Terceirização é ilegal e Bacen está extrapolando seu papel
O juiz trabalhista Grijalbo Fernandes Coutinho é titular da 19ª Vara do Trabalho do TRT da 10ª Região (Distrito Federal e Tocantins) e tem uma intensa atuação da defesa dos direitos trabalhistas. Com especialização em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp (Cesit), ele desenvolve também um trabalho acadêmico e acaba de lançar seu sétimo livro, que tem especial interesse para os bancários, não só pelo tema, mas também pelo momento atual. Em “Terceirização bancária no Brasil”, lançado pela editora LTr, Grijalbo traça o histórico da terceirização, inclusive com uso dos correspondentes bancários, analisando o modelo atual e a legislação em vigor.
Além de discutir a questão estritamente legal, o magistrado surpreende por abordar questões humanistas, ressaltando que o trabalho decente é um direito humano fundamental. Nesta linha de raciocínio, a precarização do trabalho é especialmente ofensiva. “A terceirização ofende os direitos humanos porque a dignidade do trabalhador fica comprometida”, entende Grijalbo.
A postura do juiz é muito clara: a terceirização é nociva e deve ser combatida. “Mais da metade da categoria está na ilegalidade, porque estes trabalhadores realizam atividades bancárias, mas não são bancários do ponto de vista formal. Hoje, isso dificulta até mesmo nas greves, porque os terceirizados fazem o serviço dos bancários que estão parados”, pondera o magistrado. “Os bancos devem assumir o lugar dos correspondentes, e é preciso que os bancários se aproximem dos informais para trazê-los para esta luta”, defende Grijalbo.
O magistrado esteve no Rio de Janeiro no dia 08 lançando seu último trabalho e deu uma palestra no auditório do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro. Na ocasião, ele concedeu à Federação a seguinte entrevista:
Por que escolher o setor bancário para seu estudo sobre terceirização?
Na minha experiência como magistrado pude observar um crescente número de ações trabalhistas envolvendo bancários. Não tenho pesquisas, mas, pelo que vejo nos processos que recebo, 50 a 60 % dos processos tem alguma relação com terceirização. O sistema financeiro é um dos que mais utiliza a terceirização. O que mais chamou minha atenção durante os estudos foi o papel do Banco Central exercido nos últimos quarenta anos, com maior destaque nos últimos dez, funcionando como uma espécie de legislador das relações entre os bancários e os bancos. O Bacen, com várias resoluções, editadas desde 1972, acabou por legitimar a terceirização bancária. O faz de maneira camuflada, como se estivesse apenas fiscalizando a atividade bancária, que é uma tarefa constitucional sua. Mas, na prática, as resoluções do Banco Central resultam na criação de “normas jurídicas sobre relações de trabalho”, o que, evidentemente, não é tarefa dele.
O movimento sindical pleiteia que seja ampliado o horário de atendimento com instauração de dois turnos de trabalho. Quando se coloca esta reivindicação em mesa de negociação, a primeira coisa que os banqueiros dizem é que determinar isso é tarefa do Banco Central e não pode ser tratado em uma negociação trabalhista. Seria legítimo que o Bacen interferisse nisso?
Este é o papel do Bacen: fiscalizar a atividade bancária e autorizar funcionamento de bancos nos mais diversos locais. O Bacen pode decidir que cada supermercado tenha um caixa para serviços bancários. Em tese, ainda que isso não seja recomendável, o Banco Central pode determinar que o serviço bancário seja expandido, para que toda cidade com quatro, seis mil habitantes, tenha algum tipo de serviço. Também pode determinar que os bancos tenham um horário de atendimento mais longo. Os bancos estariam disponíveis por, por exemplo, oito ou dez horas. O que não pode é dizer que tipo de relação haverá entre os trabalhadores e os bancos. Não pode dizer que, para exercer suas atividades, podem contratar terceiros, porque isso é interferir nas relações de trabalho. E a Constituição reserva ao Congresso Nacional a tarefa de legislar sobre Direito do Trabalho para qualquer segmento. Em tese, o Bacen pode legislar sobre o horário de atendimento, mas não pode dizer que a jornada do bancário tem que ser de sete, oito horas, não é o seu papel, nem pode autorizar a contratação de terceiros pelos bancos para a execução de serviços. Não é dizer, como disse o deputado, que mudar a legislação do correspondente bancário é voltar no tempo, como se fosse voltar a usar a máquina de datilografia. Não, todos estes serviços que estão nas farmácias, nas panificadoras, nos supermercados – pode-se até discutir a questão da segurança, se é viável ter serviços bancários nestes locais – mas tudo isso pode continuar existindo. O que não é dado ao Banco Central é determinar que tipo de relação vai haver entre os trabalhadores terceiros e os bancos. O que o Bacen tem feito, na verdade, é permitir a instalação de correspondentes bancários mediante terceirização.
O Bacen publicou recentemente resoluções que tornam mais elástica a legislação dos correspondentes bancários, inclusive permitindo que os próprios bancos tenham seus próprios correspondentes. Isso mexe com as relações de trabalho, já que amplia a terceirização. O Bacen está extrapolando sua função quando faz isso?
Já vem extrapolando há muito tempo. Mas, quanto a este aspecto, de permitir os correspondentes próprios, o BACEN só legitimou o que já acontecia na prática. Os bancos já tinham suas financeiras e seus correspondentes. Isso não é novidade. Mas foi só a legitimação de uma prática que eu considero ilegal.
Originalmente, o correspondente bancário teve como objetivo levar o serviço bancário onde não havia. E o movimento sindical dos bancários nunca foi contra isso. Mas em cidades grandes temos um correspondente bancário em cada esquina. E os bancos instruem seus funcionários a encaminhar clientes para as lotéricas, supermercados, e outras lojas que prestam serviços como correspondentes bancários. O correspondente precarizou não só o trabalho, mas também o atendimento. Há como rever esta legislação do correspondente para que seja resgatado este objetivo inicial?
Em primeiro lugar, cabe às entidades sindicais travarem esta luta do ponto de vista político. As terceirizações não vão ser banidas da noite para o dia pelo Judiciário. Vamos ser realistas, se os bancários não conseguirem barrar a terceirização com suas iniciativas políticas, não será apenas no campo do Judiciário que esta matéria pode ser banida. Em primeiro lugar o enfrentamento é político, como é qualquer outra medida que resulte em precarização das relações de trabalho.
Depois, e não menos importante, há espaço jurídico, na Constituição, nas normas internacionais, na CLT, há legislação muito substancial no sentido de não autorizar o que o Bacen vem autorizando nos últimos anos. Logo, diversas disputas judiciais devem ser travadas, no Supremo Tribunal Federal, com Ação Direta de Inconstitucionalidade, ações na Justiça do Trabalho, individuais e coletivas. Na minha interpretação estas normas do Banco Central são todas inconstitucionais e não podem existir. Para mim é muito clara a usurpação da competência do Congresso Nacional prevista na Constituição. Esta é a minha opinião e pode ser que não esteja de acordo com a da maioria dos operadores do Direito do Trabalho. Mas acho que são tão evidentes as ofensas à Constituição, há muito campo para mudar as resoluções do Bacen no sentido de que afetam o trabalho bancário. Para mim não há meio-termo: os correspondentes bancários, com este modelo, não podem existir. As suas atividades podem ser mantidas nas lotéricas, em todos os locais. Mas que assumam estas atividades os verdadeiros beneficiários desta prestação de serviços, que são os bancos. Não se quer, como disse o deputado, voltar no tempo. Se é importante ter um posto bancário avançado sob o nome de casa lotérica, ou qualquer outro, em todos os locais, que permaneçam. E que sejam criados tantos outros. Mas que assumam estas funções aqueles que possam responder do ponto de vista trabalhista.
Com a contratação de funcionários pela CCT dos bancários?
Evidente. Todos estes trabalhadores que estão trabalhando nos correspondentes devem ser incorporados ao sistema bancário, com observância das normas coletivas dos bancários. Estes trabalhadores terceirizados, que são hoje milhares no país, percebem 20 % a 30 % da remuneração dos bancários formais porque e não têm condições dignas de trabalho. São vítimas de assédio, doenças laborais. O que se quer na verdade não é eliminar estes milhares de trabalhadores, mas que eles sejam empregados das empresas para as quais, de fato, prestam serviço.
Além das resoluções do BC um projeto de lei de terceirização derruba a determinação da súmula 331 do TST que impede a terceirização nas atividades-fim. Este PL permite, inclusive, a terceirização nas atividades-fim. Este projeto é inconstitucional?
Totalmente. Viola as garantias dos trabalhadores previstas na Constituição: os direitos sociais, o princípio da dignidade da pessoa, o valor social do trabalho. No capítulo da Ordem Econômica e Social a propriedade deve cumprir uma função social. Há vários princípios na Constituição Federal que asseguram outro modelo. O modelo da terceirização constante neste projeto simplesmente aniquila as relações de trabalho pautadas pela ética. Ele cria um modelo de semi-escravidão. Isso é absolutamente incompatível com a Constituição. Também com todo um ordenamento jurídico, porque se cria um modelo em que o dono dos meios de produção não responde do ponto de vista trabalhista. Para que nasceu a legislação social e direito do trabalho? Foi para vincular duas figuras centrais: o trabalhador e o tomador do serviço, que é o dono dos meios de produção. Eu não tenho duvidas de que, se aprovada, esta malfadada proposta não passará no primeiro tribunal em que a matéria for discutida.
Fonte: Da Redação – FEEB-RJ/ES