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O que é arte?

Frei Betto *



Sabemos, hoje, reconhecer uma obra de arte? O que conta mais, a fama do artista ou a qualidade da obra? Quem decide o valor de uma obra, o prestígio alcançado por ela na mídia ou seus atributos estéticos?


O jornal Washington Post decidiu testar gosto e cultura artísticos do público. Levou um violinista para uma estação de metrô da capital dos EUA. Durante 45 minutos, ele tocou Partita para violino no. 2 de Bach; Ave Maria de Schubert; e peças de Manuel Ponce, Massenet e, de novo, Bach.


Eram oito horas de uma manhã fria. Milhares de pessoas circulavam pelo metrô. Quatro minutos após iniciar o concerto subterrâneo, o músico viu cair a seus pés seu primeiro dólar, atirado por uma mulher que não parou. Quem mais lhe deu atenção foi um menino que teria entre três e quatro anos de idade. Porém, a mãe o arrastou, embora ele mantivesse o rosto virado para o violinista enquanto se distanciava.


Durante todo o tempo do concerto improvisado, apenas sete pessoas pararam um instante para escutar. Cerca de vinte jogaram dinheiro sem deter o passo. Ao todo, trinta e dois dólares e dezessete centavos no pote a seus pés. Quando cessou a música, ninguém aplaudiu.


O músico era o estadunidense Joshua Bell que, dois dias antes, havia dado um concerto no Teatro de Boston, lotado de apreciadores que pagaram US$ 100 por um ingresso. Seu violino era um Stradivarius fabricado em 1713 e adquirido por quase US$ 4 milhões. Bell é professor no Massachusetts Institute Technology e na Royal Academy of Music de Londres.


Bell fez, em solo, a trilha sonora dos filmes O violino vermelho, que mereceu o Oscar, e Mulheres de lavanda. Sua primeira gravação, em 2003, pela Sony Classical, foi Romance of the violin, que vendeu 5 milhões de cópias.


Bell é um músico de prestígio internacional. No entanto, nessa sociedade neoliberal hegemonizada pelo paradigma do mercado, ele era um “produto” colocado na prateleira errada. Estava no metrô. Como se o fato de estar em local público tornasse sua música de menos qualidade. Estivesse um músico medíocre no palco do Teatro de Boston com certeza teria sido ovacionado.


Fica uma pergunta: temos prestado atenção na qualidade das coisas? Ou nossas cabeças são feitas pela mídia estimuladora do consumismo, que nos impõe gato por lebre?


Van Gogh jamais vendeu uma tela enquanto viveu, exceto a que seu irmão Theo, que era marchand, comprou na tentativa de ajudá-lo. Sem dinheiro para pagar o médico, o pintor presenteou-o com a tela Rapaz de quepe. O doutor, do alto de seu preconceito elitista, considerou que nada de valor poderia sair dos pincéis de um louco… Aproveitou o quadro para tapar um buraco no galinheiro de sua casa… Há pouco esta tela foi vendida por US$ 15 milhões!



* Frei Betto é escritor, autor do romance “Aldeia do Silêncio” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto






Copyright 2013 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

Fonte: Frei Betto

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Médicos cubanos no Brasil?

Frei Betto *



O Conselho Federal de Medicina (CFM) está indignado frente ao anúncio da presidente Dilma de que o governo trará 6.000 médicos de Cuba, e outros tantos de Portugal e Espanha, para atuarem em municípios carentes de profissionais da saúde. Por que aqui a grita se restringe aos médicos cubanos? Detalhe: 40 % dos médicos do Reino Unido são estrangeiros.


Também em Portugal e Espanha há, como em qualquer país, médicos de nível técnico sofrível. A Espanha dispõe do 7º melhor sistema de saúde do mundo, e Portugal, o 12º. Em terras lusitanas, 10 % dos médicos são estrangeiros, inclusive cubanos, importados desde 2009. Submetidos a exames, a maioria obteve aprovação, o que levou o governo português a renovar a parceria em 2012.


Ninguém é contra o CFM submeter médicos cubanos a exames (Revalida), como deve ocorrer com os brasileiros, muitos formados por faculdades particulares que funcionam como verdadeiras máquinas de caça-níqueis.


O CFM reclama da suposta validação automática dos diplomas dos médicos cubanos. Em nenhum momento isso foi defendido pelo governo. O ministro Padilha, da Saúde, deixou claro que pretende seguir critérios de qualidade e responsabilidade profissionais.


A opinião do CFM importa menos que a dos habitantes do interior e das periferias de nosso país que tanto necessitam de cuidados médicos. Estudos do próprio CFM, em parceria com o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, sobre a “demografia médica no Brasil”, demonstram que, em 2011, o Brasil dispunha de 1,8 médico para cada 1.000 habitantes.


Temos de esperar até 2021 para que o índice chegue a 2,5/1.000. Segundo projeções, só em 2050 teremos 4,3/1.000. Hoje, Cuba dispõe de 6,4 médicos por cada 1.000 habitantes. Em 2005, a Argentina contava com mais de 3/1.000, índice que o Brasil só alcançará em 2031.


Dos 372 mil médicos registrados no Brasil em 2011, 209 mil se concentravam nas regiões Sul e Sudeste, e pouco mais de 15 mil na região Norte.


O governo federal se empenha em melhorar essa distribuição de profissionais da saúde através do Provab (Programa de Valorização do Profissional de Atenção Básica), oferecendo salário inicial de R$ 8 mil e pontos de progressão na carreira, para incentivá-los a prestar serviços de atenção primária à população de 1.407 municípios brasileiros. Mais de 4 mil médicos já aderiram.


O senador Cristovam Buarque propõe que médicos formados em universidades públicas, pagas com o seu, o meu, o nosso dinheiro, trabalhem dois anos em áreas carentes para que seus registros profissionais sejam reconhecidos.


Se a medicina cubana é de má qualidade, como se explica a saúde daquela população apresentar, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), índices bem melhores que os do Brasil e comparáveis aos dos EUA?


O Brasil, antes de reclamar de medidas que beneficiam a população mais pobre, deveria se olhar no espelho. No ranking da OMS (dados de 2011), o melhor sistema de saúde do mundo é o da França. Os EUA ocupam o 37º lugar. Cuba, o 39º. O Brasil, o 125º lugar!


Se não chegam médicos cubanos, o que dizer à população desassistida de nossas periferias e do interior? Que suporte as dores? Que morra de enfermidades facilmente tratáveis? Que peça a Deus o milagre da cura?


Cuba, especialista em medicina preventiva, exporta médicos para 70 países. Graças a essa solidariedade, a população do Haiti teve amenizado o sofrimento causado pelo terremoto de 2010. Enquanto o Brasil enviou tropas, Cuba remeteu médicos treinados para atuar em condições precárias e situações de emergência.


Médico cubano não virá para o Brasil para emitir laudos de ressonância magnética ou atuar em medicina nuclear. Virá tratar de verminose e malária, diarreia e desidratação, reduzindo as mortalidades infantil e materna, aplicando vacinas, ensinando medidas preventivas, como cuidados de higiene.


O prestigioso New England Journal of Medicine, na edição de 24 de janeiro deste ano, elogiou a medicina cubana, que alcança as maiores taxas de vacinação do mundo, “porque o sistema não foi projetado para a escolha do consumidor ou iniciativas individuais”. Em outras palavras, não é o mercado que manda, é o direito do cidadão.


Por que o CFM nunca reclamou do excelente serviço prestado no Brasil pela Pastoral da Criança, embora ela disponha de poucos recursos e improvise a formação de mães que atendem à infância? A resposta é simples: é bom para uma medicina cada vez mais mercantilizada, voltada mais ao lucro que à saúde, contar com o trabalho altruísta da Pastoral da Criança. O temor é encarar a competência de médicos estrangeiros.


Quem dera que, um dia, o Brasil possa expor em suas cidades este outdoor que vi nas ruas de Havana: “A cada ano, 80 mil crianças do mundo morrem de doenças facilmente tratáveis. Nenhuma delas é cubana”.


 


* Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou”, recém-lançado pela editora Saraiva.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto.






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Fonte: Frei Betto

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Insustentabilidade dos agrotóxicos

Frei Betto *


O Brasil é o campeão mundial no uso de agrotóxicos no cultivo de alimentos. Cerca de 20 % dos pesticidas fabricados no mundo são despejados em nosso país. Um bilhão de litros ao ano: 5,2 litros por brasileiro!


Ao recorde quantitativo soma-se o drama de autorizarmos o uso das substâncias mais perigosas, já proibidas na maior parte do mundo por causarem danos sociais, econômicos e ambientais.


Pesquisas científicas comprovam os impactos dessas substâncias nas vidas de trabalhadores rurais, consumidores e demais seres vivos, revelando como desencadeiam doenças como câncer, disfunções neurológicas e má formação fetal, entre outras.


Aumenta a incidência de câncer em crianças. Segundo a oncologista Silvia Brandalise, diretora do Centro Infantil Boldrini, em Campinas (SP), os pesticidas alteram o DNA e levam à carcinogênese.


O poder das transnacionais que produzem agrotóxicos (uma dúzia delas controla 90 % do que é ofertado no mundo) permite que o setor garanta a autorização desses produtos danosos nos países menos desenvolvidos, mesmo já tendo sido proibidos em seus países de origem.


As pesquisas para a emissão de autorizações analisam somente os efeitos de cada pesticida isoladamente. Não há estudos que verifiquem a combinação desses venenos que se misturam no ambiente e em nossos organismos ao longo dos anos.


É insustentável a afirmação de que a produção de alimentos, baseada no uso de agrotóxicos, é mais barata. Ao contrário, os custos sociais e ambientais são incalculáveis. Somente em tratamentos de saúde há estimativas de que, para cada Real gasto com a aquisição de pesticidas, o poder público desembolsa R$1,28 para os cuidados médicos necessários. Essa conta todos nós pagamos sem perceber.


O modelo monocultor, baseado em grandes propriedades e utilização de agroquímicos, não resolveu e nem irá resolver a questão da fome mundial (872 milhões de desnutridos, segundo a FAO).


Esse sistema se perpetua com a expansão das fronteiras de cultivo, já que ignora a importância da biodiversidade para o equilíbrio do solo e do clima, fazendo com que as áreas utilizadas se degradem ao longo do tempo. Ele cresce enquanto há novas áreas a serem incorporadas, aumentando a destruição ambiental e o êxodo rural.


Em um planeta finito, assolado por desequilíbrios crescentes, a terra fértil e saudável é cada vez mais preciosa para garantir a sobrevivência dos bilhões de seres humanos.


Infelizmente não há meio termo nesse setor. É impossível garantir a qualidade, a segurança e o volume da produção de alimentos dentro desse modelo degradante. Não há como incentivar o uso correto de pesticidas. Isso não é viável em um país tropical como o Brasil, em que o calor faz roupas e equipamentos de segurança, necessários para as aplicações, virarem uma tortura para os trabalhadores.


Há que buscar solução na transição agroecológica, ou seja, na gradual e crescente mudança do sistema atual para um novo modelo baseado no cultivo orgânico, mantendo o equilíbrio do solo e a biodiversidade, e redistribuindo a terra em propriedades menores.


Isso facilita a rotatividade e o consórcio de culturas, o combate natural às pragas e o resgate das relações entre os seres humanos e a natureza, valorizando o clima e as espécies locais.


Existem muitas experiências bem-sucedidas em nosso país e em todo o mundo, que comprovam a viabilidade desse novo modelo. Até em assentamentos da reforma agrária há exemplos de como promover a qualidade de vida, a justiça social e o desenvolvimento sustentável.


Para fomentar esse debate e exigir medidas concretas por parte do poder público foi criada, em abril de 2011, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Dela participam cerca de 50 organizações, como a Via Campesina, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Federação dos Trabalhadores do Ramo Químico da CUT no Estado de São Paulo (FETQUIM). Confira o site na internet: www.contraosagrotoxicos.org


A campanha visa a conquista da verdadeira soberania alimentar, para que o Brasil deixe de ser um mero exportador de commodities (com geração de grandes lucros para uma minoria, e imensos danos à população), para se tornar um território em que a produção de alimentos se faça com dignidade social e de forma saudável.


A outra opção é seguir nos iludindo com os falsos custos dos alimentos, envenenando nossa terra, reduzindo a biodiversidade, promovendo a concentração de renda, a socialização dos prejuízos e a criação de hospitais especializados no tratamento de câncer, como ocorre em Unaí (MG), onde se multiplicam os casos dessa gravíssima doença, devido ao cultivo tóxico de feijão.


* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Barros, de “O amor fecunda o Universo – ecologia e espiritualidade” (Agir), entre outros livros.
www.freibetto.org  twitter: @freibetto.





Copyright 2013 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (
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Fonte: Frei Betto

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Ser mulher e Transcender

Giowana Cambrone Araujo *


A escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir, escreveu em certa feita que “Não se nasce mulher, torna-se mulher.” Essa máxima foi e me toca muito. Na época em que foi redigida, a autora traduzia para essas breves linhas que a opinião de que mulher é uma construção social. Se nasce menina, mas não necessariamente se é mulher. Somente com o contato da vida social que vai se aculturando, domesticando, aprendendo os comportamentos, condutas e afazeres que transformariam meninas em mulheres, ou pelo menos, em mulheres como a sociedade vê: mães, donas de casa, boas esposas, femininas, vaidosas e demais comportamentos tidos como femininos.


No entanto ser mulher vai muito além deste padrão. Há mulheres, que não se submetem ao controle do homem, e nem por isso deixam de ser mulheres. Há outras, que são totalmente independentes e não desejam ser esposas ou mães. Há ainda outras, que vivenciam a experiência de uma feminilidade standart, ou em stand by, que foge dos padrões de vaidade e beleza estéticas consideradas femininas, e que a sociedade transforma quase que em uma obrigação – nem todas tem paciência, para aturar horas de salão e compromissos estéticos semanais, para manter essa feminilidade imposta.


E também há aquelas mulheres que não nascem meninas. Sim, falo de travestis e transexuais. E são todas mulheres. Por que não seriam? O sexo biológico é determinado ali, quando o bebê nasce, e a sociedade impõe como se fosse o gênero certo, enquanto na verdade, a identidade de gênero é construída ao longo da vida. Então há mulheres que não nasceram meninas, mas que se tornaram mulheres.


Nascem com um sexo, mas sentem e se apercebem sendo de outro sexo. De outro gênero. Desde crianças não se sentem pertencentes aquele gênero que lhes são submetidas pela definição que lhe atribuem pela genitália. Algumas mais ousadas, logo na adolescência buscam evidenciar o desejo de ser e sentir-se mulher. Outras se aprisionam, naquela figura que não é, num corpo que não lhes pertencem.


Guerreiras, subvertem o gênero que lhes é imposto pela sociedade para buscarem a felicidade. Transformam os corpos, passando por vezes por enormes dores, para expressar a corporalidade com o qual se identificam. Se submetem aos tratamentos hormonais, que alteram o metabolismo do corpo e dos humores, para se aproximar mais da sonhada felicidade. E por muitas vezes, somente a cirurgia de readequação genital – procedimento longo e doloroso – podem transformar o corpo naquele que realmente almeja.


Muitas pessoas podem imaginar que é uma bobagem tudo isso, mas te convido para um exercício simples: imagine-se olhar o seu corpo em um espelho e ver um corpo do gênero diferente do seu. Imagine-se com um corpo invertido, trocado ao que realmente tem, e tente se colocar no lugar dessas mulheres. Ter na mente ser mulher e estar aprisionada em um corpo masculino é um sentimento de tortura, de não reconhecimento de si mesmo, de rejeição de si mesmo e que causa muita dor emocional e psíquica. E somente adequando o corpo ao que se vê, torna-se possível viver em paz e com menos sofrimento.


Digo menos, porque alivia, no entanto a sociedade estigmatiza de tal forma as mulheres trans – travestis e transexuais – que as tornam em seres invisíveis socialmente. A maioria é expulsa de casa, ou renegada pela família, não conseguem concluir os estudos por discriminação, sofrem todas as formas de preconceito e bullying, e violências diversas – psíquicas, de direitos, agressões físicas.


Nesse contexto, sobram a marginalidade social, a invisibilidade, e ganham a calçada para trabalhar, como prostitutas. Não se pode mais ver as mulheres trans como cidadãs de segunda classe, são pessoas dignas e merecedoras de direitos e respeito.


Direitos de mudança de nome e sexo, a tratamentos médicos dignos, ao uso dos nomes femininos e tratamentos adequados – principalmente em repartições públicas – o uso do banheiro feminino, oportunidade de estudo e emprego são somente algumas reivindicações que as mulheres trans lutam.


Mulheres trans, travestis ou transexuais, são ilhas cercadas de violências por todos os lados. Ajude a modificar essas concepções de preconceito e estigma. Travestis e transexuais são mulheres que transitam, transformam e acima de tudo TRANSCENDEM os próprios corpos para serem mulheres, mas sobretudo para serem FELIZES.



* Giowana Cambrone Araujo, é mulher transexual, bacharel em Administração de Empresas e Direito, advogada transexual no Estado do Rio de Janeiro. Pós-graduada em Direito Constitucional e mestranda em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Foi a primeira transexual a integrar o Conselho Nacional de Políticas Culturais.

Fonte: Por Giowana Cambrone Araujo

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Ser mulher e Transcender

Giowana Cambrone Araujo *


A escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir, escreveu em certa feita que “Não se nasce mulher, torna-se mulher.” Essa máxima foi e me toca muito. Na época em que foi redigida, a autora traduzia para essas breves linhas que a opinião de que mulher é uma construção social. Se nasce menina, mas não necessariamente se é mulher. Somente com o contato da vida social que vai se aculturando, domesticando, aprendendo os comportamentos, condutas e afazeres que transformariam meninas em mulheres, ou pelo menos, em mulheres como a sociedade vê: mães, donas de casa, boas esposas, femininas, vaidosas e demais comportamentos tidos como femininos.


No entanto ser mulher vai muito além deste padrão. Há mulheres, que não se submetem ao controle do homem, e nem por isso deixam de ser mulheres. Há outras, que são totalmente independentes e não desejam ser esposas ou mães. Há ainda outras, que vivenciam a experiência de uma feminilidade standart, ou em stand by, que foge dos padrões de vaidade e beleza estéticas consideradas femininas, e que a sociedade transforma quase que em uma obrigação – nem todas tem paciência, para aturar horas de salão e compromissos estéticos semanais, para manter essa feminilidade imposta.


E também há aquelas mulheres que não nascem meninas. Sim, falo de travestis e transexuais. E são todas mulheres. Por que não seriam? O sexo biológico é determinado ali, quando o bebê nasce, e a sociedade impõe como se fosse o gênero certo, enquanto na verdade, a identidade de gênero é construída ao longo da vida. Então há mulheres que não nasceram meninas, mas que se tornaram mulheres.


Nascem com um sexo, mas sentem e se apercebem sendo de outro sexo. De outro gênero. Desde crianças não se sentem pertencentes aquele gênero que lhes são submetidas pela definição que lhe atribuem pela genitália. Algumas mais ousadas, logo na adolescência buscam evidenciar o desejo de ser e sentir-se mulher. Outras se aprisionam, naquela figura que não é, num corpo que não lhes pertencem.


Guerreiras, subvertem o gênero que lhes é imposto pela sociedade para buscarem a felicidade. Transformam os corpos, passando por vezes por enormes dores, para expressar a corporalidade com o qual se identificam. Se submetem aos tratamentos hormonais, que alteram o metabolismo do corpo e dos humores, para se aproximar mais da sonhada felicidade. E por muitas vezes, somente a cirurgia de readequação genital – procedimento longo e doloroso – podem transformar o corpo naquele que realmente almeja.


Muitas pessoas podem imaginar que é uma bobagem tudo isso, mas te convido para um exercício simples: imagine-se olhar o seu corpo em um espelho e ver um corpo do gênero diferente do seu. Imagine-se com um corpo invertido, trocado ao que realmente tem, e tente se colocar no lugar dessas mulheres. Ter na mente ser mulher e estar aprisionada em um corpo masculino é um sentimento de tortura, de não reconhecimento de si mesmo, de rejeição de si mesmo e que causa muita dor emocional e psíquica. E somente adequando o corpo ao que se vê, torna-se possível viver em paz e com menos sofrimento.


Digo menos, porque alivia, no entanto a sociedade estigmatiza de tal forma as mulheres trans – travestis e transexuais – que as tornam em seres invisíveis socialmente. A maioria é expulsa de casa, ou renegada pela família, não conseguem concluir os estudos por discriminação, sofrem todas as formas de preconceito e bullying, e violências diversas – psíquicas, de direitos, agressões físicas.


Nesse contexto, sobram a marginalidade social, a invisibilidade, e ganham a calçada para trabalhar, como prostitutas. Não se pode mais ver as mulheres trans como cidadãs de segunda classe, são pessoas dignas e merecedoras de direitos e respeito.


Direitos de mudança de nome e sexo, a tratamentos médicos dignos, ao uso dos nomes femininos e tratamentos adequados – principalmente em repartições públicas – o uso do banheiro feminino, oportunidade de estudo e emprego são somente algumas reivindicações que as mulheres trans lutam.


Mulheres trans, travestis ou transexuais, são ilhas cercadas de violências por todos os lados. Ajude a modificar essas concepções de preconceito e estigma. Travestis e transexuais são mulheres que transitam, transformam e acima de tudo TRANSCENDEM os próprios corpos para serem mulheres, mas sobretudo para serem FELIZES.



* Giowana Cambrone Araujo, é mulher transexual, bacharel em Administração de Empresas e Direito, advogada transexual no Estado do Rio de Janeiro. Pós-graduada em Direito Constitucional e mestranda em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Foi a primeira transexual a integrar o Conselho Nacional de Políticas Culturais.

Fonte: Giowana Cambrone Araujo

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Verdes versus gentes: entenda o conflito da comunidade do Horto

Raquel Rolnik *


O Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, além de bairro chique e sede da Globo, é também palco de um dos conflitos que opõe hoje – indevidamente! – o direito à moradia e a preservação ambiental. No caso, trata-se do conflito entre o direito dos moradores da comunidade do Horto, que vivem ali há décadas, e a necessidade de o Jardim expandir e melhorar suas condições de pesquisa botânica e funcionamento. O núcleo de moradores teve origem na vila que abrigava funcionários de uma fábrica instalada no local no começo do século 19, e posteriormente, de trabalhadores do próprio Jardim Botânico, que foram autorizados pelo parque para residir na área, que é de propriedade da União.


Este caso é emblemático de um embate cada vez mais frequente entre a proteção do direito ambiental e do direito à moradia. A verdade é que esta contraposição é falsa. Muitas situações de conflito entre usos da terra podem e devem ser resolvidas com projetos urbanísticos e arquitetônicos que equacionem a plena realização destes direitos, com um olhar específico para cada caso. Entretanto, o que temos observado é uma enorme diferença de tratamento dos conflitos envolvendo o tema da preservação ambiental quando se trata de instituições, empresas ou moradias de alta renda e os moradores mais pobres. Enquanto para os primeiros vale a vista grossa – ou, no limite, as multas e compensações ambientais – os moradores pobres são sistematicamente removidos. Com pouco poder de disputa na esfera política, estas comunidades são definidas como “invasores” e, assim, constrói-se na opinião pública a justificativa para sua eliminação daquele lugar.


Neste caso do Jardim Botânico, um projeto desenvolvido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em conjunto com a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) busca superar conflitos entre essas esferas e compatibilizá-las, priorizando a manutenção das famílias no local. Este projeto procura regularizar o território, assegurando a preservação ambiental e, ao mesmo tempo, garantir o direito à moradia das famílias, realocando, na mesma região, as que estão em situação de risco ou cuja permanência de fato impacta nas condições de funcionamento do Jardim.


Considerando que essa é uma das áreas mais valorizadas do Rio de Janeiro, sei que os interesses em jogo são muitos e são poderosos. Mas espera-se que o interesse público prevaleça, reconhecendo suas múltiplas dimensões.



* Raquel Rolnik é urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada.

Fonte: Raquel Rolnik

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O sucesso da Fiscalização

Clemilce Carvalho *


A imprensa anunciou o resultado da arrecadação federal em janeiro de 2013: R$ 116 bilhões em sua totalidade, recorde alcançado inobstante os demais índices da economia. Realmente consagrador, para quem trabalha no dia-a-dia, interna ou externamente, na área de auditoria fiscal, buscando nas empresas, de porta a porta, os recursos para atender os programas de Seguridade Social do Estado brasileiro. Esses briosos agentes públicos, em conjunto, não se têm furtado ao trabalho árduo de recuperação de créditos e de incentivo ao recebimento do potencial de arrecadação.


O resultado auspicioso, na realidade, supera o que se vê a primeira vista. O crescimento real superior a 6 % , se considerado janeiro de 2012, seria bem maior nas condições anteriores de cobrança e pagamento.


O peso das desonerações sobre a folha de pagamento, que se vem autorizando, recai sobre a receita destinada ao pagamento de benefícios (INSS), sangrando profundamente o orçamento da Seguridade Social. Da maneira como as coisas vão indo, em algum tempo, quiçá próximo, poderá haver insuficiência de recursos para os programas da área social. E o eventual déficit, se um dia houver, será resultado da adoção de medidas como essas, que vão sendo tomadas ao arrepio das disposições constitucionais, que alertam – como faz o artigo 201 da Carta Magna – para a obrigação do zelo para com o equilíbrio financeiro e atuarial das receitas da Previdência Social.


E é exatamente dessa receita, destinada ao pagamento dos benefícios, que se vão retirando valores, cada vez maiores, pela incorporação de mais e mais ramos de atividade econômica à farra da benesse da isenção de contribuição para o maior e mais importante sistema de cobertura social do país. Se as coisas continuarem nesse crescendo, vamos precisar fazer uma reforma constitucional para resolver o capítulo da Seguridade Social, talvez o mais discutido e avançado, consagrado em 1988.


Ou se dá um basta a esse processo predatório, ou, em pouco tempo, a obrigação contida no artigo 195, que preceitua a participação do ‘empregador, da empresa, da entidade a ela equiparada na forma da lei’ no financiamento da Seguridade, deixará de existir.


Não fossem as isenções, desonerações e outros desvios havidos ao longo de seus 90 anos, a nossa previdência pública teria hoje, reservado para seus segurados, um montante invejável de recursos, capaz até de prover outros programas públicos de governo voltados para os trabalhadores, ajudando ainda mais a economia interna do país. E que não se perca de vista: nenhum grupo de pensão ou assemelhado teria resistido por tanto tempo aos ataques às suas reservas.


O pior é que a sangria, hoje, já se anuncia sobre a COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), no intuito do barateamento dos itens da cesta básica. A medida, em tese, é correta: o trabalhador não pode, de fato, arcar com o peso escorchante dos tributos; porém não se pode atingir, sem consequências, o orçamento da Seguridade Social.


Pois que se mude o privilégio: libere-se do pagamento de IRPJ, de IPI e de outros tributos do Orçamento Fiscal! Deixem preservados os recursos voltados para a garantia do futuro dos segurados contribuintes!


Temos sugerido atenção, respeito e maiores oportunidades para o cidadão brasileiro. A ele, que garante as receitas necessárias ao Estado, se voltam os olhos dos administradores, cumprindo os direitos sociais, tão claros e estipulados na nossa Constituição: educação, saúde, trabalho, assistência social, moradia, lazer e todos os demais não podem ser reduzidos nem subtraídos, em favor de empresários, especuladores e tantos outros beneficiados e poupados nas medidas de ajuste que se vêm tomando.


Precisamos, cada vez mais, fazer uma cruzada de esclarecimento e resistência à dilapidação do que é o mais sagrado para os trabalhadores: a sua Seguridade Social.


 


* Clemilce Carvalho é Auditora-Fiscal da Receita Federal do Brasil
[email protected] e clemilcecarvalho.blogspot.com.br

Fonte: Clemilce Carvalho

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Renzo Rossi, santo da solidariedade

Frei Betto *


Ensina a catequese que alguns cristãos lograram o impossível: viver segundo a vontade de Deus. Tiveram vida coerente, praticaram virtudes heroicas, deram testemunho do Evangelho como discípulos exemplares de Jesus. São chamados santos.
Com o tempo descobri que nem tudo que reluz é ouro. Há inúmeros santos anônimos que jamais serão canonizados, e há santos que merecem a glória dos altares e, no entanto, tiveram atitudes nada condizentes com os valores evangélicos.


Aliás, os processos de canonização custam caro, e são inacessíveis àqueles que viveram para os pobres, como Padre Cícero, Dom Helder Câmara, Dom Luciano Mendes de Almeida, Dom Oscar Romero, para citar apenas alguns clérigos.


No dia 25 de março, perdemos um santo real, incontestável, de quem tive a graça de ser amigo: padre Renzo Rossi, italiano de Florença, jesuíta como o papa Francisco. No sábado, 23, eu deveria visitar Renzo no hospital. Como a Universidade de Florença cancelou minha palestra, deixei de abraçar o amigo de 87 anos que padecia de câncer no pâncreas.


Renzo era movido a uma alegria exuberante. Parecia dotado de mil baterias. De aparência jovial, nunca o vi triste nem mesmo carrancudo. Falava alto, tinha por hábito tocar seus interlocutores e tratá-los com irreverência. Nada parecia abatê-lo nem constrangê-lo.


Em 1965 ele veio integrar, no Brasil, a missão jesuíta de Salvador. Um ano após o golpe militar. Atuava junto aos pobres sem se envolver com a militância em luta contra a ditadura.


Em 1969 nós, frades dominicanos, fomos presos, acusados de subversão. Ao todo, sete frades. Um deles, Giorgio Callegari, era italiano de Veneza. No ano seguinte, ao retornar de férias à Itália, Renzo encontrou a mãe de frei Giorgio. Ela pediu-lhe que, ao retornar ao Brasil, fosse a São Paulo visitá-lo.


Padre Renzo veio ao Presídio Tiradentes, onde nos encontrávamos presos em companhia de quase 200 companheiros (Dilma Rousseff se encontrava na ala feminina). Frei Tito de Alencar Lima tinha sido reconduzido à tortura em fevereiro de 1970. Renzo ficou impressionado ao vê-lo. Decidiu que, dali em, diante, sua missão seria apoiar as vítimas da ditadura.


Ao longo de seis anos, Renzo visitou 14 cadeias brasileiras que abrigavam prisioneiros políticos. Como ele não tinha nenhum vínculo com política, e aparentava ser um cristão destituído de ideologia, não levantou suspeitas.


Renzo não era “neutro”. Estava ali para servir às vítimas, não aos algozes. Tanto que, por ocasião de uma greve de fome nacional, quando todas as comunicações entre presídios foram interrompidas, a repressão cometeu o equívoco de permitir que aquele sacerdote insuspeito visitasse os grevistas. Talvez pensasse que suas preleções poderiam demover os prisioneiros do “gesto suicida”. Mal sabia a ditadura que Renzo servia de pombo-correio entre os cárceres, passando informações e alento.


Em Salvador, foi preso um jovem de 18 anos: Theodomiro Romeiro dos Santos. Já no carro de polícia, sacou seu revólver e atingiu três agentes, matando um quarto, um sargento da Aeronáutica. Renzo passou a visitá-lo. Em 1971, Theodomiro foi condenado à pena de morte, mais tarde comutada em prisão perpétua. Veio a anistia, em 1979, e o jovem marcado para morrer não foi beneficiado.


Renzo temia, como todos nós, pela vida de Theodomiro, isolado em um cárcere e alvo do ódio da ditadura que, aos poucos, desmoronava. Era preciso libertar Theodomiro. Isso implicava subornar carcereiros e policiais.


Renzo voltou à Europa e levantou os recursos. Conseguiu tirar Theodomiro da prisão e do Brasil, conforme relato detalhado no inestimável livro de Emiliano José, “As asas invisíveis do padre Renzo”, que em breve chegará às telas de cinema.


Renzo se foi. Seu exemplo fica. Exemplo de algo que constitui a essência de nossa condição humana e, no entanto, nada fácil de ser praticado: a solidariedade. Jesus ensinou que isso, que é tão humano, é também, divino aos olhos de Deus. E quando se traduz em arriscar a própria vida para salvar outras vidas se chama amor.



* Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org twitter:@freibetto.






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Fonte: Frei Betto

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Mística, ética e ecosofia

Frei Betto *


Há estreito vínculo entre religião e ecologia. Os calendários litúrgicos refletem os ciclos da natureza. Toda religião expressa o contexto ambiental que lhe deu origem.


Os hebreus e, em geral, os povos semitas, viviam em regiões inóspitas, desérticas, o que os levou a desenvolver o senso do sagrado centrado na transcendência. Onde a natureza é exuberante, como nos trópicos, se acentuou a imanência do sagrado. Todo o entorno geográfico e climático influi na relação religiosa que se tem com a natureza.


O cristianismo teve sua origem em áreas urbanas. Via a natureza à distância, como algo estranho e adverso. A palavra pagão, que englobava todos os não cristãos, significa etimologicamente “habitante do campo”.


Todas as tradições religiosas indígenas mantêm estreito vínculo com a natureza. São teocósmicas, o divino se manifesta no cosmo e em seus componentes, como a montanha (Pachamama).


Hinduísmo e taoísmo cultuam a natureza. Já o confucionismo e o budismo são tradições mais antropocêntricas, voltadas à consciência e às virtudes humanas.


O islamismo mantém uma relação singular com a natureza. É uma religião semítica, cultua a transcendência de Alá, mas conserva, como o judaísmo, estreito vínculo com o entorno ambiental, o que se reflete na distinção entre alimentos puros e impuros, jejum, cuidado com a higiene pessoal etc.


As religiões aborígenes (ab-origem = que estão na origem de todas as outras) não separam o humano da natureza. Há um forte sentido de equilíbrio e reciprocidade entre o ser humano e a Terra. O que dela se tira a ela deve ser devolvido.


Entre as grandes tradições religiosas é o hinduísmo que melhor cultiva essa harmonia. Toda a Índia respira veneração sagrada por rios, animais, árvores e montanhas. A veneração pelas vacas reflete esse senso de equilíbrio, pois se trata de um animal do qual se obtém muitos produtos, do leite e seus derivados ao esterco como fertilizante, e isso é mais importante do que comê-las.


Três grandes desafios, segundo o místico catalão Javier Melloni, estão inter-relacionados: a interioridade, a solidariedade e a sobriedade. A interioridade nos impele à via mística; a solidariedade, à ética; e a sobriedade à preservação ambiental.


Nossa civilização estará condenada à barbárie se as pessoas perderem a capacidade de interiorização, de fazer silêncio, de meditar, de modo a saber escutar as necessidades do próximo (solidariedade) e o grito agônico da Terra (sobriedade).


Urge submeter a ecologia à ecosofia, a sabedoria da Terra, na expressão de Raimon Panikkar. Não se trata de impor a razão humana sobre a natureza (eco-logos), mas sim de dar ouvidos à sabedoria da Terra, captar o que ela tem a nos dizer com seus ciclos, suas mudanças climáticas e até com suas catástrofes.


Embora haja avanços em nosso comportamento, graças ao crescimento da consciência ecológica (reciclagem, uso da água, produtos ecologicamente corretos etc), ainda estamos atrelados a um modelo civilizatório altamente nocivo à saúde de Gaia e dos seres humanos.


Continuamos a consumir combustíveis escassos e poluentes e, na contramão de todo o movimento ecológico, submergimos à onda consumista que produz, a cada dia, perdas significativas da biodiversidade e toneladas de lixo derivado de nosso luxo.


Três grandes mentiras precisam ser eliminadas de nossa cultura para que o futuro seja ecologicamente viável e economicamente sustentável: 1) Os recursos da Terra não são suficientes para todos; 2) Devo assegurar os meus recursos, ainda que outros careçam dos mesmos; 3) O sistema econômico que predomina no mundo, centrado na lógica do mercado, e o atual modelo civilizatório, de acumulação de bens, são imutáveis.


Nosso planeta produz, hoje, alimentos suficientes para 12 bilhões de pessoas, e é habitado por 7 bilhões. Portanto, não há excesso de bocas, há falta de justiça.


Não haverá futuro digno para a humanidade sem uma economia de partilha e uma ética da solidariedade.


Durante milênios povos indígenas e tribos desenvolveram formas de convivência baseada na sustentabilidade, na harmonia com a natureza e com os semelhantes. Como considerar ideal um modelo civilizatório que, dos 7 bilhões de habitantes do planeta, condena 4 bilhões a viverem na pobreza ou em função de suas necessidades animais, como se alimentar, abrigar-se das intempéries e educar as crias?



* Frei Betto é escritor, autor do romance “Aldeia do Silêncio”, que a Editora Rocco faz chegar às livrarias este mês.
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Ataque sem precedentes ao sindicalismo nas Américas

Por Artur Henrique *


Não e só na Europa que o Estado de Bem-Estar social, os sindicatos e os direitos dos trabalhadores vêm sendo atacados. Em recente viagem por vários países das Américas pudemos ver de perto a difícil situação dos sindicatos progressistas e democráticos, atacados sistematicamente por governos de direita e empresas.


Nos EUA, em diversos estados governados pela direita, ou no Canadá, que tem um governo conservador, assistimos uma campanha contra a existência dos sindicatos. A mudança que vem sendo proposta na legislação sindical daqueles países tem como tema: “O Direito ao Trabalho”.


À primeira vista, para nós brasileiros, ler essa frase pode nos fazer acreditar que se trata de uma campanha para fortalecer a luta dos trabalhadores (as). Mas se trata na verdade da mais bem orquestrada campanha já realizada contra a existência dos sindicatos. E com o apoio institucional de governos, e com o uso de ferramentas de marketing e publicidade. Ou seja, uma campanha aberta, nada velada.


A campanha tem como objetivo reforçar o individualismo dos trabalhadores e atacar o papel dos sindicatos e das negociações coletivas. O tal “direito ao trabalho” quer dizer: você tem direito a trabalhar sem a “interferência” de um sindicato; você tem o direito de trabalhar quanto tempo você quiser, sem precisar cumprir uma jornada máxima; você tem o direito de “trabalhar” durante suas férias sem ser pago por isso; você tem o “direito” de trabalhar logo depois de ter um (a) filho (a), se esta for a “sua vontade”, e por aí vai. Ou seja, a mensagem é de que o sindicato atrapalha, não devia existir. A negociação coletiva e os direitos dos trabalhadores deveriam ser decididos por você, individualmente. “Nós” não precisamos “deles”, dos sindicatos, vamos acabar com “eles”. Em se tratando de uma nação em que a legislação trabalhista é totalmente precária – lá não existe, por exemplo, licença-maternidade –, isso configura um escândalo, no mínimo.


O mesmo ataque acontece no México e na Nicarágua, de uma forma um pouco diferente – com toques de filme de gângster – mas com o mesmo objetivo. Nesses países, ouvimos em todos os lugares o conceito de “acordos de proteção”. Mais uma vez, somos levados a imaginar que poderia ser uma campanha em favor dos trabalhadores.


Mas não é nada disso. Trata-se de “proteção” para as empresas contra os sindicatos livres, democráticos e representativos. Se você for um empresário que tem interesse em instalar uma fabrica ou comercio nesses países, pode procurar antecipadamente um “protetor” e fazer um acordo em troca de dinheiro ou outros favores.


Esse “protetor” pode ser um advogado, um escritório, ou mesmo um sindicato fantasma, pelego, que vai “te proteger”, inclusive de forma física e armada, se for o caso, do “perigo” dos sindicatos combativos. De forma fictícia, antes de as operações comerciais terem início, a futura empresa fecha acordos ditos coletivos, a portas fechadas, com esses “protetores”, o que inviabiliza qualquer ação sindical real quando o empreendimento começar a funcionar.  Isso significa falta de direitos, de proteção, de salários dignos.


No México, alguns casos são históricos e simbólicos desse ataque:


No caso dos eletricitários, existia um acordo coletivo para os 40 mil trabalhadores da empresa estatal de energia firmado com o sindicato nacional da categoria, um dos mais importantes do país. O governo então resolveu mudar o nome da empresa (com isso a empresa nova deixa de ter sindicato), demitir todos os trabalhadores e passar a fazer o serviço com outras empresas, com o único e claro objetivo de destruir o sindicato, que continua na luta jurídica e política para recuperar seus direitos.


Já no sindicato dos mineiros, a postura de empresas e governos conservadores e de direita levou à morte de quatro dirigentes sindicais e a expulsão do país do presidente da entidade, que há sete anos vive no Canadá. A denúncia está ainda aguardando encaminhamento na Comissão de Direitos Humanos da OEA e, portanto, a luta continua.


Em todos esses países, centrais sindicais como a UNT-Mexico, a CLC do Canadá, a AFL-CIO dos EUA, filiados à CSA (Confederação Sindical das Américas) e sindicatos independentes vêm se mobilizando para contra-atacar, construir unidade e fortalecer a luta dos trabalhadores e de seus sindicatos. São campanhas publicitárias, pressão sobre deputados e senadores nas suas bases eleitorais, mobilizações de rua, etc.


Para além da solidariedade internacional, que é fundamental nessa luta, a CUT, através do IC-CUT (Instituto de Cooperação da CUT) propôs, em todos os encontros que tivemos com nossos parceiros nesses países, que devemos realizar uma grande campanha continental em defesa da liberdade de organização sindical.


Devemos construir uma grande unidade em torno dessa bandeira, da mesma forma que por razões diferentes nos juntamos na luta vitoriosa contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas).


Atuar juntos na OIT, na Comissão de Direitos Humanos da OEA, nas reuniões do G-20, nos encontros internacionais de ministros do Trabalho, de presidentes dos nossos países, criar tribunais internacionais independentes, denunciar empresas e fazer uma lista “suja” daquelas que atacam os direitos dos trabalhadores em todo o mundo.


É uma luta em defesa da democracia e da liberdade. Afinal, todo trabalhador tem direito de se organizar livremente em um sindicato e ter direito à negociação coletiva para melhorar as condições de trabalho e de vida, conforme disposto na Convenção 87 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).


Temos que praticar a solidariedade internacional e reafirmar que enquanto um trabalhador e seu sindicato estiverem sendo atacado no mundo, não descansaremos e estaremos juntos na luta para defendê-lo.


 


* Artur Henrique é secretário-adjunto de Relações Internacionais da CUT, presidente do IC-CUT e vice-presidente da CSA

Fonte: Artur Henrique