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Era da pós-civilidade

Frei Betto*

 

Por que tanto ódio nas redes sociais? Por que muitos expõem ali o que há neles de mais perverso e maldoso? Agora, o adversário vira inimigo; o opositor, desafeto; o diferente, antagônico. A razão naufraga sob o niilismo exacerbado e a emoção explode à flor da pele em surpreendente ferocidade.

Freud, em “O mal-estar na cultura”, frisa que a vida em sociedade nos induz a reprimir as pulsões. O outro é o nosso limite. E Lacan nos faz entender que, na tensão entre a pulsão e a cultura, não temos outro recurso além da linguagem. E ela é sempre dúbia. Assim, na vida social, como no trânsito, somos capazes de ler a sinalização e procuramos nos conduzir de modo a evitar acidentes.

As redes sociais, no entanto, são o somatório de individualidades recolhidas a seus respectivos nichos ou trincheiras. Muitos se encastelam no próprio ego e perdem horas no pingue-pongue narcísico em torno de vidas alheias. Não comunicam ideia, sugestão ou atividade. Apenas praticam o onanismo cibernético.

O outro deixa de ser real. É virtual. E o emissor canibal já não precisa conter as suas pulsões e moderar a sua linguagem. Julga-se inatingível. Acima de qualquer padrão civilizatório, capaz de ditar regras de educação recíproca, ele se arvora em juiz implacável com direito de ofender e ridicularizar os réus de suas amargas emoções.

Na infovia, o ego implode o superego e abre o canal para que venham à tona as pulsões mais primitivas. O assassino virtual promove a morte simbólica de todos que estão focados no alvo de seu ódio: Marisa Letícia; Maria Júlia Coutinho; Leonardo Vieira; réus da Lava Jato etc. A diferença é que não aperta o gatilho, apenas digita.

Esse gozo pulsional, que impele à satisfação imediata, ignora toda escala de valores. E infantiliza, faz a pessoa retroceder à fase da irresponsabilidade. Destitui-se o sujeito racional que ela deveria ser. As “feras” do inconsciente afloram. O réptil que habita cada um de nós expele, enfim, o seu veneno.

O sujeito racional exerce vigilância sobre si mesmo e delega poderes às instituições (judiciais, policiais etc.) que têm por função assegurar à sociedade um mínimo de harmonia. Essa repressão cria as condições de sublimação e, portanto, de cultura e civilidade. Sem ela, o outro se torna objeto de abjeção.

Não podemos saciar todos os nossos desejos. Os limites são intrínsecos à nossa liberdade, que se funda nas opções, nas escolhas, e não na pulsão. Porém, na era pós-civilidade o inconsciente se vê livre de suas amarras e rejeita a sublimação. Isso favorece a postura anti-humanista de desprezo pelos direitos humanos e pela democracia.

É hora de famílias, escolas e outras instituições sociais cuidarem da educação digital das novas gerações. Não basta dominar as novas tecnologias. Elas são apenas ferramentas. Uma sociedade de conhecimento se constrói com conteúdos humanísticos respaldados pela ética e pela globalização da solidariedade. Sem avançar nessa direção,     corremos o risco de inviabilizar o projeto de uma humanidade ancorada na justiça e vocacionada à paz.

 

* Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto

 


© Copyright 2017 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária ([email protected])

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Qual o papel do CAREF?

João Luiz Fukunaga*

O CAREF – Conselheiro de Administração Representante dos Funcionários do Banco do Brasil é o representante do corpo funcional no Conselho de Administração de uma das maiores instituições financeiras do país. Como representante, ele é porta voz dos anseios dos funcionários para dialogar sobre a estratégia do Banco do Brasil. Embora, por força de lei, ele seja apenas um voto e não possa participar de debates relacionados as questões específicas do funcionalismo, mesmo assim, pode fazer a diferença ao discutir a visão de longo prazo e os caminhos que a direção do banco esta tomando. Essa visão e os caminhos mexem diretamente no dia a dia e nas angústias vividas pelos funcionários.

Uma exemplo é a reestruturação em curso no BB, PEAI e jornada de 6 horas, decisões que tiveram como argumento redução das despesas administrativas em cerca de 2 bilhões ao ano até o final de 2017 para se enquadrar na regulamentação do acordo de Basiléia III. Regulamentação, que têm como o objetivo dar sustentabilidade aos sistema financeiro frente à perda especulativa.

Por conta da regulação, a reserva de capital de cada banco deve ser em torno de 9.5% do seu Patrimônio Liquido. No caso do BB, existem três formas de se chegar a essa reserva de capital: capitação de recursos no mercado, aporte do tesouro nacional ou redução de despesas, entre elas diminuição do número de funcionários. A direção do BB optou por redução de funcionários como estratégia para se adequar ao Basiléia III, argumentando que o ajuste tem como objetivo a adequação do banco ao patamar praticado por bancos privados nacionais.

O que está por trás disso? O que o CAREF pode falar sobre isso?

O Representante dos Funcionários no Conselho de Administração tem acesso garantido a relatórios de auditorias, controladoria e das próprias discussões no conselho. Com esses elementos, ele pode questionar as razões de a direção do Banco do Brasil optar pela diminuição de funcionários para se adequar ao basileia III. Propor que a adequação fosse feita somente no prazo determinado pelo Banco Central que é dezembro de 2019, sem antecipação e, dessa forma evitar demissão de empregados em momento de crise econômica.

Um representante capacitado, conhecedor das normas e regras de funcionamento do conselho de administração do Banco, deve atuar para cobrar a responsabilidade da empresa, quando se pensa em fazer corte em massa de funcionários. Pois cortar gente representa uma solução que não pensa na estratégia de longo prazo da empresa e vai contra ao que se prega sobre responsabilidade sócioambiental, respeito aos funcionários e ao próprio papel do BB, como referência e indudor de boas práticas de mercado.

No que tange o fechamento de agências é outra ação que vai na contra-mão do que deve fazer uma empresa que tem por missão ser o agente de governo e atuar para chegar em todos os lugares possíveis, para exercer o papel de indutor de crédito e de desenvolvimento. Papel que o BB sempre exerceu, tornando-o a maior instituição financeira do país.

Levar o posicionamento dos funcionários e influenciar na estratégia do banco para definir a sua atuação no crédito produtivo, como agente de fomento, incentivo ao micro-crédito, cadeias produtivas e desenvolvimento de novos negócios, temas fundamentais para a continuidade do banco como a grande instituição é parte fundamental da atuação do CAREF.

Com uma atuação consistente é possível prever e avaliar medidas para evitar ações que prejudiquem o banco e o funcionalismo. Também pode fortalecer a ações das representações do funcionalismo (sindicais e associativas) contra medidas que atentem contra a estratégia e função do BB.

É disso que se trata quando pensamos em eleger um representante para o CAREF. Pois, vamos escolher alguém para uma posição estratégica, que requer pessoa com formação técnica, capacidade e experiência para discutir a estratégia da empresa em todos os seus níveis. Isto, mais o papel de saber agir para cobrar da empresa o papel que lhe cabe como empregador, no que diz respeito aos direitos dos funcionários.

 

* João Luiz Fukunaga é diretor do Sindicato dos Bancários de São Paulo e membro da Comissao de Empresa dos Funcionarios do Banco do Brasil

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Decadência do Ocidente

Frei Betto

 

Chegou a vez de o Oriente merecer o lugar de destaque antes ocupado pelo Ocidente. A liderança mundial dos EUA vem sendo minada pela ascensão econômica da China, da Rússia e da Índia. E, como sabemos, o sonho europeu se desvanece desde a crise financeira de 2008.

Finda a Guerra Fria, em 1989, os EUA se apoderaram da hegemonia global, com supremacia econômica, bélica, tecnológica e ideológica. Hoje, entretanto, o mundo é multipolar. O peso dos países ocidentais na economia do planeta é de 56%. E, pelo andar da carruagem, em 2030 será de apenas 25%. Em menos de 15 anos, o Ocidente perderá mais da metade de sua hegemonia econômica.

Isso poderá resultar em mais paz para a humanidade, já que os EUA não terão fôlego para se arrogar em polícia do mundo. Em sua campanha eleitoral, Trump prometeu fazer soar o toque de recolher e trazer de volta aos quartéis de seu país as tropas espalhadas mundo afora.

As nações ocidentais cometem erros no combate ao terrorismo. Querem erradicá-lo adotando o mesmo método: a força bruta. Fracassaram no Iraque (2003), na Líbia (2011), no Afeganistão (2012) e, agora, na Síria, onde se unem à Arábia Saudita, Turquia e Qatar para apoiar os terroristas sunitas no intuito de derrubar Bachar El Asad, apoiado pela Rússia e o Irã.

A China, para se afirmar como potência mundial, cedo ou tarde terá que encarar sua mais forte contradição, a de um Estado comunista autoritário que administra uma implacável economia capitalista. Terá que decidir entre a crescente acumulação do lucro obtido com a sua mão de obra barata, o que dilata a desigualdade social, ou enfrentar essa disparidade, investir em projetos sociais e reduzir seu crescente processo acumulativo.

Desde o fim da Segunda Grande Guerra, os EUA saíram vitoriosos apenas na Guerra Fria, com a derrubada da União Soviética. Fracassaram no Vietnam (1975), em Cuba (1961), na Nicarágua sandinista (1979), no Afeganistão, no Iraque e na Somália (1994). Como no conflito bíblico entre Davi e Golias, nem sempre o mais forte ganha.

As nações ocidentais ainda ressentem a crise financeira de 2008. A democracia perde credibilidade. A política da antipolítica ganha adeptos e espaços. A unidade europeia é ameaçada pelo “Brexit” e ocorre a ascensão da direita e da xenofobia nas disputas eleitorais. Valores e instituições entram em crise e geram medo, ressentimento e ódio.

Enquanto Trump vence a eleição graças ao discurso anti-Wall Street e anti-mídia, o “não” ao tratado de paz, entre guerrilha e governo, ganha na Colômbia, e golpes de Estado derrubam presidentes legítima e democraticamente eleitos em Honduras, Paraguai e Brasil.

O velho retorna com cara nova. A falta de esperança no horizonte suscita o desespero. Apenas o papa Francisco aponta luz no fim do túnel. Mas há que percorrer o túnel.

 


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Marisa Letícia

Se há uma mulher que não podia ser considerada mero adereço do marido era Marisa Letícia Lula da Silva. Ela não tinha a vocação política de Lula, mas sua aguçada sensibilidade funcionava como um radar que lhe permitia captar o âmago das pessoas e discernir as variáveis de cada situação.

Nascida em São Bernardo do Campo, numa família de pequenos sitiantes, ela guardava a firmeza de caráter de seus antepassados italianos. Comedida nas palavras, a ponto de preferir não dar entrevistas, não fazia rodeios quando se tratava de dizer o que pensava, doesse a quem doesse. Por isso não podia ser incluída entre as tietes do marido. Nos palanques, preferia ficar atrás e não ao lado de Lula. A admiração recíproca não impedia que, ao vê-lo retornar de uma maratona de reuniões, às 3 da madrugada, ela o convocasse para criticar o desempenho dele numa entrevista na TV ou compartilhar decisões domésticas.

Marisa era, com certeza, a única pessoa que, no cara a cara, não corria o risco de se deixar enredar pela lógica política do marido. Defensora intransigente de seu próprio espaço, não chegava a ser o tipo de esposa que competia com o parceiro. Sabia que seus papéis eram diferentes e complementares. Ninguém era aceito na intimidade dos Silva sem passar pelo crivo dela, que sabia distinguir muito bem quem eram os amigos do casal e quem eram os amigos de Lula.

Tanto quanto Lula, Marisa conhecia as dificuldades da vida. Décima filha de Antônio João Casa e Regina Rocco Casa, cresceu vendo o pai carregar a charrete de verduras e legumes que ele plantava e vendia no mercado. Se o sítio era pequeno, suficiente para assegurar a precária subsistência da família de onze filhos, o coração dos Casa era grande o bastante para acolher os necessitados. Dona Regineta – como era tratada sua mãe – ficou conhecida como benzedora em São Bernardo do Campo pois, na falta de médicos e de recursos, muitas pessoas a procuravam, especialmente quem padecia de bronquite.

A filha estudou até a 7ª série. Ainda criança, viu-se obrigada a conciliar a escola com o trabalho, empregando-se como babá na casa de um sobrinho de Portinari. Aos 13 anos de idade, tornou-se operária na fábrica de chocolates Dulcora. Do setor de embalagem Marisa foi promovida a coordenadora de seção antes de, aos 20 anos, trocar a Dulcora por um cargo na área de educação da prefeitura de São Bernardo do Campo, onde trabalhou enquanto solteira.

Em 1970, ela se casou com Marcos Cláudio dos Santos, motorista de caminhão. Seis meses depois, ele morreu assassinado, quando dirigia o táxi do pai, deixando Marisa grávida do filho Marcos, que Lula considera seu primogênito. Em 1973, ao recorrer ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo para obter um pecúlio deixado pelo marido, Marisa conheceu Lula. De fato, foi paquerada dentro de um verdadeiro cerco estratégico montado pelo presidente do sindicato, que ouvira falar de uma “lourinha muito bonita” que andava por ali. Lula tentou convencê-la de que também era viúvo, sem que a moça acreditasse, até ver o documento que ele, de propósito, deixara cair no chão. A primeira mulher de Lula, Maria de Lourdes, morrera em 1971, com o filho que trazia no ventre, em consequência de uma hepatite mal curada. Em maio de 1974, Lula e Marisa se casaram. Da união nasceram os irmãos de Marcos: Fábio, Sandro e Luís Cláudio.

Nos primeiros anos de casada, Marisa não gostava de política. O progressivo comprometimento de Lula com atividades sindicais alterava a rotina da casa. Obrigada a levantar cedo para despachar as crianças para a escola, ela esperava o marido regressar de reuniões que se prolongavam madrugada adentro. No fogão, a comida pronta para ser requentada, já que Lula prefere não comer em restaurantes.

Depois de deitar os filhos, ela acompanhava as telenovelas sem entusiasmo. E, com razão, se queixava da difícil tarefa de atender a mais de cem telefonemas por dia, muitas vezes sem conseguir convencer os interlocutores de que ela não controlava a agenda do marido e, muito menos, o que ele pensava do último pronunciamento de um ministro.

Em abril de 1980, ela passou pela prova de fogo, quando Lula esteve preso no DEOPS de São Paulo, devido à greve de 41 dias. Preocupada com a segurança dele, sempre fez questão de abrir a porta quando estranhos batiam, evitando expor o marido. No mesmo ano, fez o curso de Introdução à Política Brasileira, promovido pela Pastoral Operária de São Bernardo do Campo. Filiada ao Partido dos Trabalhadores, abriu sua casa para as reuniões do núcleo petista que se organizara no bairro Assunção, onde moravam. O engajamento da mulher levou Lula a participar mais diretamente das tarefas domésticas. Mas era ela quem cuidava das finanças da casa.

Dela dependia também a logística pessoal de Lula, cujas roupas era ela quem comprava geralmente. Como ele costumava andar de bolsos vazios, sequer trazendo consigo a carteira de identidade, da bolsa de Marisa surgiam o talão de cheques e a caneta com a qual Lula dava autógrafos. Durante as campanhas presidenciais, Marisa sempre levava, nas viagens, uma coleção de camisas para que, após cada comício, ele pudesse trocá-las.

Embora Marisa preferisse, em política, o papel de assessora mais íntima do marido e não gostasse de fazer discursos e nem mesmo ser o centro das atenções, ela não dispensava a oportunidade de participar de conversas políticas. Independentemente de quem fosse o interlocutor, Lula jamais pedia a Marisa que se retirasse, exceto para buscar um café. No fogão, ela preferia o trivial: arroz, feijão, bife e salada de alface com tomate, embora o seu prato predileto fosse camarões e um bom copo de vinho. Para quem chegava, havia sempre uma xícara de café. Sair sem aceitá-la era considerado quase uma ofensa. E ela se comprazia em ler toda a correspondência que o marido recebia nos comícios, bem como em distribuir estrelinhas do Partido às crianças.

Devota do Sagrado Coração de Jesus, cuja folhinha jamais dispensava, a ex-Filha de Maria tinha, como Lula, a impressão de que Deus comandava os seus passos. Mas, por curiosidade, gostava de ler seu horóscopo nos jornais.

Habilidosa na arte do silk-screen, Marisa fez a primeira bandeira do PT, num tecido vermelho trazido da Itália. Em 1981, montou em casa uma pequena oficina para estampar camisetas com símbolos do Partido, inclusive criações de Henfil. Para a campanha de Lula a deputado federal, em 1986, ela chegou a estampar cerca de vinte mil camisetas, vendidas para angariar fundos. Ciosa de sua privacidade familiar virava uma fera quando a imprensa tentava entrar pela porta de sua casa ou incluir seus filhos no noticiário. Em tais situações, só o cuidado das plantas era capaz de acalmá-la.

Avessa a protocolos, gostava mesmo era de ficar entre amigos, cercada de muita planta e água, em qualquer lugar em que os filhos pudessem se divertir, livres das normas de segurança. Um bom jogo de buraco, o papo solto, o marido de bermudas ao seu lado e o telefone desligado – era o que bastava para deixá-la em paz.

 

 

* Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org      twitter: @freibetto.

 

 


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Cresce a desigualdade mundial

Frei Betto*

 

Todos os anos, em janeiro, os mais ricos do mundo se reúnem em Davos, na Suíça. É o Fórum Econômico Mundial. Em contraposição a ele foi criado o Fórum Social Mundial.

Em 2013, o Fórum de Davos alertou que o aumento acelerado da desigualdade econômica entre os povos ameaçava a estabilidade social. Em 2014, o Banco Mundial vestiu a camisa das instituições que se propõem a erradicar a pobreza e promover uma prosperidade compartilhada. (Mas duvido que tenha assumido a pele…).

Como alertou Obama em discurso na ONU, em setembro de 2016, “um mundo no qual 1% da humanidade controla uma riqueza equivalente à dos demais 99% nunca será estável.”

Agora em 2017, a ONG britânica Oxfam, que todo ano apresenta em Davos o mapa da desigualdade mundial, expõe dados preocupantes: 1) Desde 2015, apenas 1% da população global concentra em mãos mais riqueza que os 99% restantes. 2) Ao longo dos próximos 20 anos, 500 pessoas transferirão mais de US$ 2,1 trilhões para seus herdeiros – soma mais alta que o PIB da Índia, que tem 1,2 bilhão de habitantes. 3) A renda dos 10% mais pobres aumentou cerca de US$ 65 entre 1988 e 2011, enquanto a do 1% mais ricos aumentou cerca de US$ 11.800, ou seja, 182 vezes mais. 4) Nos EUA, pesquisa recente do economista Thomas Pickety revela que, nos últimos 30 anos, a renda dos 50% mais pobres permaneceu inalterada, enquanto a do 1% mais rico aumentou 300%.

O dado mais chocante, entretanto, é a constatação de que, atualmente, apenas oito homens detêm a mesma riqueza que a metade da população do mundo (3,6 bilhões de pessoas). São eles: Bill Gates, Amancio Ortega, Warren Buffett, Carlos Slim, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Larry Ellison e Michael Bloomberg.

Os ingredientes para a desintegração de nossas sociedades estão dados. O crescimento da desigualdade social é o caldo de cultura para o aumento da criminalidade, do terrorismo e da insegurança global. Como assinala a Oxfam, há cada vez mais pessoas vivendo com medo do que com esperança.

A conjuntura atual não é promissora: Trump leva a sua xenofobia para a presidência dos EUA; o Reino Unido rompe com a União Europeia; as forças de direita ampliam seus espaços políticos nos países ricos; o preconceito e a discriminação adquirem ares de “politicamente correto”.

Por mais que isso nos espante, a lógica do cidadão comum é simples: por que votar em candidatos progressistas se nada fazem para reduzir a aceleração da desigualdade? Por que elegê-los se os nossos salários estão deteriorados, o desemprego se amplia e os serviços sociais não funcionam adequadamente para a maioria?

Embora as políticas sociais tenham retirado milhões de pessoas da miséria e da pobreza nas últimas décadas, ainda hoje uma em cada nove pessoas vai dormir com fome. E a fome, que não tem ideologia, facilmente reduz um homem a um animal feroz.

 

 

* Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do poder” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto.

 

 

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Perspectivas para a luta em defesa da saúde dos trabalhadores e contra a retirada de direitos

Walcir Previtale*

 

Iniciamos o ano de 2017 com os mesmos problemas quando falamos da saúde do trabalhador como campo político de ação sindical. E a tendência é de piora, com maiores dificuldades para a classe trabalhadora, considerando os ataques do Governo Federal e da classe patronal, que a cada dia apresenta novas formas para justificar a retirada de direitos sociais. E as reformas da previdência social e a trabalhista aparecem nesse sentido. E se apresentam pelas propagandas oficiais e pela mídia como coisas boas e necessárias, entretanto, atingem em cheio as mínimas políticas que buscam proteger a saúde dos trabalhadores nos ambientes laborais. É a chamada lei da desregulamentação do mínimo da legislação trabalhista, retirando direitos conquistados com muita luta, com muita mobilização e greves! Nesse contexto, as políticas de saúde do trabalhador também entram no rol dos direitos que devem ser extintos.

Então, o que se coloca para o movimento sindical dos trabalhadores é o enfrentamento e a implementação de uma agenda que inclua a saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras no centro dos debates políticos e econômicos do país, que leve em conta que a saúde dos trabalhadores não é propriedade do patrão, não é propriedade das empresas e sim um direito humano fundamental inalienável.

Também não haverá saúde para a classe trabalhadora se não houver saúde para todos, como um direito de cidadania, garantido pela Constituição Federal do nosso país.

Logo, outra importante frente de ação política é a defesa e o fortalecimento da saúde pública, a defesa do Sistema Único de Saúde – SUS, barrando o seu proposital sucateamento, uma vez que os ataques saem de dentro do próprio Ministério da Saúde, ou seja, temos um ministro que golpeia o sistema público de saúde para favorecer grupos privados de medicina. E é preciso lembrar que o SUS é o principal indutor das políticas de saúde do trabalhador, elaborando, implementando e coordenando todas as políticas públicas da área. Há um outro espaço importante para a defesa do SUS, que é o Conselho Nacional de Saúde – CNS, um colegiado que tem o poder de debater e deliberar sobre todas as políticas públicas de saúde.

Para além da luta em defesa do SUS, precisamos pensar no sistema de seguridade social em sua totalidade. Um sistema exclusivamente público, que atenda o trabalhador em todas as etapas de sua vida e, principalmente, na hora em que ela mais necessita. Um sistema que se paute pela democracia e pelo respeito aos direitos humanos. Que ampare trabalhadores empregados ou desempregados, no exato momento da ocorrência de um acidente ou adoecimento, na hora da aposentadoria e assim por diante.

Outra pauta urgente dos trabalhadores é a luta pela democratização das relações de trabalho nos ambientes laborais, aliás, algo que nunca ou muito pouco se avançou em nosso país. As políticas sindicais dos trabalhadores não podem encontrar obstáculos para entrar no chão das fábricas, no chão dos bancos, etc.

O veto patronal à participação dos trabalhadores em questões relacionadas aos processos e organização do trabalho, políticas de saúde e de demais assuntos de interesses dos empregados, deve ser combatido cotidianamente pelos representantes dos trabalhadores. O fortalecimento e a ampliação das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes – CIPA e a implementação imediata das Convenções da Organização Internacional do Trabalho – OIT, são tarefas urgentes na busca de um ambiente de trabalho saudável e que respeite a individualidade dos empregados.

A luta pela democratização das relações de trabalho impõe outra demanda crucial para a classe trabalhadora: a organização por local de trabalho – OLT, pressuposto fundamental para garantir, de forma organizada, democrática e política, a intervenção dos trabalhadores nos rumos da produção do trabalho. Por sua vez, a OLT precisa estar associada a uma sólida política de formação sindical, direcionada para os trabalhadores.

São muitas as frentes possíveis de ação sindical no campo político da saúde do trabalhador. Procuramos destacar alguns desses principais espaços, sendo urgente mudarmos o patamar que se encontra a saúde dos trabalhadores.

A hegemonização da questão pelo patronato e pela medicina do trabalho deve ser questionada e enfrentada a todo instante. A exclusão do saber do trabalhador, o veto à participação dos trabalhadores e de seus representantes em políticas de saúde, em políticas de organização do trabalho, somente favorece os interesses do capital.

O trabalhador adoece por conta de condições e processos de trabalho definidos, unilateralmente, pela empresa, e a ele é negado o direito, sequer, de discutir, ou de propor, ou de negociar novas formas de desempenhar as atividades laborais.

Isso precisa ser mudado!

Logo, o trabalhador deve assumir o controle de sua saúde e não delegar ao patrão as políticas que dizem respeito a sua própria saúde!

 

* Walcir Previtale é Secretário Nacional de Saúde da Trabalhadora e do Trabalhador da CONTRAF-CUT e representante da CUT no Conselho Nacional de Saúde – CNS. 

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Verdades e mentiras sobre a previdência pública

Marcello Azevedo*

 

Estamos assistindo uma campanha violenta por parte do governo e da mídia em defesa da necessidade da reforma da previdência com o aumento da idade mínima e da contribuição dos trabalhadores pois a mesma estaria em situação de déficit permanente e crescente e que a reforma seria a única forma da sua manutenção.

A verdade não é essa se olharmos primeiro o conjunto de leis que regem a seguridade social brasileira e estão consolidados na constituição nos artigos 194 e 195 que regulam a seguridade social no qual são bem colocadas as fontes de financiamento da seguridade social no qual está inserida a previdência pública. A forma de financiamento é tripartite com trabalhadores, patrões e governo alocando recursos para a sustentação da seguridade social e por consequência da previdência que está inserida no conjunto da seguridade social. O que o governo diz ser déficit da previdência está intimamente ligada à sua participação no financiamento. Se olharmos a arrecadação da seguridade como um todo veremos claramente que é superavitária. Não existe previsão constitucional para separar a previdência das demais verbas da seguridade social, ou seja, é uma manobra contábil de interesses contrários a previdência pública. São ilegais pois desconsideram os artigos 165, 194, 195 e 239 da Constituição da República.

São partes integrantes da arrecadação da seguridade social conforme a constituição a Contribuição previdenciária para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) pagas pelos empregados e pelas empresas, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL), Contribuição Social Para o Financiamento da Seguridade Social, cobrada sobre o faturamento das empresas (COFINS) mais as receitas advindas do orçamento público da União. Importante conhecer as fontes para fazer uma análise criteriosa sobre as “contas da Previdência” pois grande parte dessas verbas destinadas a sustentação da seguridade são desviadas para outros fins diferente daquelas previstos constitucionalmente.

Existem diversas formas “legais” para fazer esse desvio e prejudicar a seguridade social e por tabela a previdência. A primeira forma é através da DRU (Desvinculação das receitas da União) que permite ao executivo remanejar os recursos destinados constitucionalmente para outros fins sem a necessidade de reposição dos mesmos a sua fonte de origem ou seja grande parte dos recursos destinados a seguridade podem e estão sendo destinados a outros fins inclusive para pagar juros da dívida pública, ou seja tira do povo e dá para os banqueiros.

A Segunda forma de desviar recursos do financiamento é feita através das isenções fiscais na qual o governo abre mão de receitas para estimular a economia, que na prática mesmo só serviram para agravar a crise de recursos da seguridade. Os alvos são sempre as contribuições sócias que são chamadas de custos pelos empresários e que recaem geralmente sobre a isenção de COFINS e CSLL, ou seja, da contribuição para a seguridade social. A DRU e as isenções fiscais vêm comprometendo seriamente o orçamento público. Se somarmos o montante que é sonegado anualmente pelos empresários então os valores chegam a centenas de bilhões de reais que não chegam onde deveriam chegar.

Um outro problema sério na arrecadação vem das próprias características do mercado de trabalho brasileiro com uma informalidade que beira 50% dos trabalhadores e das empresas que não contribuem para a previdência ou seja metade da possibilidade de arrecadação é perdida na informalidade e esse quadro tende a se agravar se levarmos em conta a rotatividade da mão de obra no Brasil que chega a cada de 20 milhões ano , ou seja o trabalhador hora tem emprego formal, emprego informal ou está desempregado e com isso não recolhendo para a sua parte para a sua aposentadoria e nem os patrões recolhendo as deles. Não é preciso mencionar os milhões de processos trabalhistas que tramitam na justiça do trabalho todo o ano reivindicando não só o pagamento dos salários e dos direitos sociais, mas recolhimento de obrigações patronais sonegadas.

Os reais interesses dos defensores da reforma da previdência é entregar a previdência ao mercado ou seja aos planos privados hegemonizados pelos bancos e deixar para a previdência pública somente aqueles que não tem condições mínimas de adquirir um plano de previdência privado , ou seja uma previdência mínima para aqueles que não podem pagar , numa política clara de descomprometer o estado com políticas sociais para sobrar mais dinheiro para pagar juros da dividas e outras despesas a seu bel prazer. Se trata de privatizar o estado e mercantilizar a vida das pessoas.

Não podemos acreditar em mentiras e versões daqueles que estão a serviço do desmonte da seguridade social e da previdência pois tu tens lado e interesses próprios e fazem da mídia o seu canal de propaganda e não de informação, pois basta ver que os proponentes da reforma são quase todos muito bem aposentados pagos pelo governo ou pela iniciativa privada. Não podemos esperar mais, a nossa seguridade e a nossa previdência estão em risco. Vamos à luta!

 

* Marcello Azevedo, dirigente da ContrafCUT e especialista em economia do trabalho na UNICAMP e Mestrando em políticas públicas na faculdade latino-americana de Ciências Sociais(FLACSO-BRASIL).

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Metas aterrorizam a categoria

Max Bezerra *

No último dia 05 o Sindicato dos Bancários e das Bancárias de Nova Friburgo e Região recebeu uma carta anônima de um trabalhador do Itaú-Unibanco. Mas que poderia ser do Bradesco, Santander, Caixa, BB, de uma financeira, cooperativa ou lotérica.

A carta é anônima por causa do justo temor em se expor e perder o emprego, mas o envelope deixado na portaria do prédio onde está o Sindicato tinha a logomarca do Itaú.

A Direção do SEEB-NF sempre defendeu o fim das metas por:
• Entender que elas são as maiores e principais causas de adoecimento na nossa categoria.
• Não ter como mensurar aquilo que é abusivo, pois ao impôr as metas a abusividade está implícita e seus números as tornam explícitas.
• Provocarem a divisão da categoria e estimular o individualismo.

A Direção do SEEB-NF sempre defendeu que os salários (remuneração fixa) sejam maiores que as comissões (remuneração variável) porque, com o tempo, os bancos diminuem as quantidades de produtos “comissionáveis” e aumentam as metas, inviabilizando qualquer chance do trabalhador receber a variável. Enquanto isso, para os executivos os bônus são cada vez maiores.

Por esses motivos que defendemos uma PLR maior e mais justa.

Esta questão não é exclusiva de nossa base e nem do Itaú-Unibanco, por isso a Direção do SEEB-NF encaminhará a carta as instâncias sindicais de grau superior (Federação e Contraf) e ao Itaú-Unibanco para que reveja seus procedimentos.

A Direção do SEEB-NF solicita que depoimentos iguais a como este sejam repassados à entidade.

Conte conosco nesta luta que é algo covarde e DESUMANO e CRUEL.

 

* Max José Neves Bezerra é presidente do Seeb-Nova Friburgo

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Para uma reforma do sistema prisional

Frei Betto*

 

Qualquer projeto de reforma penitenciária terá de ouvir todas as partes interessadas, a menos que fique no papel e seus recursos abocanhados pela corrupção. São partes interessadas: presos e suas famílias; agentes penitenciários; funcionários qualificados (psicólogos, médicos, mestres de oficinas etc); advogados e juízes; além de instituições como a Pastoral Carcerária, que lidam há décadas com o universo prisional.

Cada ponto de vista é a vista a partir de um ponto. Ouvir uns e fazer ouvidos moucos a outros é correr o risco de cair na cilada das versões dos que não querem mudar quase nada, pois isso significaria fechar a boca da cornucópia que alimenta a corrupção de funcionários públicos, de agentes penitenciários a juízes.

Quando me transferiram para o Carandiru havia ali 5 mil detentos. A capacidade era de apenas 1.800. Naquela masmorra, as drogas corriam soltas, muitos portavam facas e estiletes, e havia leilões de gays (muitos à força, sob pena de levarem facadas) nos corredores dos pavilhões.

Grande parte da mão de obra era dos próprios presos: eletricistas, encanadores, pedreiros etc. O que mais me intrigou foi, na chegada, ao ser transferido da Penitenciária do Estado, passar por uma revista… feita pelos próprios presos! Era a “elite” da cadeia, que falava em pé de igualdade com a direção do presídio. Um deles, para a minha surpresa, era Ronaldo Castro, acusado de ter assassinado, no Rio, Aída Cury, crime que ocupou muitas edições da revista O Cruzeiro.

Fui falar com o diretor, coronel Guedes. Como admitia tantos abusos e ilegalidades ali dentro? Reagiu sem tergiversar: “Isso aqui é um barril de pólvora. Pode explodir a qualquer momento. Meu papel é retardar a explosão. Por isso faço vista grossa. Aqui só não permito duas coisas: mulher e helicóptero.”

A explosão aconteceu em 1992, e resultou no massacre de 111 presos pela PM de São Paulo. Até hoje os responsáveis não sofreram condenação definitiva.

Na Penitenciária do Estado, um preso me disse ter uma arma de fogo. Perguntei como conseguira fazê-la entrar. Contou que pelo funcionário responsável pela alfaiataria. Um idoso com cara de avô da gente e do qual jamais se suspeitaria de qualquer deslize. “E ele teve coragem de trazer a arma?” “Não”, disse o preso, “mas como está para se aposentar, ameacei melar o final de carreira dele e denunciá-lo como nosso fornecedor de drogas caso não buscasse a arma em mãos de minha mulher.”

Na Penitenciária de Presidente Venceslau, as drogas entravam via funcionários. Os comparsas dos presos, soltos aqui fora, conheciam o endereço de todos eles. E ameaçavam suas famílias caso não obedecessem às ordens das gangues internas.

Havia um rebanho de vacas no setor agrícola da penitenciária. E nenhum copo de leite era servido aos presos. O diretor comercializava o produto. Além de obrigar os detentos do ateliê de pinturas a fazerem cópias de telas famosas para presentear os amigos.

Haveria muito mais a contar. Esses exemplos são suficientes para enfatizar que não haverá solução para a questão carcerária enquanto os agentes penitenciários não forem aprovados em cursos de qualificação, nos quais ética e pedagogia mereçam prioridade. O objetivo é recuperar para o convívio social homens e mulheres que ali se encontram, e não transformá-los em monstros através de torturas, castigos injustos e cumplicidade em ações ilegais. Um carcereiro mal remunerado precisa ter muita ética para se recusar a receber o dobro de seu salário mensal em troca de um celular contrabandeado para dentro das grades.

Não é preciso reinventar a roda para reformar nossas prisões. Há suficientes exemplos mundo afora de como se reduz o índice de reincidência. O que falta ao poder publico é fechar as inúmeras torneiras da corrupção no sistema. Basta fazer as contas: os recursos que o Estado gasta com esse regime de enjaulamento sumário são infinitamente superiores do que despenderia com a formação e qualificação de todos que trabalham na esfera prisional.

Soluções existem. E não incluem a multiplicação de cadeias. O que falta é vontade política para dissociar os agentes públicos da criminalidade, e acreditar que, se ninguém nasce bandido, há sempre a possibilidade de ressocializar quem infringe a lei.

 

 

* Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto

 

 


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“O homem que não conheceu o medo”

O cardeal Paulo Evaristo Arns era um dos homens mais corajosos que conheci

 Frei Betto*

 

20 de janeiro de 1970. Dom Paulo Evaristo Arns obteve, enfim, permissão para visitar os frades dominicanos encarcerados no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Franciscano, o bispo auxiliar do cardeal Agnelo Rossi era responsável pela Pastoral Carcerária. Diante do diretor do presídio, narramos ao prelado nossas prisões, torturas, interrogatórios e ameaças recebidas.

21 de outubro de 1970. O papa Paulo VI declarou que o método de torturas se espalhava pelo mundo como uma epidemia, sem referência direta ao Brasil. Citou, porém, “um grande país” no qual se aplicavam “torturas, isto é, meios policiais cruéis e desumanos para extorquir confissões dos prisioneiros.” Acrescentou que esses meios “devem ser condenados abertamente”.

22 de outubro de 1970. Ao desembarcar em Guarulhos, procedente de Roma, o cardeal Agnelo Rossi, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), declarou que “no Brasil não existe perseguição religiosa, e, sim, uma campanha de difamação dirigida do exterior contra o governo brasileiro.” Segundo o cardeal, ao condenar a tortura o papa não se referia ao Brasil. Na tarde do mesmo dia, dom Rossi foi destituído pelo Vaticano do arcebispado de São Paulo e nomeado prefeito da Congregação de Evangelização dos Povos, em Roma. No mesmo ato, o papa nomeou dom Paulo Evaristo Arns para suceder a ele à frente da arquidiocese paulistana.

23 de outubro de 1970. Recebemos, no Presídio Tiradentes, a visita de dom Paulo. Concedeu-nos a honra de sua primeira visita pastoral como novo arcebispo. Dali partiu para o retiro que antecedia a sua posse, a 1º de novembro de 1970.

21 de novembro de 1970. Fomos despertados às seis da manhã pela visita de dom Paulo. Veio celebrar conosco no Presídio Tiradentes. O altar, um caixote vazio de maçãs; o cálice, um copo americano; o templo, uma cela apertada; os fiéis, prisioneiros em sua maioria.

Janeiro de 1971. Dom Paulo denunciou a prisão do padre Giulio Vicini e da agente pastoral Yara Spadini. Encontrados com manifestos de protesto contra a morte do operário Raimundo Eduardo da Silva — que se achava recolhido ao Hospital Militar à disposição das autoridades policiais —, foram torturados no Deops. O arcebispo invadiu a repartição e conseguiu avistar-se com os dois, que lhe mostraram as marcas das sevícias. Indignado, mandou afixar em todas as paróquias da arquidiocese nota em defesa dos presos e de denúncia das torturas sofridas.

5 de maio de 1971. O general Médici recebeu, no Palácio do Planalto, dom Paulo, que lhe relatou casos de torturas. O ditador, com a rispidez que o caracterizava, não se fez de rogado e reiterou: “Elas existem e vão continuar porque são necessárias. E a Igreja que não se meta, porque o próximo passo será a prisão de bispos…”

23 de dezembro de 1971. À tarde, hora das visitas, dom Paulo foi ao Presídio Tiradentes. Percorreu cada uma das celas. Demos a ele uma grande cruz de couro – a Comenda do Cárcere – pirografada com versículos do Evangelho, trechos do Documento de Medellín e nomes de todos os revolucionários assassinados. Gravamos: “O Bom Pastor é aquele que dá a vida por suas ovelhas.”

12 de maio de 1972. Dom Paulo, nosso mediador na greve de fome coletiva, esteve na Penitenciária do Estado, onde nos encontrávamos misturados aos presos comuns. Não nos permitiram vê-lo. Segundo o diretor, só podemos falar com os advogados. Porém, soubemos que o arcebispo advertiu-o de que está historicamente comprovado que medidas de isolamento carcerário geralmente precedem a eliminação física…

Em encontro com o juiz Nelson Guimarães, do Tribunal Militar, o arcebispo questionou-o: “O senhor sabe que é responsável pela vida dos presos?”. O juiz auditor assentiu: “Assumo a responsabilidade se vierem a morrer”. Dom Paulo retrucou: “Meu filho, assume dois ou três dias. Depois, não assume mais. Sua consciência passa a martirizá-lo. E que contas dará o senhor perante si mesmo e perante Deus?”. O juiz respondeu de cabeça baixa: “O senhor tem razão.”

Vladimir Herzog suicidado. Dom Paulo decidiu celebrar missa solene na Catedral da Sé em homenagem a ele. Judeus que apoiavam a ditadura tentaram demover o cardeal: “Por que missa para Herzog? Era judeu!”. Dom Paulo respondeu: “Jesus também.”

O cardeal Paulo Evaristo Arns era um dos homens mais corajosos que conheci. Imbuído da fé que caracterizou seu patrono e modelo, Francisco de Assis, jamais pensou no próprio sucesso. Sua vida dedicada ao próximo veio a público, com riqueza de detalhes, na obra “Dom Paulo Evaristo Arns — um homem amado e perseguido”, de Evanize Sydow e Marilda Ferri.

Se a História da independência do Brasil não pode ignorar Tiradentes, nem o movimento ecológico, Chico Mendes, a resistência à ditadura que nos governou 21 anos deve muito à figura ímpar de dom Paulo. O mesmo cuidado amoroso que São Francisco dedicava aos pobres e à natureza, dom Paulo estendeu às vítimas da repressão.

O livro “Brasil: Nunca mais” é uma radiografia irrespondível da ditadura, graças à iniciativa de dom Paulo e do pastor Jaime Wright, que promoveram uma devassa nos arquivos da Justiça Militar. Analisaram o conteúdo de mais de um milhão de páginas de processos políticos. A anistia ainda evita que torturadores paguem por seus crimes. Mas, graças a esses dois pastores, não se apagarão da memória brasileira o terror de Estado e o sofrimento de milhares de vítimas.

Dom Paulo Evaristo Arns rezou, com a vida, a oração de São Francisco de Assis, adaptada aos nossos tempos: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz. Onde houver… repressão e pobreza, que eu leve liberdade e justiça”.

 

 

*Frei Betto, ex-preso político, é escritor, autor de “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.


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