Carta ao MST
EDUARDO MATARAZZO SUPLICY
Meu caro João Pedro Stédile, da Coordenação Nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra):
Com o sentimento de quem tem sido solidário ao MST desde a sua fundação, como amigo da causa da reforma agrária e da realização de maior justiça em nosso país, gostaria de externar minha sincera opinião sobre os últimos acontecimentos em Porto Alegre (RS). Acredito que o MST consegue obter muito mais apoio do povo brasileiro para sua causa sempre que utiliza meios pacíficos, não-violentos, e de respeito aos seres humanos e ao que tiver sido construído honestamente por outros.
Falo isso por causa do episódio ocorrido na semana passada, quando as companheiras do Movimento de Mulheres Camponesas e da Via Campesina destruíram as mudas de eucaliptos e as instalações do laboratório da Aracruz Celulose, no Rio Grande do Sul.
Bem sei que elas desejavam protestar contra um modelo de agronegócio que o MST tem criticado, uma vez que florestas homogêneas de eucaliptos para a produção de celulose podem prejudicar a biodiversidade. Também sei que essa atitude foi uma reação à destruição da aldeia indígena dos guaranis por tratores da Aracruz no Espírito Santo. Ou seja, agiram em solidariedade aos índios guaranis.
Reitero, entretanto, a recomendação que fiz quando, convidado pelo MST, em 10 de julho de 1999, administrei uma aula na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) para mais de mil jovens -de quase todos os Estados brasileiros- pertencentes ao movimento.
Dei de presente àqueles jovens a tradução que eu mesmo fiz de uma das mais belas orações da história da humanidade: “Eu tenho um sonho”, de Martin Luther King Jr., feita em 28 de agosto de 1963, em Washington, no dia em que foram comemorados os cem anos da abolição da escravidão nos EUA.
Naquela época, Luther King Jr. se preocupava com a necessidade premente da aprovação da Lei dos Direitos Civis e da Lei dos Direitos Iguais de Votação. Em muitos Estados do Sul dos EUA, não era permitido aos negros freqüentar os mesmos hotéis, restaurantes, escolas e banheiros ou usar os mesmos ônibus e calçadas que os brancos. Os negros nem sequer eram considerados cidadãos americanos, pois, em diversos Estados, não tinham o direito de votar, o que gerou movimentos de revolta, quebra-quebras e incêndios em inúmeras cidades.
Foi então que Martin Luther King Jr. conclamou seus compatriotas a seguirem os exemplos históricos de Mahatma Gandhi e outros, que realizaram movimentos assertivos não-violentos para alcançar objetivos importantes e difíceis, como o da independência da Índia, em 1947.
Naquele dia, perante mais de 200 mil pessoas, disse Martin Luther King Jr.:
“Esse não é o tempo de nos darmos ao luxo de nos acalmarmos ou de tomar a droga tranqüilizadora do gradualismo. Agora é a hora de tornar reais as promessas da democracia (…) agora é o momento de fazer da justiça uma realidade para todas as crianças de Deus. Seria fatal para a nação não perceber a urgência do momento”.
E, adiante, disse: “Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo do cálice da amargura e do ódio. Precisamos sempre conduzir nossa luta no plano alto da dignidade e da disciplina. Nós não podemos deixar nosso protesto criativo degenerar em violência física. Todas as vezes -e a cada vez-, precisamos alcançar as alturas majestosas de confrontar a força física com a força da alma”.
Pouco tempo depois desse discurso, o Congresso norte-americano aprovou -e o presidente Lyndon Johnson sancionou- as Leis dos Direitos Civis e dos Direitos Iguais de Votação.
O MST tem sido muitas vezes criativo. E, assim, granjeou forte apoio do povo para a justa causa da reforma agrária -quando, por exemplo, organizou as marchas para Brasília em memória das vítimas do massacre de Eldorado do Carajás ou em memória da irmã Dorothy Stang, morta no ano passado pelos interesses do latifúndio.
Para mostrar sua solidariedade aos índios guaranis, tenho a convicção de que as mulheres da Via Campesina poderiam -e podem ainda- escolher uma forma pacífica, criativa, utilizando muito mais a força da alma do que a força física.
De outra forma, daremos razão aos que, em pleno século 21, preferem utilizar os instrumentos bélicos em vez dos instrumentos civilizatórios do bom senso e da inteligência.
Eduardo Matarazzo Suplicy, 64, doutor em economia pela Universidade Estadual de Michigan (EUA), professor da Eaesp-FGV, é senador da República pelo PT-SP. É autor do livro “Renda de Cidadania – A Saída é pela Porta” (Cortez Editora e Fundação Perseu Abramo).
Carta aberta ao senador Eduardo Suplicy
PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO
Meu caro Eduardo Suplicy: Temos uma longa amizade e um longo companheirismo político. Não me esqueço -e aproveito para agradecer publicamente- do corajoso apoio que você deu a minha candidatura a presidente do PT, numa hora em que isso iria lhe custar -como está custando agora- dificuldades com a oligarquia dirigente do partido.
Por isso mesmo, sei que você receberá estas palavras como uma contribuição sincera de um velho companheiro.
Levanto duas objeções à carta aberta que você enviou ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), publicada neste mesmo espaço na última sexta-feira, a propósito da destruição de mudas de espécies florestais em um centro de pesquisas da Aracruz, no Rio Grande do Sul.
A primeira é a invocação das ações de Gandhi e Martin Luther King Jr. como exemplos de ações não violentas que o MST deveria seguir. No entanto, a ação das mulheres do MST, na Aracruz, se enquadra perfeitamente na tradição das lutas desses dois mártires dos oprimidos. O que elas praticaram foi um ato de desobediência civil -uma ação que desafia a lei, a medida ou a omissão injustas sem incitar agressão a pessoas.
Em seus respectivos contextos, os atos de desobediência civil comandados por esses dois grandes líderes foram considerados inaceitáveis e escandalizaram as pessoas sérias, honestas, cumpridoras das leis.
Ora, o objetivo das ações de desobediência civil é precisamente este: desassossegar consciências tranqüilas, como um meio de fazê-las ver a responsabilidade que têm na manutenção de situações inaceitáveis, porém admitidas como normais e corretas. Trata-se de um gesto extremo para despertar sociedades anestesiadas, incapazes de ouvir os clamores do povo.
Vejamos, por exemplo, em que deu a marcha pacífica que os sem-terra realizaram em Brasília, no ano passado, a fim de pedir, de forma respeitosa e ordeira, a reforma agrária. Que resposta obtiveram do governo? Que solidariedade receberam da sociedade? Que noticiário deram os jornais?
A não-violência de Gandhi e Luther King não diz respeito às coisas, mas, sim, às pessoas humanas. Repare bem no próprio texto transcrito na sua carta aberta: Luther King diz que o protesto “não pode degenerar em violência física”. Não há menção a causar prejuízos ao capital. Por acaso, o boicote do sal e do tecido inglês na Índia, o dos ônibus segregacionista no Sul dos Estados Unidos e tantos outros movimentos de desobediência civil em todo o mundo deixaram de causar enormes prejuízos materiais aos capitalistas?
Violência física não houve no ato das mulheres. Houve a destruição de mudas destinadas a implantar a monocultura florestal no Rio Grande do Sul.
Sem falar nos danos que esse tipo de agricultura causa ao meio ambiente, é preciso que todos saibam que se trata de uma forma de agricultura extremamente nociva à pequena agricultura. Poucos sabiam disso. Agora, com a cobertura que a imprensa deu ao episódio, todos ficaram sabendo. Nisso consiste a desobediência civil. É selvagem porque a realidade é selvagem.
Minha segunda objeção a sua carta aberta se refere à falta de uma outra carta aberta: aquela que teria de ser enviada à Aracruz, reclamando da destruição da aldeia indígena dos guaranis no Estado do Espírito Santo e falando sobre a ameaça que representa atualmente a monocultura da celulose para os pequenos agricultores.
Essa forma de violência, sim, se volta contra a existência física das pessoas, na medida em que destrói o ambiente em que essas pequenas unidades familiares podem sobreviver. No entanto, isso se faz daquela forma disfarçada, asséptica, que o capitalismo usa para dar uma aparência de racionalidade à destruição dos grupos humanos que perturbam o “progresso” -o outro nome da sua fome insaciável de lucro e de acumulação de capital.
Prezado Eduardo, o MST vive uma hora dificílima, porque o governo depositário de suas esperanças não tem coragem de realizar a reforma agrária nem de enfrentar as forças políticas que tentam criminalizá-lo, como estamos vendo com a CPI da Terra.
Sei o quanto você já fez pelo movimento e sei também o apreço e o respeito que os sem-terra têm por você. Seu artigo, contudo, embora obviamente contra sua vontade, fornece munição aos adversários. Peço que o reconsidere e que venha somar conosco na defesa incondicional dos legítimos interesses dos trabalhadores rurais sem terra.
Por que não enviar uma carta aberta ao governo, a fim de exigir a publicação dos índices atualizados de produtividade da terra? Isso permitiria acelerar a reforma. Caso a reforma fosse acelerada — você o sabe tão bem quanto eu –, as pacíficas e extraordinárias mulheres do MST não seriam compelidas — como estão sendo — a realizar gestos extremos a fim de chamar a atenção da sociedade para o drama que vivem há muito tempo.
Plínio de Arruda Sampaio, 75, advogado, é presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e diretor do “Correio da Cidadania”. Foi deputado federal pelo PT-SP (1985-91) e consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação).
Fonte: Folha de São Paulo