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Joelmir e Fidel

Frei Betto *


Conheci Joelmir Beting na década de 1980. Devido a seus sutis comentários econômicos críticos à ditadura, recheados de metáforas e tiradas brilhantes, convidei-o a proferir palestra na Semana do Trabalhador, em São Bernardo do Campo.


Pouco depois, sugeri a Fidel Castro, interessado em conhecer melhor a economia brasileira, convidar Joelmir Beting para visitar Cuba. Desembarcamos em Havana na quinta, 9 de maio de 1985.


Fidel perguntou ao jornalista brasileiro:


— Qual o seu trabalho diário?


— Faço uma hora e meia de programa de rádio e, à noite, meia-hora de TV. Escrevo também uma coluna diária, reproduzida em vinte e oito jornais.


Joelmir narrou-lhe sua história: era filho de um boia-fria morto, como tantos outros lavradores ainda hoje, devido à queda do caminhão que o levava ao trabalho. Cresceu entre lavouras de cana e café, criado pelo venerável padre Donizetti, em Tambaú, interior de São Paulo. Estudou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo e trabalhou como professor primário — o que lhe deu facilidade para traduzir o economês em linguagem acessível ao grande público.


— São Paulo tem muita cana? – perguntou Fidel.


— Produz setenta por cento da cana de açúcar do Brasil – esclareceu Joelmir, que aproveitou a deixa para fazer uma pergunta. — O que o senhor lê todos os dias?


— Todas as manhãs recebo uma pasta com as notícias do dia selecionadas por índice: Cuba, Açúcar, Estados Unidos  etc. Primeiro, confiro as fontes. Sei que as agências dos Estados Unidos não são imparciais. Gasto nisso entre uma hora e uma hora e meia. Assim, tenho uma visão global de tudo que as agências internacionais informam sobre cada item.


— Ninguém conhece o computador que o ser humano tem na cabeça — comentou Joelmir. — Como é o seu trabalho?


— É um trabalho tenso, difícil, que encerra uma responsabilidade muito grande. Mas se habitua. Trato de aprender em conversas com visitantes. Através de amigos, sei como se pensa em muitos países.


— Mas o senhor gosta de falar em público?


— Tenho medo cênico. Falo de improviso, porque o povo não gosta de discursos escritos. Parto de argumentos. É claro que chego tenso, mas a reação do público estimula. Chego como quem se apresenta a um exame. Quando devo falar de saúde, por exemplo, preciso memorizar as cifras. Se trata-se de gravar os índices de mortalidade infantil, consigo-o rápido. É mais difícil quando o problema está determinado por quinze ou mais fatores. Tenho que dominar o tema e ordená-los. Há gente que explica o que não entende. Se não domino um tema, não procuro explicá-lo.


— Em Cuba, o projeto social está realizado? — quis saber Joelmir Beting.


— Sim, no essencial.


— Este é o modelo cubano?


— Há muito de cubano. O sistema eleitoral é todo cubano. Cada circunscrição, com dez mil eleitores, elege seu delegado ao Poder Popular.  São os vizinhos que votam. E são eles que propõem um nome para delegado. Sugerem o máximo de oito nomes e o mínimo de dois. O Partido não se mete nisso. São eleitos aqueles que obtêm mais de cinquenta por cento dos votos. Esses delegados formam a Assembleia Municipal e elegem o poder executivo municipal. Depois, se reúnem as comissões, integradas pelo Partido e pelas organizações de massa, para eleger os delegados da Província e os quinhentos deputados da Assembleia Nacional. Mais da metade desses deputados sai da base. A cada três meses, os vizinhos se reúnem com o delegado da circunscrição para avaliar o seu desempenho. E podem inclusive cassá-lo. Esse sistema de a população apontar os candidatos que integram metade da Assembleia Nacional é a democracia de baixo para cima. Não é como um político burguês que, depois de eleito, passa quatro anos sem prestar contas e sem que possam cobrar dele. O Poder Popular nomeia o responsável pela saúde na Província mas, para evitar choques, consulta antes o ministério. É uma forma de evitar tensões entre o Poder Popular e o poder central.


O diálogo entre Fidel e Joelmir Beting foi reproduzido em forma de entrevista em todos os jornais brasileiros para os quais Joelmir Beting colaborava na época e, em agosto de 1985, editado em livro pela Brasiliense, sob o título Os juros subversivos.



* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Mário Sérgio Cortella, de “Sobre a esperança” (Papirus), entre outros livros.     http://www.freibetto.org   twitter:  @freibetto.







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Fonte: Frei Betto

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Brasil governado pelo fundamentalismo?

Frei Betto *



Algo me preocupa: a confessionalização da política. Na eleição de Dilma, o tema religioso ganhou mais relevância que programas de governo. Na de prefeito à capital paulista, pastores e bispos se conflitaram, e padre Marcelo Rossi virou ícone político.


A modernidade separou Estado e Igreja. Agora o estado é laico. Portanto, não pode ser pautado por uma determinada crença religiosa. E todas elas têm direito a difundir sua mensagem e promover manifestações públicas, desde que respeitado quem não crê ou pensa de modo diferente.


O Estado deve estar a serviço de todos os cidadãos, crentes e não crentes, sem se deixar manipular por esta Igreja ou aquela denominação religiosa.


O passado do Ocidente comprova que mesclar poder religioso e poder político é reforçar o fundamentalismo e, em suas águas turvas, o preconceito, a discriminação e, inclusive, a exclusão (Inquisição, “heresias” etc.). Ainda hoje, no Oriente Médio, a sobreposição de doutrina religiosa em certos países produz políticas obscurantistas.


Temo que também no Brasil esteja sendo chocado o ovo da serpente. Denominações religiosas apontam seus pastores a cargos eletivos; bancadas religiosas se constituem em casas legislativas; fiéis são mobilizados segundo o diapasão da luta do bem contra o mal; Igrejas se identificam com partidos; amplos espaços da mídia são ocupados pelo proselitismo religioso.


Algo de perigoso não estaria sendo gestado? Já não importa a luta de classes nem seus contornos ideológicos. Já não importa a fidelidade ao programa do partido. Importa a crença, a fidelidade a uma determinada doutrina ou líderes religiosos, a “servidão voluntária” à fé que mobiliza corações e mentes.


O que seria de um Brasil cujo Congresso Nacional fosse dominado por legisladores que aprovariam leis, não em benefício do conjunto da população, e sim, para enquadrar todos sob a égide de uma doutrina confessional, tenham ou não fé nessa doutrina?


Sabemos que nenhuma lei pode forçar um cidadão a abraçar tal princípio religioso. Mas a lei pode obrigá-lo a se submeter a um procedimento que contraria a razão e a ciência, e só faz sentido à luz de um princípio religioso, como proibir transfusão de sangue ou o uso de preservativo.


Não nos iludamos: a história não segue em movimento linear. Por vezes, retrocede. E aquilo que foi ainda será se não lograrmos predominar a concepção de que o amor – que não conhece barreiras e “tudo tolera”, como diz o apostolo Paulo – deve sempre prevalecer sobre a fé.


* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser, de “Conversa sobre a fé e ciência” (Agir), entre outros livros. www.freibetto.org   twitter: @freibetto.






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Fonte: Frei Betto

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Qualificação do profissional brasileiro

Frei Betto *


Tomara que o Congresso aprove a aplicação de 10 % do PIB na educação. É pouco, mas bem melhor que os atuais 4,5 % . Ainda não se descobriu outra via para desenvolver uma nação, aumentar o seu IDH e reduzir exclusão, miséria e violência, fora do investimento significativo em educação de qualidade.


O contingente de pessoas que trabalham em nosso país chega a 92,5 milhões, praticamente metade da população. Desses, 45,5 % não têm carteira assinada ou trabalham por conta própria. E somente 771.409 têm mestrado ou doutorado. Os dados são do IBGE (PNAD 2011).


Apenas 12,5 % dos que trabalham têm curso superior completo. Quase metade da mão de obra ocupada concluiu o ensino médio: 46,8 % . O que significa que 53,2 % de nossos trabalhadores não têm sequer nível médio.


Nossas universidades abrigam, hoje, 6,6 milhões de estudantes (de um contingente de 27,3 milhões de jovens entre 18 e 25 anos!). Dos quais 73,2 % em faculdades particulares. E há apenas 1,2 milhão de estudantes em cursos técnicos.


Na Alemanha, quarta economia do mundo, a maioria dos alunos do ensino médio (60 % ) se encontra em cursos técnicos. A educação é profissionalizante, facilitada pela parceria entre escolas e empresas, onde os aprendizes fazem estágios. Isso se reflete na economia do país. Em agosto, o desemprego entre jovens alemães com menos de 25 anos atingia o índice de 8,1 % . Nos demais países da zona do euro, 22,8 % .


A renda familiar está associada ao nível de ensino. No Brasil, quem possui diploma universitário chega a ganhar 167 % mais do quem concluiu apenas o ensino médio. Quem possui mestrado ou doutorado ganha, em média, 426 % mais, comparado a quem tem apenas ensino médio.


Não têm qualquer escolaridade ou frequentaram menos de 1 ano a escola 19,2 milhões de brasileiros. Em 2011, nossa média de escolaridade era de 7,3 anos. Para os que estão empregados, 8,4 anos de estudos.


Nos EUA, em 1960, haviam cursado o ensino médio 60 % dos trabalhadores. Hoje, o índice chega a 90 % . Porém, há um dado alentador: o grupo brasileiro com 11 anos de escolaridade cresceu em 22 milhões de pessoas de 2001 a 2011.


Não sabem ler nem escrever 12,9 milhões de brasileiros com mais de 7 anos de idade. E 20,4 % da população acima de 15 anos são de analfabetos funcionais – assinam o nome, mas são incapazes de redigir uma carta ou interpretar um texto. Na população entre 15 e 64 anos, em cada 3 brasileiros apenas 1 consegue interpretar um texto e fazer operações aritméticas elementares.


Em 2011, 22,6 % das crianças de 4 a 5 anos estavam fora da escola. E, abaixo dessas idades, 1,3 milhão não encontravam vagas em creches.


É animador constatar que 98,2 % dos brasileiros entre 6 e 14 anos estudam. Mas um dado é alarmante: dos 27,3 milhões de jovens brasileiros entre 18 e 25 anos, 5,3 se encontram fora da escola e sem trabalho.


Dos jovens entre 15 e 17 anos, 40 % não frequentam a escola (FGV 2009). Na parcela mais pobre, com renda per capita até R$ 77,75/mês, quase a metade se encontra fora da escola e do trabalho. De que vive essa gente? Por que fora da escola?


É nesse contingente dos “nem-nem” (nem estudo, nem trabalho) que são maiores os índices de criminalidade. Muitos abandonam a escola por desinteresse, devido à falta de pedagogia; por falta de recursos financeiros; por ingressarem no narcotráfico ou se tornarem dependentes químicos; e também por gravidez precoce. O número de moças (3,5 milhões) do grupo “nem-nem” é quase o dobro do número de rapazes (1,8 milhão). E 50 % dessas moças já são mães.


Morei cinco anos na favela de Santa Maria, em Vitória. Constatei que as adolescentes deixam de ser molestadas a partir do momento em que engravidam. Moça solteira sem filho fica vulnerável ao assédio permanente, às vezes violento. Muitas engravidam por falta de educação sexual e orientação no uso de contraceptivos.


Na economia globalizada é imprescindível falar inglês. Apenas 0,5 % da população brasileira domina o idioma de Shakespeare. A maioria, sem fluência.


O Brasil enfrenta hoje – em plenas obras do PAC, da Copa e das Olimpíadas – o déficit de 150 mil engenheiros. Apenas 10 % dos universitários cursam carreiras vinculadas às engenharias. Temos somente 6 engenheiros para cada 1.000 pessoas economicamente ativas. Nos EUA e no Japão a proporção é de 25/1.000.


Falta no Brasil interação entre academia e empresa, teoria e prática. Nossos universitários não têm suficiente conhecimento técnico. Em nosso país, o professor é valorizado pelo número de pesquisas e publicações, e não pela experiência de trabalho. O mestre se apresenta como detentor do conhecimento e não como facilitador do aprendizado.


O preconceito a Paulo Freire fortalece o anacronismo de nossas universidades. E nossas empresas, que aspiram por mão de obra qualificada, ainda não despertaram para o seu papel de indutoras da educação.



 


* Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – autobiografia escolar” (Ática), entre outros livros. www.freibetto.org   twitter: @freibetto.





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Fonte: Frei Betto

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Trabalho decente para enfrentar o racismo nos bancos

Andréa Vasconcelos *
 
Trabalho decente, segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), significa \”trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna\”. Assim, a promoção do trabalho decente implica modificar as estruturas de desigualdades diretamente vinculadas às discriminações de gênero e raça [1] em nosso país.


Contudo, apesar dos altos índices de lucratividade, os bancos continuam a praticar elevadas taxas de rotatividade, o que tem gerado insegurança no ambiente de trabalho. Seguem estimulando diretamente a terceirização ao empurrar trabalhadores e trabalhadoras para o trabalho precário – correspondentes bancários, por exemplo, cuja remuneração é menor e com direitos diferenciados da categoria bancária e, em muitas situações, têm seus direitos desrespeitados. Desta forma, os bancos se contrapõem cotidianamente aos pressupostos do trabalho decente.


Ademais, quando as instituições financeiras discriminam as mulheres e os negros, intensificam as desigualdades no mercado de trabalho e manifestam a falta de ações afirmativas e de uma política enérgica de igualdade de oportunidades, de tratamento e de direitos eficaz na eliminação da hierarquia desigual entre homens e mulheres, entre brancos e negros, que também é condição basilar para o trabalho decente.


O quadro de exclusão da população negra no setor bancário [2] contribui para a manutenção de um status quo, onde negras e negros enfrentam os maiores obstáculos para superar a pobreza, revelando ainda que o racismo [3] é mais do que o reflexo da estrutura econômica desigual e concentradora, mas manifestação do preconceito [4] enraizado nas instituições. Por consequência, grupos dominantes continuam a perpetuar a subordinação de negras e negros nas relações sociais, condição que não é mero arcaísmo do passado, mas uma forma de manter benefícios materiais e simbólicos dessa situação.


Não restam dúvidas que estudos e pesquisas sobre as relações sociais comprovam a existência da discriminação de grupos negros em todos os âmbitos no trabalho e na vida e que essa situação é um coproduto da exploração capitalista, determinados pelos fatores trabalho, capital e lucro. Portanto, a divisão em brancos e negros é uma atitude política e não simplesmente uma maneira de descrever a realidade. Conceitos como \”raça\”, \”negros\” e \”brancos\” ainda atuam como categorias de inclusão e exclusão no setor bancário.


Diante dessa constatação, a Contraf-CUT tem focado de forma sistemática o enfrentamento às desigualdades de raça, gênero, orientação sexual e pessoas com deficiências na categoria, além de alertar que é papel de todo(a) dirigente sindical combater a discriminação.


Para tanto, a atuação ocorre em duas frentes: ações internas, fazendo o debate junto à categoria e às direções dos sindicatos e federações; e ações externas, como audiências com autoridades e parlamentares, a exemplo da reunião ocorrida em agosto deste ano com a secretária de Políticas de Promoção da Igualdade (SEPPIR), ministra Luiza Bairros, quando foi denunciado o nefasto processo de demissões nos bancos privados, com um alto índice de desligamento de pessoas negras. Essa dura realidade comprova a falta de responsabilidade social dos bancos com a sociedade brasileira.


A Contraf-CUT coordena a mesa temática de igualdade de oportunidades, que tem encaminhado as reivindicações da categoria para as negociações com a Fenaban e os bancos. Com a unidade nacional e a força da mobilização, os bancários já garantiram na Convenção Coletiva de Trabalho (CCT) a trimestralidade das reuniões da mesa de igualdade de oportunidades com a Fenaban, a ampliação da licença maternidade para 180 dias, a igualdade de tratamento para casais homoafetivos e a realização do novo censo da diversidade com planejamento em 2013 e execução em 2014.


Três cartilhas foram lançadas nos últimos anos para combater as discriminações e os preconceitos: assédio sexual no trabalho, relações compartilhadas e igualdade de oportunidades. Mais recentemente, a Contraf-CUT publicou o caderno \”Construindo a igualdade de oportunidades\”, além de jornais e panfletos como forma de aprofundar o debate e incentivar mobilizações.


O mês da consciência negra é, por isso, não somente um momento importante de reflexão, mas, acima de tudo, é um espaço oportuno de mobilização e de defesa dos direitos humanos e sociais das pessoas negras. Só haverá trabalho decente no Brasil e no mundo com igualdade de oportunidades, que passa necessariamente por enfrentar o racismo nos bancos e garantir igualdade racial no trabalho e na vida.



[1] Discriminação de raça: ação que produz desvantagens e prejuízos para determinados grupos em função da cor da pele e/ou da origem étnica e racial.


[2] Acesse aqui o jornal especial da Contraf-CUT para o mês da consciência negra.


[3] Racismo: doutrina que afirma não só a existência das raças, mas também a superioridade natural e, portanto, hereditária, de umas sobre as outras. A atitude racista, por sua vez, é aquela que atribui qualidades aos indivíduos ou grupos conforme o seu suposto pertencimento biológico a uma dessas diferentes raças e, portanto, conforme as suas qualidades ou defeitos inatos e hereditários. Assim, o racismo não é apenas uma reação ao outro, mas uma forma de subordinação do outro.


[4] Preconceito: qualquer atitude negativa em relação a uma pessoa ou a um grupo social que derive de uma ideia preconcebida sobre tal pessoa ou grupo. É possível então dizer que a atitude preconceituosa está baseada não em uma opinião adquirida com a experiência, mas em generalizações que advêm de estereótipos.



* Andréa Vasconcelos é bancária e Secretária de Políticas Sociais da Contraf-CUT

Fonte: Andréa Vasconcelos

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A dignidade volúvel do trabalho e a pele preta

Gilson Moura Henrique Júnior *


“O trabalho dignifica o homem”


A lógica do trabalho dignificador se não é uma recente modalidade de discurso não passeia pelas ruas e praças brasileiras há muito mais tempo antes de a emancipação dos escravos, formalizada em 1888, ganhasse o garrancho imperial para se tornar uma realidade palpável.


O trabalho como eixo dignificador é fruto da necessidade ideológica de sustentar a transformação do trabalho escravo, pautado pela vivência de trabalho exclusivo, continuo e com pouca ou nenhuma garantia de tempo livre, conceito inclusive quase alienígena no Brasil do século XIX, em um trabalho produtivo e construtor de uma nação, digno, dignificador, pautado pela transformação da indolência em produtiva produção de uma riqueza que ornava com galhardia o sorriso da elite dirigente.


O trabalho passa a dignificar o homem após ser um abjeto instrumento que sustentava a herança da nobreza ibérica europeia avessa ao trabalho, eixo de ações ideologicamente construído para ser executado por serviçais ou escravos, e que tinham-no como meio de manchar sua condição de nobre.


O trabalho desenobrecia o nobre ibérico e era parte das funções da patuleia, da base da sociedade, seja ela livre ou escrava.


No Brasil escravista o trabalho trouxe consigo a herança de sua identificação como meio de subalternidade e por isso a posse de escravos era um meio de distinção social clássico, sendo objeto de desejo das mais diversas classes a obtenção de um escravo para ou trabalhar externamente garantindo melhora na renda ou nos serviços domésticos, os mais indignos entre os diversos tipos do indigno trabalho.


A partir do processo emancipador dos cativos pela escravidão moderna, sustentadora do capitalismo nascente e parte da acumulação primitiva do capital que grassou mundo afora otimista e pleno da confiança de um sistema em ebulição criadora, o trabalho tende a ser discutido pelas elites dirigentes como algo que deveria ser alvo de profunda valorização diante do medo da massa ex-escrava tornar-se “vadia” e parte de um perigo que já era atribuído à sua condição de negros e passaria a acompanhar também a condição de pobres.


A partir da proibição de fato do tráfico negreiro em 1850, e com o avanço tanto das alforrias quanto das pressões que derma na abolição da escravidão em 1888, era comum nas instâncias legislativas do estado imperial a discussão sobre o valor que o trabalho tinha como emancipador da alma humana e criador da dignidade tornava-se não só comum, como um imperativo que tinha como companheiras as discussões sobre a migração do controle senhorial dos cativos para o controle estatal dos libertos e sobre a classificação das classes sociais entre cordatas e perigosos, adjetivo último que ligou-se quase imediatamente às classes populares, ditas “baixas” e cuja composição coincidentemente e ironicamente era majoritariamente de negros e negras.


Para efeito da comprovação da necessidade de valorização do trabalho os exemplos dos escravos como atingidos e educados no abjeto trabalho forçado era levantado, nem sempre com uma coerência racional digna de nota, como prova que o trabalho livre era necessário para que a marca deseducadora e selvagem da servidão forçada não os torna-se eternamente alvo da indignidade da deformação do caráter pelo chicote.


O trabalho assim alcança o valor de dignificador a partir da diferenciação entre o trabalho escravo, abjeto, e o trabalho livre, parte da construção do homem digno, do homem de bem. Claro que em nenhum momento discute-se ai que parte importante dos debatedores nas instâncias legislativas do império e posteriormente da república nascente fazia parte da elite dirigente economicamente formada por defensores do tráfico de escravos e sócios da enorme lucratividade que dele advinha até sua interrupção levar os valores nele investidos na direção do investimento em terras e nas lavouras de café. Nestas instâncias a história adquiria uma interessante fluidez nos discursos.


O novo, recente, cheirando a tinta fresca, trabalho livre, tinha de ter elementos de valorização que não tornasse uma ética de vinculação pelos recém libertos do trabalho ao que se constituiu como modo de pensar das elites, como seu ethos particular: O trabalho é indigno e só deve ser executado pelas classes mais baixas da sociedade. Era preciso reverter isso de forma rápida e rígida. O trabalho deveria ser visto como dignificador, seja pela repetição ad infinitum do discurso,seja pela força da proibição da vadiagem, criminalizada legalmente já nos primeiros anos pré-abolição da escravidão.


Neste processo se inventa a tradição do trabalho dignificador que era o meio de salvação das classes perigosas de sua condição de um risco para a sociedade e também uma forma de construção de uma possibilidade ideológica do enriquecimento. Possibilidade essa que jamais continha quaisquer menções às barreiras visíveis e invisíveis que a condição de classe e de fenótipo, ou marca, erguiam para os não-brancos e não-ricos que habitavam, e habitam, Pindorama.


“O trabalho dignifica o homem” torna-se assim um adágio, um dizer, uma forma de pensar que optou por ignorar o trabalho que indignava o homem cativo e que só foi visto como abjeto nos últimos noventa anos de sua existência. Só passou a indignar uma sociedade erguida a partir de um alicerce formado pelos ombros negros, pelo trabalho negro, no fim de sua existência.




Referências bibliográficas:



  • CHALOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. Editora da Unicamp
  • CHALOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. Cia das Letras
  • CHALOUB, Sidney.  Cidade Febril:  cortiços e epidemias na Corte Imperial. Cia das Letras

* Gilson Moura Henrique Júnior é historiador

Fonte: Gilson Moura Henrique Júnior

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Consciência negra e reparação histórica

Almir Aguiar *


20 de Novembro é o Dia Nacional da Consciência Negra, dedicado à reflexão sobre a importância do povo africano na formação da sociedade brasileira. Mais que uma data no calendário de incontáveis feriados enforcados pela população, é um marco que assinala o fim da consciência ingênua e do mito do agradecimento a uma princesa. É o despertar da consciência crítica de que com a Lei Áurea milhões de brasileiros foram libertados do cativeiro das senzalas para serem atirados, sem qualquer política de Estado, na escravidão do preconceito, das calçadas nas metrópoles, das subhabitações. da desigualdade salarial e de oportunidades, e dos baixos índices das estatísticas que medem o desenvolvimento humano.


A escolha desta data não é fruto do acaso. Em 20 de novembro de 1695 Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, foi morto em combate numa emboscada na Serra dos Dois Irmãos, em Pernambuco, na defesa da liberdade de seu povo. Os quilombos representavam uma resistência organizada ao sistema escravista das classes dominantes e também uma forma coletiva de reproduzir, aqui no Brasil, um sistema da vida comunitária africana. A reverência a Zumbi é importante passo para a democratização da galeria dos heróis nacionais, até então povoada por imperadores, barões, generais, todos brancos, quando o Brasil tem tantos heróis populares como João Cândido, o “almirante negro” que comandou a Revolta da Chibata, e a legião de escravos anônimos, muitos deles descalços, que enganados pelo Império foram combater na Guerra do Paraguai, no lugar dos “filhos de família” da burguesia branca, em troca de uma alforria que não receberam – eram os Voluntários da Pátria.


Hoje, irmanados com o Movimento Negro Unificado (o maior do gênero no país), estamos todos engajados na luta por um amplo processo de reparação histórica, e procuramos fazer com que esta seja uma data que lembre a resistência do povo negro à escravidão, que começou quando a primeira embarcação transportou africanos seqüestrados da Mãe África para o solo brasileiro.


Com o avanço da luta, novos temas vêm se incorporando aos debates, como a inserção do negro no mercado de trabalho, as cotas universitárias, a discriminação por parte da polícia, a identificação de etnias, moda, gastronomia, beleza negra, etc. Dentre esses temas, um que vem sendo discutido mais profundamente ocorre no setor da economia e trata da invisibilidade do trabablhador negro. Números recentes da Contraf (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Área Financeira) informam que os negros são 35,7 % da população economicamente ativa no brasil, mas ocupam apenas 19 % dos postos de trabalho no sistema financeiro. E creiam, os negros ganham em média 36 % a menos do que a remuneração dos brancos. A discriminação é ainda mais grave quando se trata da mulher bancária negra.


A ideologia racista é um problema histórico da sociedade brasileira. Para vencê-la é preciso, antes de tudo, reconhecer a sua existência e as suas formas disfarçadas no mundo globalizado contemporâneo. Merece destaque histórico o gesto do ex-Presidente Lula quando, em recente visita à África, ainda no exercício do mandato, pediu perdão aos africanos em nome da nação brasileira, pela barbárie do tráfico negreiro.


Com a implementação da Lei n° 10.639, de 9 de janeiro de 2003, o governo brasileiro incluiu 20 de Novembro no calendário nacional e tornou obrigatório o ensino da História e da Cultura Afro-brasileira, as lutas dos negros no Brasil e a sua importância na formação da nossa sociedade. É muito pouco. É indispensável que aprofundemos a discussão sobre a reparação histórica ao povo negro, enxergar as péssimas condições sociais em que este coletivo se encontra, em razão de crimes praticados em nossa História contra seus antepassados.


Na vida é preciso combater o bom combate e a reparação histórica é uma luta que vale a pena ser lutada e que precisa ser trazida para o centro dos debates das questões nacionais. Promover reflexões em torno da democracia racial e de uma educação escolar antirracista (como propôs Darcy Ribeiro), constitui estratégia que possibilitará a formação de consciências criticas capazes de uma leitura moderna da nossa História. É também papel dos segmentos organizados da sociedade, entre eles os sindicatos de trabalhadores, refletir e apontar ações que diminuam a desigualdade e eliminem a discriminação.



* Almir Aguiar é presidente do Sindicato dos Bancários do Município do Rio de Janeiro.

Fonte: Almir Aguiar

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Arte de ser criança

Frei Betto *



No Jardim de Infância, em Belo Horizonte, nossas tarefas consistiam em sonhar, imaginar, colorir, desenhar, moldar em argila estranhas figuras, empilhar cubos de madeira que, sobrepostos, se transformavam em casas, pontes, prédios e castelos. Dispostos em linha reta, viravam ferrovias, carruagens, estradas. Em círculos, arenas circenses, represas ou lagos.


Esse entrelaçar de tato, visão e imaginação organizava meu mundo interior. Bastavam poucos apetrechos para meus sentimentos encontrarem expressão nos objetos manipulados ou nas linhas de meus desenhos. Ao fazê-lo, adquiria uma certa distância relacional: os pássaros falam linguagens que só eles entendem; dragões, bruxas e duendes, que povoavam o meu imaginário, não eram pessoas como meus pais, nem coisas como os paralelepípedos que calçavam as ruas, e sim entidades espirituais, como Deus e anjos, com as quais mantinha relações de temor, reverência e fascínio.


O melhor da infância é o mistério. Povoa a criança com uma força imponderável, superior a todas as realidades sensíveis. O mistério seduz e, tecido em encantos, assusta ou atrai ao não mostrar o rosto nem pronunciar o próprio nome. Habita aquela zona da imaginação infantil tão indevassável quanto impronunciável. Nela, as conexões rompem limites e barreiras, o inconsciente transborda sobre o consciente, o sobrenatural confunde-se com o natural, o divino permeia o humano, e o insólito, como dragões e piratas, é de uma concretude que só a cegueira dos adultos é incapaz de enxergar.


Os adultos devem manter-se à distância quando a criança se encontra mergulhada em seu universo onírico. Ela sabe que carrega em si um tesouro de percepções que os olhos alheios não podem perscrutar. Recolhida a um canto, deitada em sua cama ou brincando em companhia de seus pares, deixa fluir os seres virtuais que habitam o seu espírito e com quem estabelece um diálogo íntimo, livre das amarras de tempo e espaço. Tudo flutua dentro dela, graças à ausência de gravidade que a caracteriza.


Se um adulto interfere, quebra-se o encanto. Tudo se torna pesadamente aritmético, como se a ave, aprisionada no chão, ficasse impedida até mesmo de sonhar com o voo, reduzida aos movimentos contidos de seus passos.


Por tanta familiaridade com o mistério, as crianças são naturalmente religiosas, como se a natureza suprisse quem se encontra biologicamente mais próximo da fonte da vida de percepções holísticas contidas na vitalidade das células, na mecânica das moléculas, na identidade quântica dos átomos, onde matéria e energia são apenas faces de uma mesma realidade.


Privar a criança do mergulho no mistério é amputá-la da infância. É mutilar o ser, abortando a criança para apressar, de modo cruel, a irrupção irreversível do adulto.


Ao sorriso sucede o travo amargo de quem já não logra mirar a vida como maravilha – dentro e fora de si. A insegurança aflora, denunciando carências e tornando-as vulneráveis aos sonhos químicos das drogas, já que o melhor da infância foi sonegado – sentir-se um ser amado.


 


* Frei Betto é escritor – www.freibetto.org – twitter: @freibetto.


 





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Fonte: Da Redação – FEEB-RJ/ES

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A reeleição de Obama e o Brasil

Frei Betto *


A reeleição de Obama, que contou com a torcida discreta da presidente Dilma, é um alívio para o Brasil e a América Latina. Mitt Romney (que, na intimidade, chamo de Mitt “Money”) representaria a volta das políticas elitistas e intervencionistas de Reagan e George W. Bush. E, com certeza, uma forte política econômica protecionista, que afetaria as exportações brasileiras aos EUA.


Obama mereceu o apoio de 70 % dos eleitores de origem hispânica. É verdade que, em seu primeiro mandato, deixou de cumprir muitas promessas que fizera na campanha anterior, como o fechamento do cárcere de supostos terroristas, na base naval de Guantánamo, em Cuba.


Porém, adotou uma política imigratória menos hostil a estrangeiros indocumentados que se encontram em território americano. Mesmo porque muitos estão de volta a seus países de origem, devido à crise financeira iniciada em 2008 e a queda da oferta de postos de trabalho nos EUA. Hoje, 7,9 % da população laboral estadunidense se encontram sem emprego.


Os EUA necessitam de mão de obra barata no setor de serviços. Onde buscá-la fora da América Latina?


O democrata Obama, ao contrário do republicano George W. Bush, nunca foi muito próximo do presidente Lula, apesar de considerá-lo “o cara”. Aliás, desde o fim do mandato Reagan, a Casa Branca não se mostra muito preocupada com a América Latina. O país que lhe dá mais dor de cabeça é a Venezuela de Chávez.


Lula teve de acalmar os ânimos bélicos de George W. Bush para evitar uma intervenção no país vizinho. Embora muitos não simpatizem com Chávez, o fato é que ele resulta do jogo democrático, e a maioria pobre da Venezuela o apoia. Os EUA são obrigados a suportá-lo também por razões geoeconômicas: a Venezuela é o segundo maior exportador de petróleo para a pátria de Tio Sam. Devido à proximidade geográfica, o produto chega ali bem mais barato do que os barris comprados da distante Arábia Saudita.


O que interessa ao Brasil, no que se refere aos EUA, são as relações comerciais. De janeiro a setembro deste ano, as exportações do nosso país aos EUA somaram US$ 20,6 bilhões. E as importações dos produtos americanos pelo Brasil, US$ 24 bilhões.


A eleição não mudou a composição do Congresso americano. Os republicanos continuarão a ter maioria na Câmara e os democratas no Senado. E é o Congresso que monitora as relações de comércio exterior.


Há muitos interesses brasileiros em jogo quando se trata dos EUA. A Força Aérea daquele país recentemente cancelou a compra de 20 aviões Super Tucano, fabricados pela Embraer, devido às pressões da americana Hawker Beechcraft. Porém, nova licitação está prevista e a encomenda pode ser refeita. E a Boeing está interessada em vender caças ao nosso país.


Cerca de 10 % das exportações brasileiras aos EUA são beneficiadas pelo Sistema Geral de Preferências (SGP), que estabelece tarifa zero a nossos produtos que chegam àquele país. Prevê-se uma revisão do SGP e o Brasil está ameaçado de exclusão.


No próximo ano deve ser votada a “Farm Bill”, que inclui subsídios ao algodão produzido nos EUA. O Brasil é contra e, em recente tentativa dos americanos, se queixou junto à OMC (Organização Mundial do Comercio) e ganhou a causa. Hoje, os EUA pagam compensação ao Brasil e querem, o quanto antes, suspender esse pagamento.


Já expirou a sobretaxa do nosso etanol exportado para os EUA, encarecido ainda mais pelos subsídios ao etanol produzido naquele país. Devido à crise econômica, nada indica que a sobretaxa voltará a vigorar. Porém, a bancada agrícola no Congresso estadunidense pressiona a favor de medidas protecionistas. Obama, até agora, tem se mostrado aberto no que concerne à cooperação bilateral em matéria de energia.


Tanto o empresariado brasileiro quanto o americano reivindicam o fim da bitributação. Impostos pagos em um país não deveriam ser novamente cobrados em outro. Aprovar tal medida ainda depende da criação de um sistema eficiente de intercâmbio de informações tributárias. Tal projeto está paralisado no Senado brasileiro.


Até 31 de dezembro deste ano, 1,8 milhão de turistas brasileiros terão viajado aos EUA. Obama já acenou com a possibilidade de suprimir a exigência de visto de entrada, mas isso ainda depende de modificações na legislação vigente. Há seis projetos no Congresso americano propondo o fim do visto ou facilitação no intercâmbio turístico.


Dilma e Obama coincidem em posições importantes no cenário internacional. Os dois criticaram os governos da União Europeia dispostos a enfrentar a crise econômica com o amargo e impopular purgante da austeridade fiscal e do desemprego. Dilma e Obama apelaram à Alemanha para adotar medidas de estímulo ao crescimento da economia mundial.


Um ponto de divergência entre Dilma e Obama são as relações com Cuba. O Brasil defende o fim do bloqueio imposto pela Casa Branca e a autodeterminação da ilha do Caribe. Obama mantém o bloqueio, embora adote uma política menos agressiva em relação a Cuba do que seus antecessores.


Agora, com as novas leis migratórias que liberam viagens de cubanos ao exterior, os EUA se deparam com uma batata quente: um fluxo significativo de migrantes cubanos que, graças à lei de Reagan, serão considerados cidadãos estadunidenses pelo simples fato de pôr os pés naquele país.


O Brasil mantém plenas relações com Cuba e os EUA. Contudo, o orçamento dos EUA para 2013, a ser votado, propõe endurecer o tratamento a empresas que se relacionem com países considerados inimigos de Tio Sam, como são os casos de Cuba e Irã. Uma lei semelhante já adotada na Flórida prejudicou a Odebrecht, empenhada na construção do novo porto de Cuba, em Mariel, próximo a Havana.


Há tempos o Brasil pleiteia por vaga no Conselho de Segurança da ONU e pela ampliação do número de vagas permanentes. Para atingir tal objetivo, nosso país precisa do apoio de pelo menos cinco países membros (são 15 países membros, dos quais 5 permanentes – EUA, Reino Unido, França, Rússia e China). O Brasil conta com o apoio da Casa Branca, mas até agora Obama desconversa…


Frente à crise econômica que afeta o hemisfério Norte, o Brasil se acautela, pois sabe que poderá ser duramente afetado caso os EUA e a China reduzam as importações de nossos produtos. O melhor, agora, é torcer para que Obama possa, efetivamente, melhorar as relações com o nosso país e a América Latina.



* Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do poder” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org twitter: @freibetto.






Copyright 2012 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

Fonte: Da Redação – FEEB-RJ/ES

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Brasil, país dos contrastes

Frei Betto *


Stefan Zweig intitulou Brasil, país do futuro seu livro de ensaios lançado em 1941, quando veio conhecer o país que o acolheria e no qual morreria no ano seguinte. Ora, pode ser aplicado ao futuro o que diz Eduardo Galeano a respeito da utopia: como o horizonte,  está sempre ali na frente, mas não se pode alcançá-la, por mais que se caminhe em sua direção.


Prefiro afirmar que o Brasil é um país de contrastes. Com população de 192 milhões de habitantes (dos quais 30 milhões na zona rural, onde predomina o latifúndio com grandes extensões de terras improdutivas), apenas 6,6 milhões de brasileiros se encontram na universidade. E dos 92 milhões de trabalhadores, quase a metade não tem carteira assinada.


Temos a maior área fundiária da América Latina e nunca se fez aqui uma reforma agrária. Somos o principal exportador de carne e temos a segunda maior frota de helicópteros das Américas, e convivemos com a miséria de 16 milhões de habitantes (dos quais 40 % têm até 14 anos de idade e 71 % são negros e pardos).


As marcas de 350 anos de escravidão no Brasil ainda são visíveis no fato de a maioria da população negra ser pobre e, com frequência, discriminada. O Brasil, considerado hoje a 6ª economia do mundo, ocupa a vergonhosa posição de 84º lugar no IDH da ONU (2012).


Embora 65 % da renda nacional se concentrem em mãos de apenas 10 % da população, o país experimenta sensíveis melhoras nesses primeiros anos do século XXI. Graças aos programas sociais dos governos Lula e Dilma, 30 milhões de pessoas deixaram a miséria. O controle da inflação, o crédito facilitado e a redução dos juros ampliam o segmento da classe média. A desoneração da indústria automobilística e dos produtos de linha branca (geladeiras, máquinas de lavar etc.) dão acesso a bens de consumo.


No entanto, 4 milhões de menores de 14 anos de idade ainda se encontram fora da escola e submetidos a trabalhos indignos. Cinco milhões de agricultores sem-terra se abrigam em precários acampamentos à beira de estradas ou habitam assentamentos com baixo índice de produtividade. Dos domicílios, 47,5 % carecem de saneamento básico. Isso abrange um universo de 27 milhões de moradias nas quais vivem 105 milhões de pessoas.


Há cerca de 25 mil pessoas submetidas ao trabalho escravo, sobretudo nos estados da Amazônia, cujo desmatamento, provocado pelo agronegócio e a exploração predatória feita por empresas mineradoras, não cessa de despir a floresta de sua exuberância natural.


Na ponta mais estreita da pirâmide social, os brasileiros gastam, em viagens no exterior, US$ 1,8 bilhão por mês! O rombo nas contas externas atingirá, este ano, a cifra recorde de US$ 53 bilhões. Nos últimos anos, a baixa cotação do dólar em relação ao real afetou a indústria nacional e favoreceu a entrada de produtos estrangeiros.


Como a economia brasileira está ancorada principalmente na exportação de commodities, a crise financeira mundial reduz progressivamente as encomendas, tornando pífio o crescimento do PIB, previsto este ano para 1,2 % .


Considerado o segundo maior consumidor de drogas no mundo (atrás apenas dos EUA), o Brasil convive com expressiva violência urbana. Os homicídios são a principal causa de mortes de jovens entre 12 e 25 anos.


Embora a situação social do Brasil tenha melhorado substancialmente na última década (a ponto de europeus afetados pela crise financeira migrarem para o nosso país em busca de emprego), falta ao governo implementar reformas estruturais, como a agrária, a tributária e a política.


O sistema de saúde pública é precário e somente neste ano os deputados federais propuseram dobrar para 10 % do PIB o investimento federal em educação. Convivemos com 13,6 % de adultos analfabetos literais e 29 % de adultos analfabetos funcionais (sabem ler e assinar o nome, mas são incapazes de escrever uma carta sem erros ou interpretar um texto).


Segundo o Instituto Pró-Livro, o brasileiro lê apenas 4 livros por ano. E apenas 5 % da população é capaz de se expressar em inglês, dos quais a maioria sem domínio do idioma.


O poder público brasileiro, com raras exceções, é avesso à cultura. O orçamento 2012 do Ministério da Cultura é de apenas R$ 5 bilhões (o PIB atual do Brasil é de R$ 4,7 trilhões). O que explica o país dispor de apenas 3 mil livrarias, a maioria concentrada nas grandes cidades do Sul e do Sudeste do país.


Apesar das dificuldades que o Brasil atravessa, somos um povo viciado em otimismo. Temos, por hábito, guardar o pessimismo para dias melhores…


Agora o nosso horizonte de felicidade se coloca na Copa das Confederações em 2013; na Copa do Mundo em 2014; e nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016.


Como o nosso país estará no centro das atenções mundiais, o governo apressa obras, reforma estádios, aprimora a infraestrutura e promete festas que nos farão esquecer que ainda somos, socialmente, uma das nações mais desiguais do mundo.



* Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org twitter: @freibetto.


 





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Fonte: Da Redação – FEEB-RJ/ES

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As mudanças no Setor Elétrico Brasileiro

Renovação das concessões, redução de tarifas e possíveis impactos aos trabalhadores


O governo federal anunciou, por meio da Medida Provisória 579, um conjunto de ações para o setor elétrico. Para diminuir as tarifas de energia, serão eliminados dois encargos, outro será reduzido em 75 % e será antecipada a data final das concessões(1) do setor elétrico, que terminariam nos próximos 60 meses. Com a antecipação do vencimento das concessões, empresas que fizerem a adesão a este modelo e que tenham investimentos a serem amortizados(2) receberão antecipadamente esses recursos e passarão a gerar e transmitir energia recebendo um valor pela prestação dos serviços de operação e manutenção, que deverá ser regulado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).


De acordo com o governo, com essas mudanças haverá uma redução das tarifas de 20,2 % , em média, sendo 7,0 pontos percentuais por conta das mudanças nos encargos e 13,2 pontos percentuais devido à renovação das concessões. O efeito para os consumidores residenciais está estimado em 16,2 % de queda nas tarifas. Para os demais – consumidores de energia de alta tensão – a redução variará de 19 a 28 % , já que os custos com transmissão e distribuição variam entre eles, a depender da tensão.


Para melhor entender as razões dessas medidas, é preciso considerar que o setor elétrico brasileiro passou por profundas mudanças desde a década de 1990. As mudanças significaram a introdução de uma lógica fundamentalmente mercantil no setor, especialmente na geração e na comercialização da energia, com muitas privatizações. O argumento foi, por um lado, de garantir o fornecimento por meio da ampliação da oferta e, por outro, através da concorrência, conquistar a modicidade tarifária. Contraditoriamente, ao longo desses anos, vivemos um período de racionamento, pequenos e grandes apagões, enquanto a tarifa tornou-se uma das mais caras do mundo, apesar de a energia elétrica brasileira ser proveniente de hidrelétricas – uma das fontes mais limpas e baratas. Apesar de o aumento dos preços estar associado a essa lógica mercantil, essa situação tem sido atribuída por muitos à estrutura tributária e de encargos incorporados na tarifa. No entanto, mesmo quando se mede apenas os custos com geração, transmissão e distribuição, o país figura entre os que têm a energia elétrica mais cara do mundo.


Por esta razão, apesar de ser um serviço público, o setor se transformou em um dos grandes geradores de lucros. Para se ter uma ideia, só nos últimos cinco anos, entre as 12 maiores distribuidoras de dividendos aos acionistas, nove são empresas de energia elétrica privadas. Essa situação ocorreu ainda em um contexto de profunda precarização das condições de trabalho, marcada pela regressão nas condições de segurança, aumento do número de mortes no setor, especialmente entre os trabalhadores terceirizados, já que mais de 50 % do pessoal ocupado não são do quadro próprio das empresas.


Em grande medida, a precarização do trabalho nos últimos anos pode ser atribuída ao modelo tarifário existente na distribuição, em que as empresas são fortemente estimuladas à redução dos custos operacionais. Para a agência reguladora, empresa eficiente é aquela que tem custo operacional abaixo do regulatório(3), independentemente da forma como se dá essa redução. A consequência tem sido a precarização das condições de trabalho com reduzidos efeitos sobre a tarifa, tendo em vista que o peso das despesas com pessoal no custo final ao consumidor é muito pequeno.
No modelo tarifário aplicado às tarifas nas empresas de distribuição, não é reconhecida grande parte do conteúdo dos acordos e normas de trabalho acertados com as entidades sindicais. Desse modo, apesar da necessária redução da tarifa de luz, é correto avaliar que, a partir do momento em que a Aneel passar a regular as tarifas de geração e transmissão dos empreendimentos renovados, deverá ser reproduzido o mesmo modelo de exploração dos trabalhadores existente nas empresas de distribuição, com possíveis impactos negativos sobre o funcionamento geral do sistema. Como o modelo é incentivador da redução de custos, a cada revisão é estabelecido um novo padrão de custo operacional, sempre abaixo do anterior, reproduzindo de forma cíclica a degradação das condições de trabalho. Essa situação, hoje restrita aos que trabalham no segmento de distribuição, deverá em breve atingir os demais que atuam no setor, o que exigirá forte organização sindical para que o preço da redução tarifária não recaia sobre os trabalhadores.


(1) Concessão pública é a forma pela qual a Administração Pública – nesse caso do setor elétrico é a União – transfere a outra entidade jurídica – uma empresa, por exemplo – a execução de um serviço público.


(2) Nesse caso, a amortização significa o total pagamento do investimento realizado, feito ao longo dos anos por meio de “abatimento” no balanço contábil das empresas. Trata-se de investimentos na construção ou na manutenção de ativos de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica.


(3) O custo regulatório é calculado pela Aneel com base em informações de custos das empresas do setor. Tem como finalidade estabelecer um “padrão” de estrutura de custos “eficiente”, para servir como referência ao setor. Em tese, essa estrutura tende a beneficiar o consumidor, uma vez que não permite que custos acima do estabelecido sejam repassados para as tarifas de energia elétrica. Ao mesmo tempo que, na prática, esse custo regulatório eficiente tem levado às empresas buscarem a redução de custos com pessoal, que tem levado à terceirização e à precarização das condições de trabalho.

Fonte: Dieese