Heloneida Studart*
Tenho para mim que a violência brutal contra pobres e negros aumentou no dia em que a Igreja Católica abandonou a vanguarda da luta pelos direitos humanos, na qual foi campeã durante os anos sinistros da ditadura (a bênção, dom Evaristo Arns), e começou a se ocupar de camisinhas e outros preservativos.
Também tenho a impressão de que a violência contra a mulher vem crescendo a partir do momento em que as feministas brasileiras, cansadas de guerra, mal reconhecidas pelas autoridades, foram perdendo espaço em todos os lugares, principalmente na mídia, para mulheres que elaboram as políticas públicas sem saber o que é o feminismo e sem reconhecer a discriminação na relação homem-mulher.
Ai de nós, esse é o “x” do problema.
Não me tornei feminista para que as mulheres obtivessem mais vagas nas universidades ou mais cotas nas legendas eleitorais dos partidos políticos. Sempre soube que a própria evolução da sociedade se encarregaria disso. Eu me tornei feminista para que as mulheres deixassem de ser objetos de cama e mesa, parassem de ser privatizadas pela família (seus bilhões de neurônios utilizados em receitas de bolo) e se livrassem de ser julgadas, sentenciadas e condenadas pelos pais e irmãos.
Não faz muito tempo – só umas poucas décadas – no Nordeste inteiro moça que deixasse de ser donzela era agarrada pelos homens da família e obrigada a fazer exame ginecológico. Eu mesma ouvi os gritos de pavor de uma vizinha de 17 anos. Verificada a quebra do lacre, ela era expulsa de casa para ir pedir vaga nos bordéis da cidade ou era internada no Asilo Bom Pastor, reformatório terrível de pecadoras, onde devia ”se esquecer do mundo”. Nesse tribunal de família não havia advogado, habeas-corpus ou mandado de segurança, nenhum recurso da lei.
As famílias eram donas das mulheres como da mobília da casa. Às vezes até a pena de morte era aplicada, sem que o criminoso fosse condenado, porque se tratava de ”legítima defesa da honra”.
No interior de Minas, vi esposas tratando o marido de ”senhor”. E vi muitas delas que não se sentavam à mesa com o patriarca, servindo devotadamente a ele e aos filhos homens e indo comer na cozinha, com suas filhas mulheres.
Mesmo nos momentos em que as mulheres obtiveram a maioria dos direitos sociais, ingressaram nas universidades, tiraram os primeiros lugares nos concursos de juízes e promotores, abriram consultórios, transformaram-se em deputadas e governadoras, continuou fazendo sucesso a piada do Nelson Rodrigues: ”Mulher gosta de apanhar”. E apanha mesmo. Apanha nos barracos da favela e nos aposentos de luxo, porque a brutalidade contra a mulher é democratizada, perpassa todas as classes sociais. Às vezes, nas favelas, as mulheres agredidas até gritam por socorro. Nas classes média e alta sufocam os gritos, escondem as lágrimas nos travesseiros e afirmam às vizinhas e conhecidas que o hematoma foi resultado de um tombo na escada.
Se alguém duvida que a violência contra a mulher vem aumentando, peça os relatórios da Heleith Saffioti, socióloga brilhante e feminista incansável. Quem duvida que a coisificação da mulher progride, contemple essas vedetes, jovens atrizes, beldades de plantão. Todas com seios que não são seus seios, mas esculturas de silicone, com barrigas lipoaspiradas, com implantes nas faces, nas nádegas, no traseiro. Todas transformadas em objetos e cada vez mais distantes da feminilidade e do amor, porque essas estátuas narcísicas acabam amando apenas a si mesmas, por rejeitar o diferente, o outro.
Isso tudo nos ensina que as mulheres precisam continuar alertas. E o dia 8 de março serve para isso.
No Dia Internacional da Mulher, as feministas verdadeiras (salve Rosemarie Muraro, Moema Toscano, Fanny Tabak, Branca Moreira Alves, Roseane Reis, Hildete Pereira e tantas outras) continuam – e como continuamos! – lutando pela nossa verdadeira igualdade. Menos nos tribunais, câmaras, assembléias, cargos públicos, e mais – muito mais! – diante dos nossos homens, de quem desejamos a ternura e o respeito, o carinho e o reconhecimento. Assim seja.
*Escritora, jornalista e deputada estadual (PT-RJ)
Fonte: Artigo publicado no Jornal do Brasil – 08/03/2004