A Kuarup reedita discos que os fãs de Elomar Figueira Mello e seu melhor intéprete Eugênio Avelino (vulgo Xangai) davam como relegados à poeira do tempo em seus respectivos vinis. Mas eis que o velho e rabugento “Bodão” do sertão baiano, um dos maiores compositores do Brasil profundo, negociou direitos e a gravadora carioca remasterizou e está relançando três pérolas perdidas dele e outras três do conterrâneo, amigo e intérprete Xangai. “Na Quadrada das Águas Perdidas”(1979), “Cartas Catingueiras” (1982) e “Árias Sertânicas” (1991) formam uma tríade ímpar da criação erudita-popular de Elomar. Xangai tem o pacote de seus três primeiros álbuns retratados digitalmente: “Qué Qui Tu Tem Canário” (1981), “Eugênio Avelino – Xangai” (1990) e “Dos Labutos (1991).
Os discos ganharam uma remasterização cuidadosa, limpando ruídos e chiados das cópias originais mantendo a ambientação natural das captações. Para isso, a gravadora buscou ajuda de Luigi Hoffner, um dos precursores da digitalização da música no Brasil. Os encartes reproduzem a riqueza de informações dos LP originais, incluindo os textos explicativos e o glossário do dialeto “elomariano”, escrito por ele mesmo, por exemplo, em “Cartas Catingeiras”, um verdadeiro compêndio desfiado ao violão e voz em 18 faixas (leia sobre os discos abaixo). Segundo Mário de Aratanha, diretor da Kuarup, o acerto entre ele e Elomar (sempre arredio com a edição de suas obras) prevê a possibilidade não inteiramente confirmada ainda da gravação de um DVD do cantador e a reedição de mais três álbuns, dois dos quais já lançados pela gravadaora (“Elomar em Concerto” e “Cantoria 3”). O terceiro disco é outras das pérolas do baú de Elomar: “Fantasia Leiga Para Um Rio Seco”, LP de 1981 ainda em poder da editora dele (Rio Gavião).
ELOMAR FIGUEIRA MELLO
Cantador, violeiro, 68 anos, é um compositor orginalíssimo . Nascido em Vitória da Conquista (BA), foi criado entre violeiros e cantadores do sertão, leu muitos romances de cavalaria, ouviu os seresteiros do rádio brasileiro. Estudou arquitetura e música em Salvador (foi aluno de Walter Smetak, Koellreuter, entre outros compositores de concerto, mas experimentalistas). Essa mistura inspirou-lhe a criação de canções épico-populares como “Clariô”, “O Violeiro”, “Arrumação”, entre outras que se tornaram clássicos entre um público que não cresceu, apesar da grandiosidade da criação. Mas ele, uma espécie de Policarpo Quaresma da música, crítico mordaz da massificação cultural, segue dando de ombros à sua pouca popularização. “Eu continuo o mesmo, minha música não é deglutível pelo populacho, eu componho para quem nasce com alma, não componho para o chucro”, respondeu em conversa com Carta Maior por telefone de casa, no sertão baiano.
Elomar diz que parou de criar bodes (“virou onda e eu não sou surfista”, ralha desviando-se, por certo, de motivos de mercado) e continua afastado da música popular, compondo óperas que, no entanto, devem continuar passíveis de serem ouvidas como canções, como sempre foram na discografia dele (que soma 14 títulos). Fala com raiva do fim de um projeto que ele acalentou há anos com afinco e que durou apenas um ano. Elomar montou em Lagoa Azul, um diminuto município da região da Chapada Diamantina, uma escola de música que pretendia ser um centro estudioso e executante da “música culta brasileira”, como ele trata gente como Alberto Nepomuceno, Luiz de Aquino, Camargo Guarnieri, Villa-Lobos, Carlos Gomes, Francisco Mignone e que tais. A escola iria, num segundo momento, voltar-se a compositores de concerto da América Latina. Por que acabou? “Acabou porque o terceiro mundo só existe para copiar o norte-americano, aqui só presta o que a mídia dita”, voltou a maldizer o velho Elomar informando que funcionou a escola enquanto agüentou, “na tora”.
Sobre os relançamentos, Elomar diz que só fez porque seu público sempre pedia as reedições e por ser com a Kuarup, gravadora que lançou os discos que o tornaram mais conhecidos. O empurrão final nas negociações aconteceu quando ele soube que suas músicas ganharam compilações piratas. Ele bufa, engraçado, ao comentar. “Teve um viado de São Paulo que botou 18 músicas minhas num CD aí com esse tal de MP3, 18 intérpretes, com gente até do Chile… até que o nome não ficou de todo ruim, ‘Elomariando’… é uma estultice”, disse entre pausas mitigadas numa conversa dura, mas cortês. A produção, conta, não pára, nunca parou, mas mostra-se reticente em botar as boas novas em disco. Diz ter 18 horas de música pronta para gravar, apenas em partituras, a maioria óperas. “Acho que vou ter que pirografar minhas óperas, tô pondo em partituras para um monolito para as próximas gerações”, diz em tom de galhofa.
Parte dessa produção é escoada nos poucos e raros shows que Elomar faz Brasil afora. Leva sempre o filho João Omar, talentoso arranjador que ajuda a organizar a obra do pai. Algumas das primeiras peças recuperadas nos novos discos, diz Elomar, são relidas nesses shows, às vezes com novos arranjos. O projeto escolar de Elomar minguou, mas não o apreço dele pela educação musical das crianças do sertão que o cerca. Ele volta a sorrir ao falar da formação de um coro infantil que organiza agora em Lagoa dos Patos, outra das cidadezinhas incrustadas no sertão baiano de onde Elomar nunca saiu. “É o Puela Domini, uma beleza”, derrete-se sobre o corinho o “velho bode”, inspirador de dois famosos grafismos de Henfil (Graúna e o velho Francisco Orelhana).
OS DISCOS DE ELOMAR
“Na Quadrada das Águas Perdidas”
Primeiro disco independente de Elomar, condensa toda a força de sua poética discursiva. É só ele cantando acompanhado do próprio violão arpejante e concertista (em algumas há o apoio de percussão e flauta). Gravado em 1979 na Bahia e lançado em São Paulo com apoio de Marcus Pereira, saiu como álbum duplo. Estão nele clássicas canções como “Arrumação”, “Campo Branco”, “Curvas do Rio” e as árias que integram as seminais óperas populares dele, como “Auto da Catingueira” e as agruras do “Tropeiro Gonsalim”. São 20 faixas compiladas dos dois LPs originais que trazem o encarte completo e as belas pinturas dos artistas Orlando Celino e Juracy Doréa. Xangai e Dércio Marques dividem vozes com Elomar em algumas faixas.
“Cartas Catingueiras”
Outro dos duplos independentes lançados por Elomar, este disco foi gravado em São Paulo em 1982 e descreve, de novo ao violão e voz, o périplo retirante de um “cantingueiro” numa megalópole. São 13 canções e cinco peças de violão-solo. Junta outras peças importantíssimas do repertório do menestrel como “Faviela”, “O Peão na Amarração”, “Corban”, “Cantiga do Estradar” e “Seresta Sertaneza”. No livreto, voltam as cartas que descrevem o contexto de cada música. No texto de apresentação, a professora Jerusa Pires Ferreira, doutora em Sociologia da Literatura pela USP, explica como Elomar “alinhava” carta de novela medieval (as “Cartas Catinngveiras”) com a literatura de cordel e o falar sertanejo brasileiro.
“Arias Sertânicas”
No início dos aos 90, quando se concentrava mais em suas óperas, Elomar gravou este álbum, totalmente dedicado a estas peças. São dez faixas registradas apenas com o filho João Omar ao segundo violão e segunda voz. Juntos, pai e filho, refazem momentos especiais das óperas “A Carta” (sete faixas), “O Retirante” (duas faixas) e “Casa das Bonecas” (uma faixa). Soam como moderníssimas peças de câmera com um sotaque barroco. No livreto, voltam as explicações de praxe e as maravilhas de pinturas de Orlando Celino. O site da gravadora mostra este disco já esgotado, mas a assessoria diz que novas tiragens estão a caminho.
Preço médio de cada CD: R$ 28,00).
OS DISCOS DE XANGAI
“Qué Qui Tu Tem Canário”
Xangai é um dos melhores cantores da música popular nordestina. Provou isso desde esse primeiro disco independente, lançado em 1981. Cercado de grandes instrumentistas e compositores, Xangai gravou 10 faixas que homenageiam as belezas naturais do sertão nordestino (quiçá de qualquer dos nossos sertões). “Cantoria do Galo”, por exemplo, tem o ponteio das violas caipiras de Almir Sater e Zé Ramalho, mais o violoncelo de Jacques Morelenbaum. Mostra também destreza na composição, feitas em parcerias com Capinam, Hélio Contreiras, Jatobá (do clássico “Matança”) e Ivanildo Villanova (grande cordelista do nordeste). De Elomar, Xangai gravou ao violão próprio e o cello de Morelenbaum “Curvas do Rio” e musicou (com Hélio Contreiras) um poema de Cecília Meireles (“Os Carneirinhos”).
“Eugênio Avelino – Xangai”
Segundo disco independente de Xangai, gravado em Salvador entre 1989 e 1990, retomou muitos de seus parceiros do primeiro álbum e expandiu outras. O pai João Rodrgues (Jany) abre e fecha o disco com uma sanfoninha pé de bode (oito baixos) em curtos temas instrumentais. São 12 faixas e Xangai gravou o goiano Juraildes da Cruz pela primeira vez aqui. Em companhia do próprio “Jura” no forrõ “Fuzuê na Taboca”. Com novos parceiros, Xangai fez música com Kátia de França e Ismael Clemente (“Djaniras”), Antonio Carlos Marques (“Fé na Santa Sagrada Escritura”) e Salgado Maranhão (“Mistura” e “Punhos da Serpente”). É neste disco que Xangai gravou também uma raridade na carreira de Elomar, “O Samba do Jurema”, um partido alto no capricho. Dentre os músicos convidados, de novo feras como Jacques Morelenbaum, Paulo Moura, Armandinho e Oswaldinho do Acordeon.
“Dos Labutos”
Produzido um ano depois de Eugenio Avelino – Xangai, este é o terceiro disco independente de Xangai e ele volta incrementar seu som com a inclusão de naipes de sopros, inexistentes no anterior. A música expande também para o samba-tradição com “Bahia de Calça Curta” (de Hélio Contreiras), mas a temática de Xangai segue intocável nas coisas do Brasil (natureza, gente, costumes). Neste disco, Xangai volta a encontrar Juraildes da Cruz em duas músicas: uma delas feita a quatro mãos, na canção “Imbuzeiro dos Duendes “(a outra é “Pela Luz dos Dias”, só de “Jura”). De mansinho, Xangai foi se revelando também o melhor intérprete de Juraildes. A faixa-título é outra das grandes “árias” do “Auto da Catingueira” de Elomar. José Carlos Capinam assina a apresentação do CD e diz que Xangai tem “canto e voz que parecem ter estudo que não tiveram. Foi ouvindo rádio e auto-falante, aboios, riachos e acauãs que ficou com esse afino de voz”. Preço médio de cada CD: R$ 20,00.
(Por Edson Wander – Acorde – agenciacartamaior.com.br)
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