SÃO PAULO – Neste domingo (8), o jornal Folha de S.Paulo publicou dados da última pesquisa Datafolha acerca da opinião da população sobre mudanças na legislação que autoriza o aborto no Brasil. Pela lei em vigor, a interrupção da gravidez só é autorizada em casos de estupro e quando a vida da gestante corre risco. O levantamento divulgado, realizado no final de março, mostra que 65% dos entrevistados defendem a manutenção da lei atual, sem ampliação da autorização para outras situações de gravidez. Segundo o instituto de pesquisa, este é o maior índice verificado desde que a pesquisa começou a ser feita, em 1993. Há 14 anos, 54% da população defendiam a manutenção da lei. Em paralelo, 23% apoiavam que o aborto fosse legalizado em outros casos. Hoje, este número caiu para 16%.
Na avaliação de entidades que compõem o movimento feminista, os resultados refletem a visão conservadora crescente na sociedade brasileira e os resultados das recentes articulações contra o aborto. No último dia 24 de março, mais de cinco mil pessoas participaram de uma manifestação em São Paulo, organizada pelo Movimento Nacional em Defesa da Vida, formado sobretudo por grupos religiosos, contra mudanças na legislação que regula a prática no país. O movimento se posiciona contrário ao Projeto de Lei nº 1135/91, em tramitação na Câmara dos Deputados, que permite o aborto em outras situações.O evento contou com a presença do padre Marcelo Rossi e teve como ícone uma criança de quatro meses que nasceu acéfala e que, contrariando as previsões médicas, ainda está viva.
“A forma ofensiva como esses grupos têm tratado a questão sensibiliza a população e ajuda na mudança de opinião”, avalia Sônia Coelho, integrante da SOF – Sempreviva Organização Feminista e da Marcha Mundial das Mulheres. “Mesmo na campanha eleitoral, a questão foi tratada desta forma e nós, dos movimentos sociais, e até os partidos de esquerda ficamos retraídos na discussão”, acredita.
Na opinião da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), muito desta disputa tem se dado através da grande mídia, que, em sua maioria, tem uma posição contrária a legalização do aborto. Para a educadora Carla Batista, secretária-executiva da AMB, muito espaço tem sido aberto aos setores mais conservadores, enquanto aqueles que se contrapõem e combatem a criminalização do aborto não encontram repercussão nos principais veículos de comunicação.
“A grande mídia tem um papel posicionado nessa história. E isso facilita que a questão do aborto seja encarada a partir de uma visão religiosa, faz com que o debate não seja levado pro campo laico, que é onde deve ser colocada a discussão de políticas públicas e de defesa dos direitos das minorias”, afirma. “Há muito dinheiro sendo investido para que este comportamento mais conservador da sociedade seja reconsiderado. Desde o início do governo Bush, por exemplo, o Estado norte-americano tem investido nesta questão não só dentro dos Estados Unidos. O Brasil está exposto a isso, e daí vemos um crescimento de organizações na sociedade que têm um grande poder de construir opinião porque tem mais acesso aos meios de comunicação do que os movimentos sociais”, explica Carla.
Cultura e acesso à informação – Um dos maiores desafios do movimento de mulheres é mudar a cultura da visão do aborto como crime. Segundo elas, no Brasil, quem faz e se submete a este tipo de intervenção é considerado assassino. “Por isso é normal que as pessoas se declarem contra o aborto. Quando, nas comunidades, iniciamos um diálogo com as mulheres sobre o assunto, a maioria se coloca contrária, mesmo que muitas já tenham feito ou tenham pessoas na família que fizeram. Elas entendem que praticaram algo errado porque isso está colocado na sociedade. Não têm nem a dimensão de que, em outros países, isso não é crime. Mas, a medida que vão discutindo, mudam de opinião”, explica Sônia Coelho.
A pesquisa do Datafolha faz recortes por escolaridade, renda e região do país que revelam que os maiores índices favoráveis à manutenção da lei atual que regula a prática estão concentrados na parcela da população com ensino fundamental, renda até cinco salários mínimos e moradora da região nordeste. Fica claro, portanto, que a cultura e o acesso à informação são determinantes na opinião dos brasileiros sobre o aborto.
A AMB cita o exemplo da própria mudança que aconteceu em relação ao aborto nos casos de estupro e de risco para a gestante. No final dos anos 80 e início da década de 90, quando os serviços de aborto legal – para esses dois casos – foram implantados, a maior parte da população era contrária à prática em qualquer situação. “Se hoje 65% da população acham que a lei deve continuar como está, é porque esses casos já são compreendidos pela população como um direito a ser garantido a todas as mulheres que queiram recorrer à interrupção da gravidez”, avalia Carla. “Antes não havia debate sobre isso, e a instalação dos serviços fez com que a sociedade mudasse de opinião”.
Na opinião da educadora, se o aborto em casos de anencefalia fosse legalizado, em alguns anos a visão da sociedade também mudaria em relação a este caso. “O fato de legalizar uma situação significa criar outra institucionalidade na sociedade pra dar resposta a este problema. Quando as pessoas começam a conviver com o resultado dessa mudança, há uma grande possibilidade de alteração no posicionamento da sociedade. A institucionalidade quebra a resistência, enquanto continuar tratando como crime cria barreiras”, diz.
Para a organização feminista Católicas Pelo Direito de Decidir, enquanto a lei continuar crimininalizando a decisão das mulheres de interromper uma gestação e não houver a regulamentação da prática, o Estado e os grupos contrários à alteração da lei continuarão empurrando as mulheres brasileiras para o aborto clandestino e para a morte.
Debate público – No mês passado, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou um projeto de decreto legislativo que propõe a realização de plebiscitos no país, incluindo uma consulta à população acerca da legalização do aborto. O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, também veio a público defender a idéia, a partir de uma visão do tema como uma questão de saúde pública, levantando os riscos para a vida das mulheres de uma interrupção feita em condições precárias. O debate, sempre polêmico, voltou à tona então na sociedade. Em Portugal, no início do ano, um plebiscito resultou na aprovação do aborto até a décima semana de gravidez.
Apesar de considerarem bastante positiva a iniciativa do ministro Temporão, de reabrir o debate a partir de outra perspectiva, as organizações do movimento feminista e de mulheres discordam do mecanismo para definição sobre este tipo de matéria.
“Um grande desafio que a democracia tem é como garantir o direito das maiorias em convivência com o das minorias; como fazer que o direito das minorias exista diante da maioria – que se manifesta, por exemplo, nos plebiscitos. A questão do aborto não é para uma decisão de maioria e por isso não deve ser levada para plebiscito. É um direito humano, fundamental, algo que não pode ser questionado pela população”, afirma Carta Batista, que também integra as Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, uma iniciativa de vários setores da sociedade civil que defendem a causa.
No dia 9 de maio, o papa chega a São Paulo para uma visita de cinco dias ao Brasil. Na mala, Bento XVI trará seu forte discurso conservador de criminalização do aborto, o que, para as feministas, pode resultar em maior sensibilização da sociedade contra a prática. A idéia, no entanto, não é partir para um enfrentamento direto – até porque a situação, em si, já é desfavorável ao grupos que defendem a legalização. Para as mulheres, a luta deve se dar de forma cotidiana, como já vem sendo feito. “Desconstruir todos os preconceitos e equívocos que existem em relação ao aborto é um trabalho permanente. E é isso que continuaremos a fazer, porque, quando o debate acontece de fato, as pessoas mudam seu entendimento”, conclui Carla Batista.
Fonte: Carta Maior – Por Bia Barbosa