoje, a maior parte da grana que rola em prol do impeachment de Dilma tem outra origem.

Empresários em pelo menos três estados (São Paulo, Pernambuco e Paraná) relatam ter recebido telefonemas pedindo dinheiro para a organização dos atos do dia 15. A fonte da informação são advogados consultados para saber da legalidade da doação e possíveis implicações jurídicas para as empresas.

Em um dos casos, o pedido não foi feito diretamente por alguém ligado aos perfis de redes sociais que convocam o ato, mas por um deputado de oposição, com o seguinte argumento: “precisamos ajudar esse pessoal que está se mobilizando para tirar esses vagabundos do poder”.

O curioso é que o deputado oposicionista faz parte do seleto grupo de parlamentares que teve o privilégio de contar, entre seus financiadores de campanha, com empresas citadas na Lava Jato. Portanto, pelo critério da Impeachment S.A., o deputado amigo é, de fato, um honorável vagabundo.

É bom lembrar que quase a metade dos nomes da famigerada lista do ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, estava ligada às campanhas de Aécio ou Marina Silva.

As empreiteiras pegas na Operação Lava Jato doaram quase meio bilhão de reais aos políticos e aos partidos com as maiores bancadas no Congresso, o que inclui os de oposição, como PSDB e DEM. Será que alguém vai se lembrar disso no dia 15?

Como o negócio funciona e prospera

A Impeachment S.A. virou franquia. Uma pessoa ou um pequeno grupo monta um perfil, sai à cata de adesões e seguidores e cria memes para serem espalhadas na rede. Com alguma sorte, essa “produção” se torna viral – pronto, a fórmula de sucesso deu resultado.

Os grupos que organizam o protesto do dia 15 são muitos. Cada estado tem um ativista ou grupo de maior proeminência. Eles hoje disputam o mercado do protesto de forma cada vez mais empresarial. Com naturalidade, eles são absolutamente francos em dizer que o capitalismo é seu sonho de consumo. Qualquer maneira de ganhar dinheiro vale a pena.

Dependendo da força de adesão de cada perfil, o criador usa sua lista de seguidores, com ou sem nariz de palhaço, como portfólio para negociar patrocínio privado.

Quanto mais o impeachment se tornar um oba-oba, do tipo “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, tanto melhor para o negócio de derrubar a presidenta.

A busca de um mercado do protesto veio a partir do momento em que esses mascates do impeachment bateram às portas dos partidos, como o PSDB, o DEM e o PPS.

Pelo menos no caso de Pernambuco, houve tentativas também junto ao PSB, cujo ex-candidato à presidência, Eduardo Campos, também consta citado na delação de Paulo Roberto Costa. O PSB hoje abriga, entre outros, “socialistas” da estirpe do antigo PFL, como os renomados Heráclito Fortes (PI) e Paulo Bornhausen (SC).

Alguns dos ativistas da Impeachment S.A., de espírito empreendedor mais aguçado, pegaram a lista de financiadores de campanhas de políticos da oposição com os quais mantêm contato e foram pedir ajuda para conseguir abrir portas em empresas dispostas a financiar a campanha do impeachment.

Os políticos tucanos, ao que parece, têm sido os mais empenhados em redirecionar os pedidos de patrocínio privado para o universo das empresas.

Publicamente, só para variar, os tucanos definiram, com o perdão ao vocábulo “definir”, que apoiam o ato pró-impeachment, mas são contra o impeachment. Hein? Precisamos de pelo menos uns dois minutos para entender o raciocínio e pegar algum tucano pelo colarinho branco, escondido atrás de mais esse muro.

Os tucanos querem o protesto, torcem pelo protesto, ajudam a patrocinar o protesto, mas fingem que não têm nada a ver com isso. Faz sentido – e ainda tem gente que acredita que eles realmente não trabalham pelo impeachment.

Por que 15 de março?

A própria data do protesto foi calculada politicamente, pela Impeachment S.A., com um propósito evidente.

O alvo do protesto é a presidenta Dilma Rousseff, convenhamos, justamente no mês em que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, divulgará a lista dos políticos envolvidos no escândalo. Mais exatamente, na semana seguinte àquela em que a lista de políticos será tornada pública.

Os revoltontos do dia 15 pedirão o impeachment de Dilma, que sequer aparece citada na Lava Jato. Será que vão pedir também o impeachment do senador Aécio Neves, cuja campanha recebeu doações das mesmas honoráveis empreiteiras, diretamente para o comitê de campanha desse candidato?

Vão pedir pelo menos o impeachment de Agripino Maia (DEM-RN), acusado de receber R$ 1 milhão em propina? Delator por delator, Agripino tem o seu e merece algum cartaz de algum revoltonto mais bem informado.

Irão pedir a apuração rigorosa e a prisão dos envolvidos com o trensalão tucano? Ou a falta d´água em São Paulo racionou também a memória e o senso de moral e ética dos que se dizem fartos – principalmente depois de seu repasto?

Irão eles pedir o impeachment dos parlamentares do PMDB? Eles fazem parte do segundo maior partido da Câmara, o primeiro no Senado, e seriam decisivos para a chance de impeachment. Só que, por coincidência, estão entre os preferidos das empreiteiras na hora de financiar campanhas.

Os revoltontos do dia 15 ainda não pararam para pensar que querem um impeachment de Dilma a ser feito por um Congresso cujo financiamento de campanha desenfreado deixa a maioria de seus parlamentares abaixo de qualquer suspeita – se for para generalizar o “argumento” de quem vê Dilma como uma inimiga a ser banida.

Serão esses, de fato, os que podem abrir a boca para falar em afastar a presidenta eleita ? Estranho. Não deveriam ser eles os primeiros alvos de cassação?

Quem promove a campanha pelo impeachment está dando sua contribuição voluntária ou patrocinada para tirar o foco dos corruptos que de fato têm nome no cartório da Lava Jato – o que não é o caso da presidenta.

Seria melhor, antes de falarem em impeachment de uma presidenta eleita pelo voto de 54,5 milhões, que os revoltontos do dia 15 esperassem a lista de Janot e a usassem para escrever seus cartazes.

Por que não o fazem? Talvez por que isso não seja lá um bom negócio.

*Antonio Lassance é cientista político, pesquisador do IPEA e colunista de Carta Maior

Fonte: Antônio Lassance

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O sistema financeiro trava a economia do país

Não é mais possível não vermos o papel dos atravessadores que travam a
economia. Não há PIB que possa avançar com tantos recursos desviados


 


 


Ladislau Dowbor*

A conta é simples. 


 


O crédito no país representa cerca de 60 % do PIB. Sobre este estoque incidem juros, apropriados por intermediários financeiros. Analisar esta massa de recursos, na sua origem e destino, é por tanto fundamental.

É bom lembrar que o banco é uma atividade “meio”, a sua produtividade depende de quanto repassa para o ciclo econômico real, não de quanto dele retira sob forma de lucro e aplicações financeiras. Aqui simplesmente foram juntadas as peças, conhecidas, pare evidenciar a engrenagem, pois em geral não se cruza o crediário comercial com as atividades bancárias formais e os ganhos sobre a dívida pública, e muito menos ainda com os fluxos de evasão para fora do país.

O principal entrave ao desenvolvimento do país aparece com força.

O reajuste financeiro é vital, não o reajuste fiscal proposto, compreensível este último mais por razões de equilíbrios políticos do que por razões econômicas.

(Aqui vai o esqueleto do artigo de 14 páginas sobre o sistema, veja o artigo completo aqui.)

Pense que o crediário cobra por exemplo 104 % para “artigos do lar” comprados a prazo. Acrescente os 238 % do rotativo no cartão, os mais de 160 % no cheque especial, e você tem neste caso mais da metade da capacidade de compra dos novos consumidores drenada para intermediários financeiros, esterilizando grande parte da dinamização da economia pelo lado da demanda. O juro bancário para pessoa física, em que pese o crédito consignado, que na faixa de 25 a 30 % ainda é escorchante, mas utilizado em menos de um terço dos créditos, é da ordem de 103 % segundo a Anefac.

A população se endivida muito para comprar pouco no volume final. A prestação que cabe no bolso pesa no bolso durante muito tempo. O efeito demanda é travado.

Os bancos e outros intermediários financeiros demoraram pouco para aprender a drenar o aumento da capacidade de compra do andar de baixo da economia, esterilizando em grande parte o processo redistributivo e a dinâmica de crescimento.

Efeito semelhante é encontrado no lado do investimento, da expansão da máquina produtiva, pois se no ciclo de reprodução o grosso do lucro vai para intermediários financeiros, a capacidade do produtor expandir a produção é pequena, acumulando-se os efeitos do travamentos da demanda e da fragilização da capacidade de reinvestimento. 

Quanto ao financiamento bancário, os juros para pessoa jurídica são proibitivos, da ordem de 40 a 50 % , e criar uma empresa nestas condições não é viável. Existem linhas de crédito oficiais, mas compensam em parte apenas a apropriação dos resultados pelos intermediários financeiros.

Terceiro item da engrenagem, a taxa Selic. Com um PIB de 5 trilhões, um por cento do PIB representa 50 bi. Se o superávit primário está fixado em 4 % do PIB, por exemplo, são cerca 200 bi dos nossos impostos transferidos essencialmente para os grupos financeiros, a cada ano. Com isso se esteriliza parte muito significativa da capacidade do governo de financiar mais infraestruturas e políticas sociais. Além disso, a Selic elevada desestimula o investimento produtivo nas empresas pois é mais fácil – risco zero, liquidez total – ganhar com títulos da dívida pública.

E para os bancos e outros intermediários, é mais simples ganhar com a dívida do que fomentar a economia buscando bons projetos produtivos, o que exige identificar clientes, analisar e seguir as linhas de crédito, ou seja, fazer a lição de casa. Os fortes lucros gerados na intermediação financeira terminam contaminando o conjunto dos agentes econômicos.

Assim entende-se que os lucros dos intermediários financeiros avancem de 10 % quando o PIB permanece em torno de 1 % , e o desemprego seja tão pequeno: o país trabalha, mas os resultados são drenados pelos crediários, pelos juros bancários para pessoa física, pelos juros para pessoa jurídica e pela alta taxa Selic. É a dimensão brasileira da financeirização mundial.

Fechando a ciranda, temos a evasão fiscal. Com a crise mundial surgem os dados dos paraísos fiscais, na faixa de 20 trilhões de dólares segundo o Economist, para um PIB mundial de 70 trilhões. O Brasil participa com um estoque da ordem de 520 bilhões de dólares, cerca de 25 % do nosso PIB. Ou seja, estes recursos que deveriam ser reinvestidos no fomento da economia, não só são desviados para a especulação financeira, como sequer pagam os impostos no nível devido.

Já saíram, por exemplo, os dados do Itaú e do Bradesco no Luxemburgo, bem como do mispricing (fraude nas notas fiscais) que nos custa 100 bi/ano, enviados ilegalmente para o exterior, segundo pesquisa do Global Financial Integrity, além dos fluxos canalizados pelos HSBC e outros bancos.

Junte-se a isto o fato dos nossos impostos serem centrados nos tributos indiretos, com os pobres pagando proporcionalmente mais tributos do que os ricos, e temos o tamanho do desajuste. De certa forma, temos aqui o espelho do que o Piketty analisa para os países desenvolvidos. O artigo completo abaixo constitui uma sistematização do mecanismo, apresentado de uma forma que qualquer não economista possa entender. E se trata do bolso de todos nós. As contas batem. Os dados são conhecidos, aqui se mostra como se articulam.

O texto anexo não é um “artigo” de opinião acadêmica, e sim um relatório sobre como a engrenagem foi montada. Uma ferramenta que espero seja útil para nos direcionarmos, pois precisamos de muito mais gente que se dê conta de como funciona o nosso principal entrave.

Não há PIB que possa avançar com tantos recursos desviados.

O problema não é só de um “ajuste fiscal”, e sim de um ajuste fiscal-financeiro mais amplo.

Tanto o consumidor, como o empresário-produtor e o Estado na sua qualidade de provedor de infraestruturas e de políticas sociais têm tudo a ganhar com isto. Um empresário com quem discuti este texto me disse que estava gastando mais com juros do que com a folha de pagamento. Aqui temos até interesses comuns entre empresários efetivamente produtivos, situados na economia real, e os trabalhadores que querem se tornar mais produtivos e ganhar melhor.

Não é mais possível não vermos o papel dos atravessadores que travam a economia.

* Ladislau Dowbor é Doutor em Economia e professor do departamento de Pós-Graduação da PUC-SP e colunista de Carta Maior.

Fonte: Ladislau Dowbor