Direitos


Eugène Delacroix – La liberté guidant le peuple


Por Luciana Nepomuceno *


Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Primeiro artigo dos direitos humanos universais. Direitos que são, repetida e constantemente, negados às mulheres, especialmente àquelas, vocês sabem quais: vadias, piranhas, periguetes, biscates.


Negam-nos o corpo livre. Não podemos vestir esse corpo como queremos, “também, andando seminua por aí, só podia mesmo era ser estuprada”. Não somos livres para levar este corpo por onde queremos, na hora que queremos, “tá vendo que mulher direita não anda sozinha em bar, não fica na rua de madrugada”. Não somos livres para gozar do que o corpo nos permite sentir “eu vi logo que não era mulher pra casar, deu no primeiro encontro e, olha, mó comportamento de piranha, goza fácil”. Não somos livres para conhecer o nosso corpo, tocar, cuidar, “menina, fecha essas pernas, quem senta de perna aberta não se dá valor”. Não somos livres para dizer, “não liga não, sabe como são essas mulheres, essa aí deve estar de TPM”. Não somos livres pra criticar, “essas mulheres, é só colocar uma idéia feminista na cabeça que ficam vendo pelo em ovo, não entendem que é só uma piada”. Não somos livres e ainda tem sempre um engraçadinho pra perguntar se tem alguém apontando alguma arma pra gente e nos impedindo de fazer o que quer que seja. E nem pensa que a resposta está evidente: a arma é ele e seu preconceito.


Não somos iguais, também. Há uma hierarquia entre homens e mulheres. E outra entre mulheres direitas e mulheres tortas(?) erradas(?). As outras. Sem falar na hierarquia entre mulheres cis (sejam direitas ou não) e mulheres trans. Não somos tratadas de maneira igualitária. Se uma mulher cis reclama de qualquer coisa em relação a uma mulher trans, como esta última usar o banheiro feminino ou querer andar no vagão reservado pra mulheres, a mulher cis é ouvida com atenção e a mulher trans, negada. Se uma moça direita tem seu namorado “roubado”, a outra, biscate por suposto, é marginalizada, ofendida, rotulada. Se essa mesma moça direita reclamar que um homem lhe assediou, por exemplo, ela é posta em questão, inquirida, paira dúvida sobre sua denúncia, porque, claro, todo mundo sabe, mulher é tudo histérica e o moço sempre foi tão gente boa.


 E onde a liberdade é negada e o discurso da igualdade é um disfarce para a manutenção de relações assimétricas, a fraternidade se torna simulacro e jogo de interesse. Somos solidárixs aos que nos são semelhantes e usamos e abusamos do narcisismo das pequenas diferenças. Fechamos os olhos pras dores alheias e milhões de mulheres (cis e trans) sofrem abusos, estupros, discriminação nos empregos, sobrecarregam-se em duplas jornadas de trabalho, recriminam-se por não serem boas… mães, esposas, chefes, empregadas. Por não serem o bastante. Por não serem, talvez, homens.


Eu tenho pensado um bocado nesse lance dos direitos porque, acho, tem rolado um deslocamento que me chama a atenção. Vou logo adiantando que falo de um lugar específico, então quando eu disser “as pessoas”, estou falando das pessoas com quem convivo, pessoal ou virtualmente, geralmente brasileirxs, classe média, razoavelmente letrados e tal e tal. Voltando ao deslocamento. Noto que os direitos à liberdade, igualdade e fraternidade (com seu efeito consequente de respeitar a liberdade do outro, trata-los de forma igualitária e fraterna) tem sido menos frequentes nos discursos e demandas e substituídos por uma repetida afirmação do direito à felicidade – e consequentes queixas de não estarem sendo felizes todo tempo.


Claro que cada um tem seu sentido pra felicidade e seu barômetro interno pra indicar: feliz, oba. Mas, de maneira geral, e no dicionário, essa materialidade do que se consensua na língua, felicidade, diz nosso amigo Aurélio, é o estado de perfeita satisfação.


Eu não acho que a gente tem direito a ser feliz. Veja bem, meu bem, não estou dizendo que não é pra gente se sentir feliz. Mas um direito tem, como característica essencial, a permanência. Temos direito a ser livres, fraternos e iguais, independente de raça, credo, gênero, etc. Que isso não seja respeitado, é o ponto a ser combatido. Mas os direitos não tem condicional a priori. A felicidade não goza, acho eu, da mesma natureza. Ser feliz é um estar, não um ser. O estado de perfeita satisfação tem condições que se materializam, geralmente, na figura do Outro. Como possibilidade e limite da felicidade. Então, eu não acho que a gente tem o direito de ser feliz como um dado, como escuto as pessoas (aquelas, as minhas) dizendo – ou escrevendo(1).


E eu não encontro essa demanda nas pessoas (as minhas pessoas, again) mais velhas. Encontro a vontade de ser feliz. O desejo. A gana. O esforço, a tentativa para. Mas não como um dado. Não como algo garantido. A ideia de que temos o direito à felicidade parece, pra mim, pressupor que o mundo deve ser como queremos, quando queremos. E ele não é. Porque a diversidade existe. Porque o Outro existe.


Querer ser feliz permite, inclui e implica o tempo de não-ser. Não só o tempo da infelicidade, mas o tempo das miudezas, da rotina. O tempo de viver nem alegre, nem triste, poeta – talvez. Querer ser feliz implica na peleja para ser. Implica o sujeito no processo.


A ideia de que se deve ser feliz, sempre, todo tempo, leva o “não feliz” a um estado de suposta exceção, o “não feliz” como algo a ser abolido, silenciado, extinto. E fico imaginando o tanto de insatisfação que esse tipo de expectativa gera. Porque o não-feliz é a vida. Precisar, sentir falta, ansiar é o que nos torna humanos. Criamos a linguagem para dizer o que não temos. Os intervalos entre infeliz-nãofeliz-feliz é que (parece-me) permitem re-conhecer a felicidade.


Eu sempre quis muito. Eu e o Caetano. Ou o Caetano e eu, já que a música é de 1978 e nesse ano eu só queria dormir muito, correr muito, comer muito e muito abraço. Mas muito não é tudo. E não é sempre. Tem uma velha expressão: cuidado com o que deseja, você pode conseguir. Felicidade é plenitude, não sentir falta de nada. Ser absoluta e constantemente sem nenhuma vontade, nenhum desejo, nenhuma falta só é possível em uma situação. A ausência de toda necessidade só se coloca na morte. Por isso, enquanto estou por aqui, vou cantando com ele: muito é muito pouco.



(1) Um pequeno PS: a demanda da felicidade instantânea e imediata tem, acho eu, uma relação intrínseca com a lógica atual de consumo, onde a promessa é de que é possível ser completo basta comprar isso, vestir aquilo e/ou usar/comer/beber aquilo outro. E a espiral do consumo se apóia na lógica do desejo (que a próxima coisa vai ser a que me completude e plena satisfação, ou seja, me deixará feliz) ao mesmo tempo que nega o sujeito desejante na sua particularidade (já que qualquer pessoa vai ser feliz comprando aquele objeto anunciado). Mas isso vai ficar pra outra conversa.


 



 


 


 


 


* Luciana Nepomuceno é psicóloga, Doutoranda em Sociologia Econômica
e das Organizações e Biscate. Escreve o blog Borboleta nos Olhos.
Este artigo foi publicado originalmente no Biscate Social Club e reproduzido
aqui com autorização da autora.

Fonte: Luciana Nepomuceno